terça-feira, 30 de maio de 2023

 UM UNIVERSO EM DUAS LETRAS

        Duas letrinhas vogais juntas e está formado um código simbólico para designar um universo particular acessível apenas a uma única pessoa: o Eu. Como um buraco negro descrito pela astronomia, somos uma espécie de lugar único para onde tudo pode fluir e convergir, inclusive a luz. Universo, ou 'uno' mais 'versus', que, em latim significa 'tornado um'.            

        Cada Eu é um universo restrito onde o tempo não impera. Contém passado, presente e futuro, bem como desejos, medos, planos, sentimentos, potencialidades, ilusões, emoções, raivas, agressividades. Nele tudo existe, desde o que já fizemos em nossas vidas (e o que não fizemos) até tudo o que fizeram (e o que não fizeram) conosco também. Nele tudo é real e fictício ao mesmo tempo. Nele é registrado o que de concreto vivemos e também o que encenamos como uma realidade acessível apenas a nós mesmos. 

        Nosso Eu é tal qual mônada, aquela que o filósofo alemão Leibniz mencionou como substância simples, porém, sujeita a transformações, evoluções e desenvolvimento. Por isso a vastidão do nosso ser é inalcançável e tudo cabe em nós. Somos tudo o que somos e também o que não somos e até o que imaginamos que somos. Somos o que sabemos e até o que não sabemos. Somos tudo então, somos multi. Multifacetados, multitarefas, multiplicados, multiversos.

        Somos a simplicidade e a complexidade juntas, somos todos os opostos unidos em um, o bem e o mal, a alegria e a tristeza, a cara e a coroa, o dito e o não-dito, o erro e o acerto, o solo fértil e o arenoso, a glória e a derrota, a criação e a destruição, o nobre e o vil. Estava certo o poeta austríaco Rilke ao afirmar "Se meus demônios me abandonarem, temo que meus anjos desapareçam também".

        Temos o todo em nós e somos o todo também. O Eu só é pequeno no plano da letra simbólica, porque grande em essência. No Eu reside a possibilidade de conhecer tudo o que existe e também o que ainda nem foi inventado. Guardamos em nós um cosmo infinito, somos bem maiores do que podemos imaginar.

        

        

        

domingo, 28 de maio de 2023

 A PAZ COMO PONTO DE PARTIDA


        Desejos de possuir saúde, família, trabalho, bem estar e coração tranquilo costumam integrar as wish lists das pessoas, fazendo-as gritar 'isso sim é que é estar em paz'. Todos perseguem a paz, como ideal a ser alcançado para uma existência feliz.

        Eu prefiro entender a paz, contudo, não como um ideal - posto que essa ótica me faz pensar na ausência dela - mas como ponto de partida, isto é, prefiro considerar-me já abastecida daquelas dádivas que fazem qualquer ser humano feliz, ainda que eu também as persiga para me dizer em paz.

        Pensar que já estou de posse da paz é, em meu entendimento, um exercício de gratidão pelas boas coisas que a vida me deu, por isso gosto de tomá-la como base para outros saltos e experimentações menos óbvias, como também para a tomadas de decisões mais destemidas. Ocorre-me que quem se sente em paz tem mais coragem e acaba vivendo mais intensamente.

        Colocar-se em movimentação, arriscar o insólito, expor-se a alturas não habituais, perseguir objetivos arrojados dá uma boa dose de material para uma biografia de vida, e algo me diz que se sentir em paz deveria ser como estar abastecido de um combustível muito especial para afastar os temores que possam surgir. Por isso é que gosto de pensar a paz como o pacote básico e de fábrica para o start em direção à ousadia, à valentia, à loucura.

        A paz, como a entendo, funciona como pista de decolagem para o infinito da vida, um trampolim para os pulos cegos e menos triviais, o pré-requisito para o risco. Sentir-se em paz faz o leque da vida se ampliar e abre chance aos bons estardalhaços relacionados à alegria e felicidade. Evidente que viver sem paz é doloroso, mas achar que a paz é o objetivo final para ser feliz me parece um pouco triste também, porque a paz deveria ser só o começo de uma vida plena, o pano de fundo branco esperando pela invasão das cores.

        Dizer que a paz deveria ser o básico para uma vida inteira e feliz, todavia, não é reduzi-la e sim atribui-la o selo de imprescindibilidade, sinônimo de patamar obrigatório para, a partir dela, nos ocuparmos de outros objetivos. Pois a paz, como meta única para uma existência feliz, me causa monotonia. Contentar-se com a paz não faz ninguém inteiramente feliz.

        E se os paradoxos existem para comprovação das possibilidades opostas, posso afirmar que um coração em paz só está em paz porque também experimenta o contraponto do desvario, do arroubo, do devaneio, do arrebatamento. É preciso um pouco de risco, barulho e loucura. Está morto em vida quem se satisfaz apenas com a paz.