Ontem assisti a um filme muito gostoso, daqueles que conseguem preencher o vazio de uma madrugada sem sono. Uma história de amor às avessas, contrária ao roteiro clichê da mulher casada que se apaixona por outro homem. Um pano de fundo sensível ambientava uma história de amor marcada pelo amargor sentido no contexto de um triângulo amoroso, em meio ao qual foi possível ver nascer o amor verdadeiro no lugar de um vínculo antes enfraquecido.
"O Despertar de uma Paixão" é o título do drama romântico passado nos anos 1920, onde um jovem casal britânico se muda para a China rural para tentar combater um surto de cólera. Walter é um dos médicos sanitaristas destacados para a missão e sua esposa Kitty, que o acompanhara, encontra um serviço voluntário junto ao orfanato religioso local.
A viagem para a China ocorrera poucos meses após o casamento afetado por uma crise nascida da desilusão de Walter ante à descoberta do envolvimento de sua esposa com outra pessoa, bem como pelo desprezo a ela desde então. Kitty, que havia se casado apenas por imposição paterna, nunca negou seu sentimento por Charles, de quem acaba se afastando devido à necessidade de acompanhar seu marido àquele país.
O desenrolar de toda a história é muito bonito, ainda que permeado por inúmeras dificuldades, mas, no que verdadeiramente interessa aqui, a narrativa destaca o médico desiludido se encantando aos poucos com a dedicação de sua esposa junto aos necessitados, bem como junto a ele próprio, cuja saúde estava a todo momento ameaçada pela proximidade com tantos doentes. É assim que Walter experimenta o renascimento do seu desejo. Kitty, por seu lado, também começa a enxergar o marido com outros olhos, por ver nele o envolvimento com a causa nobre que lhe fora conferida, assim como por estar sempre atento ao bem estar dela. A antiga frieza da convivência vai dando lugar ao nascimento de algo autêntico, pois ambos redescobrem a si mesmos e o relacionamento, transformando a crise inicial em uma profunda conexão emocional.
O filme capturou minha atenção de maneira especial em uma cena que revi ao menos três vezes. Foi no diálogo entre Kitty e a Madre Superior do orfanato, quando esta, sem nada saber da história do casal, expressa o que, para mim, representou uma verdade descortinada. Falou dos enlaces em que há amor, mas não há dever e daqueles em que há dever, mas não há amor, e concluiu dizendo que a graça é alcançada no coração quando o amor e o dever estiverem juntos. Achei lindo.
Kitty, inicialmente, havia encontrado o amor junto ao seu amante, mas não possuía qualquer dever perante este, ao mesmo tempo em que se mantinha junto de seu marido apenas pelo dever do casamento, mas sem amor. O nascimento paulatino do sentimento por Walter fundiu-se com o dever já existente, o que fez Kitty experimentar a autenticidade do que a freira lhe dissera, podendo sentir a graça adentrar seu coração.
Para mim, quando amor e dever estão juntos, talvez nem haja divisão possível, e sim uma unidade, na medida em que tudo é sentido como uma coisa só. O dever é cumprido com alegria e assumido como escolha consciente. Pelo lado do amor, este promove o surgimento natural da vontade do cumprimento do dever, perpetuando o vínculo estabelecido.
A harmonização destas duas forças, muitas vezes vistas como opostas, pode representar a união entre o desejo e a responsabilidade moral, permitindo que se sinta alegria tanto no que fazemos por amor, quanto no que fazemos por dever.
O dever, imbuído de amor, deixa de ser um fardo. O amor, quando mesclado ao dever, ganha profundidade e propósito, transforma-se em desejo genuíno de honrar o compromisso entre os seres. Neste estado de harmonia, amor e dever se sustentam mutuamente.