sábado, 18 de maio de 2024

                                        

AMOR E DEVER
(tem spoiler)

            Ontem assisti a um filme muito gostoso, daqueles que conseguem preencher o vazio de uma madrugada sem sono. Uma história de amor às avessas, contrária ao roteiro clichê da mulher casada que se apaixona por outro homem. Um pano de fundo sensível ambientava uma história de amor marcada pelo amargor sentido no contexto de um triângulo amoroso, em meio ao qual foi possível ver nascer o amor verdadeiro no lugar de um vínculo antes enfraquecido.

            "O Despertar de uma Paixão" é o título do drama romântico passado nos anos 1920, onde um jovem casal britânico se muda para a China rural para tentar combater um surto de cólera. Walter é um dos médicos sanitaristas destacados para a missão e sua esposa Kitty, que o acompanhara, encontra um serviço voluntário junto ao orfanato religioso local.

            A viagem para a China ocorrera poucos meses após o casamento afetado por uma crise nascida da desilusão de Walter ante à descoberta do envolvimento de sua esposa com outra pessoa, bem como pelo desprezo a ela desde então. Kitty, que havia se casado apenas por imposição paterna, nunca negou seu sentimento por Charles, de quem acaba se afastando devido à necessidade de acompanhar seu marido àquele país.

            O desenrolar de toda a história é muito bonito, ainda que permeado por inúmeras dificuldades, mas, no que verdadeiramente interessa aqui, a narrativa destaca o médico desiludido se encantando aos poucos com a dedicação de sua esposa junto aos necessitados, bem como junto a ele próprio, cuja saúde estava a todo momento ameaçada pela proximidade com tantos doentes. É assim que Walter experimenta o renascimento do seu desejo. Kitty, por seu lado, também começa a enxergar o marido com outros olhos, por ver nele o envolvimento com a causa nobre que lhe fora conferida, assim como por estar sempre atento ao bem estar dela. A antiga frieza da convivência vai dando lugar ao nascimento de algo autêntico, pois ambos redescobrem a si mesmos e o relacionamento, transformando a crise inicial em uma profunda conexão emocional.

            O filme capturou minha atenção de maneira especial em uma cena que revi ao menos três vezes. Foi no diálogo entre Kitty e a Madre Superior do orfanato, quando esta, sem nada saber da história do casal, expressa o que, para mim, representou uma verdade descortinada. Falou dos enlaces em que há amor, mas não há dever e daqueles em que há dever, mas não há amor, e concluiu dizendo que a graça é alcançada no coração quando o amor e o dever estiverem juntos. Achei lindo.

            Kitty, inicialmente, havia encontrado o amor junto ao seu amante, mas não possuía qualquer dever perante este, ao mesmo tempo em que se mantinha junto de seu marido apenas pelo dever do casamento, mas sem amor. O nascimento paulatino do sentimento por Walter fundiu-se com o dever já existente, o que fez Kitty experimentar a autenticidade do que a freira lhe dissera, podendo sentir a graça adentrar seu coração.

            Para mim, quando amor e dever estão juntos, talvez nem haja divisão possível, e sim uma unidade, na medida em que tudo é sentido como uma coisa só. O dever é cumprido com alegria e assumido como escolha consciente. Pelo lado do amor, este promove o surgimento natural da vontade do cumprimento do dever, perpetuando o vínculo estabelecido.

            A harmonização destas duas forças, muitas vezes vistas como opostas, pode representar a união entre o desejo e a responsabilidade moral, permitindo que se sinta alegria tanto no que fazemos por amor, quanto no que fazemos por dever.

            O dever, imbuído de amor, deixa de ser um fardo. O amor, quando mesclado ao dever, ganha profundidade e propósito, transforma-se em desejo genuíno de honrar o compromisso entre os seres. Neste estado de harmonia, amor e dever se sustentam mutuamente.

terça-feira, 14 de maio de 2024

 JÁ TUDO CONSERTADO

            Vi recentemente na TV que Susana Vieira acabou de lançar uma autobiografia. A atriz global tem vindo a público anunciar a imortalização de sua história, desde a infância até os dias atuais. Aos 81 anos de idade resolveu dividir com o público os bastidores de sua própria vida, contando a respeito da sua carreira nas emissoras brasileiras, seus casamentos, seus filhos, seus netos.

            Numa das suas aparições para divulgar a obra, chamou-me a atenção a seguinte frase dita com bastante entusiasmo para o telespectador: - O livro é alegre, divertido, fala da minha história e de algumas coisas que deram errado, mas já tudo consertado! Foi aí, nesta parte final em que ela fala de coisas já consertadas, que algo me capturou de um jeito sutil e ao mesmo tempo profundo, porque foi como uma garantia de que tudo um dia volta a ficar bem. O que ontem deu errado amanhã encontrará novos lugares e configurações.

           Foi uma frase que valeu como depoimento de alguém que, com conhecimento de causa, pode dizer que na vida tudo o que se submete à passagem do tempo acaba se acomodando de alguma maneira, se rearranja, se recupera, para de latejar.

            Aquela fala rápida da Susana em prol de sua obra soou como uma dica para não ligar para o que dói hoje, para agarrar as várias possibilidades que aparecem na vida, para não deixar que a força do medo domine, porque lá na frente, aos 81 anos de idade ou mais, tudo estará consertado.

           Tomei esta palavra como um sossego antecipado capaz de neutralizar minha fantasia que às vezes dita um futuro turbulento tão dependente do que eu fizer hoje. Foi como se eu tivesse ouvido diretamente dela 'Vai, boba, aproveita o que a vida está te trazendo, porque lá adiante tudo estará consertado!' Foi como me dizer que sair da linha, desobedecer a protocolos sociais, fazer-se de surda para alguns discursos morais vigentes, não é o fim do mundo, afinal, quando se estiver na casa dos oitenta, tudo estará consertado.

            Achei que a Susana Vieira foi bastante feliz no que disse, ao menos para mim, que identifiquei nas suas palavras uma forma leve e verdadeira de recomendar que o importante é viver, fazer história, tomar os erros como marcas de uma vida bem vivida. 

            Passei a vê-la não mais apenas como a grande atriz nacionalmente conhecida, mas também como uma senhora octogenária que consegue brincar com sua trajetória, quem sabe recomendando dar risada de medos, porque estão fadados a minguar e assumir o status de passado curado, ressignificado, ou melhor, consertado.


Fonte da imagem: https://tribunadonorte.com.br/viver/susana-vieira-80-anos-decada-de-1970-marcou-a-carreira-da-atriz/

terça-feira, 7 de maio de 2024

 AMOR E DISPONIBILIDADE

                Recentemente, assisti a uma live na internet cujo tema era o amor. De duas uma: ou eu estava sem nada para fazer a ponto de poder ficar absorta por uma hora e meia com os olhos e, principalmente, os ouvidos grudados na tela, ou o assunto é de tal importância que mereceu uma pausa no cumprimento das minhas obrigações. Fico com a segunda alternativa, pois penso que nada em nossa existência é mais importante, desafiador e vital do que o amor. Ninguém vive sem amor, ninguém sobrevive sem amor, melhor dizendo.

              Para começar, falou-se do amor romântico explicado por meio de um retorno ao Banquete de Platão, mostrando que desde tempos remotos de nossa história, este sentimento sempre esteve em pauta na vida dos seres humanos, que até hoje buscam sua outra metade, após terem sido cortados ao meio pelo poderoso Zeus mitológico, com a ajuda de Apolo. 

              É daí que teria vindo a ideia do(a) parceiro(a) como a cara metade ou a metade da laranja que todo mundo fala e canta por acreditar que, ao encontrá-lo(a), experimentará a completude. Então o amor seria a tentativa de reunificação, de resgate do paraíso perdido, o que é um tanto impossível e utópico, diga-se de passagem, de sorte que alguém que diga tê-lo encontrado está mergulhado na ilusão.

              Como eu já havia ouvido esta explicação mítica, prestei mais atenção noutro ponto da conversa, mais prático e menos filosófico e que falava sobre o amor próprio que cada um precisa conservar como luz permanentemente acesa dentro de si. A questão do amor próprio estava sendo abordada a partir de um viés diferenciado e sobre o qual eu jamais havia pensado, por envolver a ideia de disponibilidade.

              Disponibilidade, segundo a live, é um indicador para avaliar o quanto de mim, do meu tempo, das minhas energias e até das minhas vontades estão aí para o uso amoroso. É uma medida para avaliar o quanto alguém está aberto para dar de si e, ao mesmo tempo, dar a si próprio, conservando-se, cuidando-se. Disponibilidade é, portanto, estar em stand by para o atendimento das necessidades do outro, como também envolve uma gestão cuidadosa dos próprios recursos emocionais.

              Logo, trata-se de uma palavra que possui dois lados, a face e a contraface, como dupla potência, porque porta o sentido de que o amor é ficar em posição de espera em benefício de alguma demanda do outro, mas também é adotar uma dinâmica de economia em favor de si mesmo, dando-se amor próprio, que também é expressão de amor.

              Se escolho estar disponível a alguém, concordo em doar-me e é por isso que posso dizer que amo. Se escolho não estar disponível para certas empreitadas com o outro, também amo, a mim, em tal caso, e toda esta reflexão sobre a dualidade do amor e da disponibilidade está a dizer sobre a necessidade do equilíbrio entre a dedicação aos outros e o autocuidado.

              Colocar-se à disposição de alguém é uma declaração de amor que transcende o superficial de uma relação. Nesse sentido, amar envolve uma escolha ativa e não uma submissão às necessidades alheias. De outro lado, não estar disponível às necessidades alheias é também uma forma de amor, dirigido a si próprio, pré-requisito da saúde mental e bem-estar. E tudo isso, funcionando ao mesmo tempo, é o melhor da experiência humana relacionada ao amor.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

 CONSENTIMENTO


            A palavra de ordem para hoje é esta: consentimento. Consentir é não obstaculizar, é tolerar por vontade verdadeira, por desejo de não se opor e de não gastar energia psíquica. Consentir é não antagonizar. Consentir é diferente de permitir, porque porta um sentido maior envolvendo apaziguamento e porque permissão pressupõe hierarquia e poder de quem permite. Consentir também é diferente de desistir, porque não se trata de abrir mão ou de largar os bets, como se diz aqui no sul. Não é tampouco entregar-se à derrota e à impotência, porque o consentimento, por sua natureza, envolve o ato voluntário de reconhecer que algumas coisas são do jeito que são. Consentir é acolher com o coração o que não se pode mudar, o que não se sujeita à vontade egoísta de transformar algo que tem seu próprio modo de ser, sua essência.

            O consentimento há de ser autêntico, genuíno, sentido na própria carne e com aquietação frente a um desejo insistente. Envolve a percepção de que é melhor dar vazão à paz que sempre está à disposição de qualquer um, só esperando passagem para se presentificar no coração e oferecer leveza à alma. Diz respeito à aceitação de que algumas coisas repousam sobre o solo alheio às influências do querer individual e presunçoso.

            Malhar em ferro frio é a expressão que ouvi desde pequena da minha mãe para o aprendizado de que há coisas sobre as quais não temos o poder de interferir, e nisso não entram apenas as coisas para as quais nossas forças físicas são limitadas, como mudar as montanhas de lugar ou forçar a chuva a cair. Entra de tudo, inclusive aquilo que não temos do direito de mudar, como as pessoas, quiçá o terreno mais difícil de se aplicar o consentimento, uma vez que aceitar o outro em sua inteireza e peculiaridades demanda sabedoria, humildade e inteligência.

            O consentimento é a melhor via para a paz interior e, certamente, um exercício difícil, pois implica no caminho obrigatório para o respeito às razões pessoais de cada qual, de acordo com o seu tempo, seus limites, suas vontades, seus quereres. Consentir é não dar abrigo à soberba e ao egoísmo de achar que o mundo gira em volta do próprio umbigo.

            Na cultura japonesa, o tai sabaki é o conjunto de técnicas para lidar com uma dada situação, um método de gestão das energias pessoais para evitar o esgotamento inútil dos combustíveis mentais. Não se tratam de formas para se esquivar do que é preciso enfrentar e gerenciar, a exemplo de alguns objetivos e alguns conflitos, mas de estratégias para alcance da tranquilidade.

            A própria natureza mostra o uso do tai sabaki em suas dinâmicas, como o tronco grosso da árvore que não consente com o peso da neve acumulada em si e acaba quebrando numa determinada hora, ao passo que o caule fino e flexível do bambu verga suavemente, deixando cair a neve ali depositada, voltando íntegro à sua posição original, sem danos. Melhor ser tronco duro, rijo e quebrar-se frente à adversidade ou bambu leve, flexível e durável quando o peso da vida se acumula? Melhor quebrar-se na insistência de parecer forte ou curvar-se para deixar que a dificuldade passe e mostre que fragilidade não é fraqueza? 

            Consentir é sinal de iluminação, porque demonstra o conhecimento de que não podemos ter o controle de tudo, dos acontecimentos, das pessoas, do mundo, da vida, da morte. É deixar de querer ser o anteparo contra certos movimentos da vida, porque precisamos saber que não somos tão fenomenais na luta contra coisas que são como elas são. Consentir significa abdicar da ideia do suposto direito sobre algo que reside na esfera de escolha do outro, é saber que o exercício da alteridade liberta mais a quem o pratica.

            A libertação virá, trazendo a consciência de que certos embates não são sadios e servem apenas para escoamento das forças, além da mais pura perda de tempo e enfrentamento inútil contra algo irrealizável. Virá como troféu pela triagem sensata das disputas que valem alguma medida de esforço pessoal. Consentimento é concentrar-se em potência para viver bem e deixar de gravitar em volta do outro exigindo-lhe mudanças para eximir-se da responsabilidade própria. Consentimento é como abrir janelas para que o ar pesado se vá com o vento e limpe o ambiente, é varrer a arrogância de que se pode atropelar o outro, sem respeitar sua natureza individual.

Fonte da imagem: https://www.fastcompany.com/91014728/heres-what-its-like-to-quit-a-job-you-love-and-how-to-make-it-easier

segunda-feira, 29 de abril de 2024

PARA ALÉM DO NORTE


            Buscar um Norte - ainda que já gasta pelo uso - é a expressão master do nosso vocabulário que, figurativamente, guarda o sentido de localizar-se, de estabelecer uma direção e segui-la. Carrega em si um apelo quase místico, um chamado para encontrar nosso lugar no mundo, traçar um rumo e ir adiante, guiados por uma bússola simbólica que aponta mais para dentro de nós do que para qualquer coordenada geográfica.

            Quem está se sentindo perdido na vida costuma dizer que precisa de um Norte, o que funciona como sinônimo de um roteiro previamente sabido, um ponto de referência para que o vazio do desconhecido não seja tão ameaçador. Este Norte diz de uma trilha da qual já se intui cada curva, buraco ou ladeira, pois o ser humano tem pavor da desorientação. Virou força de expressão na linguagem 'um Norte', sendo que ninguém diz precisar de um Sudoeste ou de um Leste na vida. O medo de ir sem direção acabou por influir até mesmo na nossa linguagem.  

            O automatismo das palavras, portanto, parece-me perigoso, pois alguém que se deixa levar por este ditado sem muito critério acaba se fixando na ideia de um ponto conhecido, o que é um tanto limitante, como se ignorasse o espetáculo vasto das possibilidades que nos rodeia, isto é, os milhões de caminhos que podemos tomar. A Rosa dos Ventos aprendida nas aulas de geografia no colégio serve para nos mostrar bem isso.

            É o instrumento de representação gráfica da volta completa do horizonte que surgiu a partir da necessidade de se estabelecer um sentido preciso nas cartas de navegação e de aviação, haja vista que, como descoberto há tempos pelo ser humano, um mínimo desvio implica em importante alteração da rota. Por exemplo, basta errar em uma ínfima subdivisão do grau para, lá na frente, chegar num ponto bem distante daquele inicialmente pretendido.

            Na vida, cada qual também tem o seu próprio horizonte, que é o lugar para onde lançamos as flechas das nossas escolhas de hoje e as quais nos levarão a circunstâncias e situações lá na frente. Mas é importante saber que perde quem navega sempre pelos mesmos mares e deixa de aportar em outras terras, com todas as suas correntezas e ventanias. 

            A bem da verdade, seguir o Norte expressa que fomos ensinados a seguir modelos de pensamento para tomadas únicas de decisão, que nos farão viver sem emoção, paralisados. É como disse o poeta "Os ventos do norte não movem moinhos". Portanto, buscar o Norte é rejeitar o infinito leque de possibilidades, ser dependente da validação dos nossos pares, da família ou da sociedade a que pertencemos, a fim de atender às suas expectativas. Seguir o Norte é não ouvir a voz interior que se orienta para outro ponto.

            Pequenos gestos e decisões aparentemente triviais podem mudar nossa trajetória de maneira significativa, abrindo-nos um leque quase infinito de futuros possíveis. Nossas condutas atuais levam-nos a um sem número de probabilidades ao redor da circunferência invisível que nos cerca, de sorte que bastam pequenas mudanças para que possamos chegar em pontos diferentes dos que imaginamos inicialmente, desde que armados de curiosidade e coragem.

            É sempre tempo de lançar os olhos em outras direções. A Rosa dos Ventos é então a metáfora perfeita da existência, para dizer que há sempre outros lugares, outras dimensões, outras realidades possíveis e o bacana é tomar consciência de que as nossas chances são infinitas.

            Como navegadores e aviadores no curso do nosso próprio destino precisamos encarar o novo, pois isso sim é viver, e quanto mais variadas forem as direções, mais ventos e alturas experimentaremos. Provar novos sabores, visitar lugares, engajar-se em conversas com estranhos, aprender habilidades desconhecidas são, justamente, o mosaico da nossa vida. São como os pequenos desvios, os pequenos ajustes no itinerário que fazemos para a descoberta de 'novos horizontes'. Aliás, não é à toa esta expressão, como um convite à experimentação.

             Ouso afirmar que a variedade da vida está, justamente, nos pequenos ângulos que mudamos, propiciando a ampliação do portfolio pessoal, a cartela de cores dos dias. Este é o poder das pequenas mudanças como meio para percorrer rumos diferentes dos que estamos habituados, para o que talvez seja necessário romper tratados, trair ritos, gritar, desabafar, como fez aquele poeta que achava que os ventos do norte não movem moinhos.



            

quinta-feira, 4 de abril de 2024

 O FEMININO EM CADA MULHER


            A cena é real e a presenciei dentro de uma livraria num sábado à tarde enquanto procurava algo novo para ler: uma mulher, nos seus trinta e poucos anos, com um bebê de uns seis meses no colo, prostrou-se a uns cinco metros de onde eu estava, em frente a uma grande estante de livros. Pareceu-me ter estacionado ali apenas pela comodidade de um sofá próximo enquanto aguardava por alguém, haja vista os tantos apetrechos que carregava, como carrinho, bolsa de fraldas, paninhos, brinquedos, mamadeira, chupeta etc. Fiquei olhando-os e deduzi que eram mãe e filho, devido à força de um código genético que denunciava tal parentesco. 

            Ela, durante todo o tempo em que foi vítima dos meus olhares, voltava seu rosto a todo instante para a criança, e enquanto a ninava suavemente como dança macia típica da maternidade, conversava com o pequeno em seus braços na língua do manhês. Oferecia-lhe água, chupeta, brinquedos. Também enxugava sua boquinha encharcada de baba. Deviam estar nascendo seus primeiros dentinhos, pensei. Era bonito ver o envolvimento mútuo entre ambos, pois ela estava toda para o bebê e ele todo para ela. 

            Às vezes penso que tenho alguma vocação para detetive, pois não é raro eu desempenhar a arte da observação discreta sem ser percebida. Fiquei ali então refletindo sobre esta tão forte natureza que muitas mulheres expressam quando se colocam à mercê do plano biológico de gerar e cuidar de seus filhos. Afinal, por uma boa parte de sua vida, abdicam de tempo, de desejos e de vontades diversas para garantir a sobrevivência e o cuidado com outro ser. Ocorreu-me até que, muitas vezes, são forçadas a isso sem que o saibam, pois a cultura é forte o bastante para impor seus desígnios também.

            O fato é que há um contingente de mulheres que aceitam o desafio de passar pela gestação, parto, lactação, além dos picos e vales hormonais, com profundas mudanças em seu corpo, em seu psiquismo, em suas emoções, tudo acompanhado do sorriso de satisfação e, às vezes, nem tanto, e tudo bem se assim for. Não tenho dúvidas de que algo as solicita ao exercício desta nobre função, ao preço de um quase esquecimento de si próprias. Para elas, tudo parece valer a pena, pois estão cumprindo alguma programação, seja interna, familiar, da sociedade, de Deus, enfim.

            Mas minhas divagações nessa temática da maternidade mudaram de rumo quando a mulher, ainda com o bebê no colo e preparando-se para ir embora, pareceu ter sido capturada em sua atenção por um livro específico. Mesmo já tendo reunido todas as suas tralhas, estica seu braço para pegá-lo e dá uma olhada nele, porém, devolve-o à prateleira. Em seguida, pega-o de novo e o devolve de novo, em clara movimentação ritmada que denunciava alguma tentação de adquirir para si aquele exemplar. Decide finalmente pegá-lo e sai se equilibrando com tudo.

           Esse pega/devolve o livro foi o que me chamou a atenção a ponto de ir ver qual era, afinal, o assunto abordado naquela obra. Tratava-se da produção de uma jornalista a respeito das mulheres sob o viés histórico da internalização de regras morais opressoras baseadas nos sete pecados capitais da Igreja Católica. De acordo com a contracapa, a proposta da escritora era explorar a noção do comportamento considerado exemplar das mulheres ao longo das eras, já indicando que seriam tecidas considerações em torno das repressões impostas sobre os seus desejos, raivas, preguiças, bem como a respeito do padrão boazinha plantado nas cabeças de todos.

            Assim, o livro falava de luxúria, como fundamental para a vivência de um prazer sonegado por tanto tempo, bem como da ira, para a luta por um futuro mais igualitário e também da preguiça, dado que se deleitar com o fazer nada momentâneo é útil para recarregar as forças para novas empreitadas. Sobre a gula, uma olhada superficial no capítulo correspondente indicava o quanto a regulação do comportamento alimentar foi nociva para o grupo feminino ao longo do tempo, como atesta a triste corrida para encaixar-se em padrões de beleza ilusórios.

            Enfim, seriam ali debatidos todos os pecados capitais como alertas vermelhos impeditivos de condutas que muito prejudicaram as mulheres, especialmente. De fato, se muitas coisas são pecado para nós mulheres, então nada nos resta, não podemos fazer mais nada, nem sequer deixar fluir sensações e afetos, porque considerados rigidamente proibidos.

            A escolha daquela mulher pelo livro soou-me como evidência de que todas nós somos mais do que um corpo reprodutor e cuidador de seres humanos. Somos também o receptáculo de um feminino ferido, que há muito tempo vem lutando e esbravejando para ser ouvido na sua demanda por libertação. 

            Talvez a atitude daquela jovem mãe tenha representado para mim que, mesmo feliz com as obrigações da maternidade, a mulher também guarda dentro de si um grito silencioso para anunciar que antes de tudo, pode ser mulher no sentido mais pagão da palavra. Um ser dotado de tudo o que lhe fora impedido de aparição para que não se afastasse do modelo ideal de conduta previamente estabelecida. 

              É provável que um discurso inteiro, antecipadamente elaborado, sobre a ânsia feminina de libertar-se de um jugo nascido em épocas primevas e atuante até hoje, não tenha sido tão esclarecedor como foi para mim ver aquela cena na livraria, mesmo que, em realidade, a dúvida concretamente manifestada quanto a pegar ou não o livro não tenha passado, para aquela mulher, de uma mera avaliação do seu preço.

sexta-feira, 29 de março de 2024

 PAIXÃO DE CRISTO


            Hoje é dia 29 de março de 2024, uma sexta-feira santa, feriado católico conhecido como Paixão de Cristo ...e meu aniversário também, uma coincidência que sempre marcou minhas comemorações ao longo da vida e as datas sagradas. Nasci, inclusive, num domingo de Páscoa. Este entrelaçamento no calendário, de alguma forma, construiu alguma parte de minha memória afetiva.

            Por toda a vida sempre ouvi que a Páscoa guarda um significado mais emblemático que o próprio Natal, por indicar renascimento, renovação, e comemorar mais um ano de vida entre as celebrações cristãs talvez tenha contribuído para que eu me reconheça há tempos como uma pessoa às voltas com pensamentos sobre transformações pessoais no reino da minha alma. 

           Sinto-me feliz em poder comemorar meu dia numa data tão importante para o mundo cristão, uma espécie de privilégio que uso como pretexto para pensar de um jeito diferenciado, considerando a saga da principal personagem histórica relacionada à data de hoje: Jesus Cristo.

            O grande homem que lutou para inscrever sua verdade no mundo foi execrado e punido, tendo-lhe sido imposta a pena máxima. Que ousadia a sua, querer elevar a consciência da humanidade para um grau de maior elevação! Acabou pagando com a própria vida por seu ato revolucionário de querer implantar nas pessoas uma mentalidade que as fizessem melhores como seres humanos, mediante o despertar do amor e da caridade para com seus semelhantes. Jesus Cristo foi julgado criminoso em seu tempo aos olhos do poder então instituído, porque desafiou as autoridades, enfrentou o status quo de uma sociedade moralmente corroída.

            Mesmo em meio a tantas dificuldades, Jesus Cristo teve essa imensa coragem, sendo fiel à verdade que habitava em seu âmago, jamais cedendo a pressões externas. Enquanto isso, nós, pobres criaturas amedrontadas, recuamos de nós mesmos, tememos ser verdadeiros no meio em que vivemos, sentimo-nos ameaçados pelo julgamento alheio, sufocamos nossos princípios para nos adequarmos às convenções sociais, e isso na minúscula escala que envolve o nosso próprio umbigo.

           É pena que, muitas vezes, não tomemos o exemplo de Jesus para vivenciarmos nossa verdade interior e particular, a qual deixamos de manifestar por puro medo de ser quem somos em essência. Em vez disso, optamos pelo caminho ilusório das máscaras sociais, usando-as como falso antídoto, esperando encontrar segurança numa existência somente cheia de um vazio de autenticidade, isto é, uma ilusão de proteção contra um mundo hostil.

            Diferentemente de Jesus Cristo, guardadas as devidas proporções e graças ao bom Deus, não pagaremos com a própria vida pelo ato corajoso de vivermos em conexão com nossa própria verdade. Ao contrário, esta vem a ser a fórmula para fazer nascer o amor, primeiro por nós mesmos e, consequentemente, pelos demais.

            Uma vida permeada pela verdade representará a paz interior que todos almejamos, assim como a expressão das emoções genuínas, ao contrário de uma busca pela adequação a expectativas externas ou padrões impostos socialmente.

            A honestidade consigo mesmo implica também na assunção de responsabilidade pelas ações próprias, como meio de se atingir maior integridade e liberdade.