quinta-feira, 5 de maio de 2022

 

MENININHA

        Todos nós abrigamos no meinho do coração uma criança interior, mesmo que já tenhamos chegado à vida adulta, cheios de compromissos, preocupações, com cabelos brancos e dores nas articulações e cartilagens do nosso corpo. A minha menininha, por exemplo, mora encolhida dentro do peito e se manifesta em muitas ocasiões de um jeito amedrontado e frágil.

       Penso ser essa a representação das nossas feridas emocionais trazidas para a maturidade. Remontam a um passado em que fomos, real ou ilusoriamente, machucados, por quaisquer reprimendas, olhares mais severos ou meras interpretações pessoais, conscientes ou não, de fatos com importância variável. Por vezes, até o silêncio ou um não dito é o que basta para que nasça um afeto doloroso para a vida toda. Tudo está na maneira como moldamos nosso olhar para as pessoas, para o mundo e para nós mesmos. Temos, assim, inevitavelmente, um núcleo doloroso vivo e, graças a Deus, com o poder de reedição a qualquer momento.

        Por isso se costuma dizer que a dor está no terreno particular, pois depende do significado que cada qual dá aos acontecimentos. E aí é que está a nossa criança machucada, para quem a passagem dos anos não significou outra coisa senão apenas adquirir um corpo adulto, uma vez que ali está ela, incólume. Seguiremos vida afora carregando aquela pessoinha magoada, que não perde a necessidade do colo, do consolo, da dissolução dos seus medos.

        A minha menininha interior é bem danada, me cutuca com perturbável frequência. Parece vir a mim confessar uma estrepolia qualquer, com as mãozinhas escondidas para trás e os olhinhos de uma culpa inocente, pedindo compreensão por se sentir tão deslocada dessa louca vida de gente adulta. Essa coisinha infantil que mora aqui dentro parece chorar e bocejar ao mesmo tempo, sucumbindo ao sono e ao cansaço num dado momento, exausta de recordações de outrora.

        O caminho é não ignorar nossa criança interior, ao contrário, deixá-la falar, porque é ela quem, justamente, tem o poder de mostrar que nem tudo precisa ser tão sério. É também para ela que se deve dizer que tudo "já passou", que "sua dor já pode ser transformada, ressignificada". Feliz de quem conversa com sua criança e consegue apaziguá-la, afirmando que tudo está bem, que pode agora olhar tudo diferente.

        Exercitar o convívio consciente e sadio com a criança que ainda somos, sentando no chão com ela e perguntando-a quais são ainda suas demandas emocionais, o que mais ela quer que ainda não tem, pode ser um bom modo de cura. Dialogar com ela de braços abertos, acolhendo-a para que fale o quê quiser, para que chore, brinque, exponha-se, crie, viva. 

        Que brote em nós a inspiração necessária para localizar este pequeno ser ferido que guardamos, dizendo-o o quanto pode se sentir amado e autorizado a viver plenamente, livrando-o do medo das críticas, do dever de perfeição que lhe fora imposto, da covardia frente a mudanças, do abandono.

        

        


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