NEM TUDO SE COMPARTILHA
Falo das coisas impossíveis de serem cedidas, dos deleites puramente individuais a que devemos nos autorizar, sem que se entre no terreno do egoísmo.
Parei, por exemplo, com uma velha mania que eu tinha de forçar quem estava ao meu lado a sentir o mesmo arrepio gostoso vindo de uma música que eu ouvia. Demorei a aprender que, se a música entra pelos meus ouvidos, então ela pode ser só minha e só em mim pode gerar um tipo de prazer sem possibilidade de divisão.
Outra dessa era querer que alguém provasse da mesma comida que eu, para que sentisse a mesma sensação divina que minhas papilas gustativas me concediam. Eu me via como muito bondosa por repartir as delícias que eu comia e por pretender doar um pouco do prazer dos manjares derretendo em minha boca. Mas, do mesmo modo, se só eu que posso sentir o gosto e a textura de alguma coisa, então só eu é que vou desfrutar daquele efêmero momento da forma mais intensa possível.
Era comum também eu querer dividir o que eu sentia quando meus olhos absorviam uma paisagem maravilhosa ou quando eu experimentava uma forte emoção por enfiar o pé na areia quente da praia. E quando eu lia o trecho de algum livro que me despertava para algo, meu espírito de solidariedade já me forçava a divulgar as impressões que eu tinha, roubando a atenção dos demais para que fossem igualmente tocados pelo que eu acabava de aprender, sem que estivessem interessados, muitas vezes. Parei com tudo isso.
Tenho exercitado também a individualidade das minhas emoções, apenas dando-me a esse direito, sem obrigação de entendê-las ou mesmo sem pensar que estou à beira de um delito só porque uma felicidade momentânea me invade tal qual um presente inesperado. Algumas emoções são tão especiais que até temos medo de perdê-las e é aí que as perdemos. Melhor então desfrutar profundamente antes que se vão, porque ninguém conseguirá senti-las por nós. E não é delinquente aquele que desfruta sozinho de uma forte emoção.
É muito bom chegar à altura de perceber que há coisas imunes a rateio, porque absolutamente particulares, impossíveis de serem repartidas com quem está por perto. Até porque, mesmo que as sensações pudessem ser partilhadas, não o seriam as suas percepções, isto é, a maneira como são interpretadas, já que bastante subjetivas. Certos prazeres só são prazeres porque sentidos no reduto de cada um.
E então eis que aprendi com o tempo a permitir só a mim aquilo que a ninguém mais é possível experimentar em meu lugar, e tudo isso sem culpas ou alardes até o ponto de estar em paz com isso.
É tudo uma questão de singularidade, de convívio com essa pessoa que me habita. Talvez o amor próprio venha daí, dessa permissão silenciosa a que nos damos para sentir e apreciar as sensações do mundo de modo único sem que precisemos expor tudo o que sentimos.
Assim, mesmo latente aquela regra de repartir tudo, a gente deve se autorizar ao gozo solitário de certas coisas. É como ter o mapa de um tesouro que só a nós espera, uma dica de ouro que fará uma diferença enorme apenas para nós, sem afetar a ninguém e que tem a ver com a liberdade de sentirmos e de sermos o que bem quisermos.


