segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

NEM TUDO SE COMPARTILHA


         Desde pequenos somos ensinados a dividir inúmeras coisas, e num mundo tão autocentrado isso parece ser mesmo a melhor forma de vivermos em paz, em dia com o nosso dever de voltar os olhos para as carências do próximo. Faz bem compartilhar a comida, a roupa, o calçado, o brinquedo, o dinheiro, o tempo, o conhecimento, a experiência, especialmente, quando sentimos que fomos agraciados na vida com muitas benesses. Entretanto, existem coisas absolutamente particulares, cujo desfrute só pode se dar de forma solitária.

        Falo das coisas impossíveis de serem cedidas, dos deleites puramente individuais a que devemos nos autorizar, sem que se entre no terreno do egoísmo.

        Parei, por exemplo, com uma velha mania que eu tinha de forçar quem estava ao meu lado a sentir o mesmo arrepio gostoso vindo de uma música que eu ouvia. Demorei a aprender que, se a música entra pelos meus ouvidos, então ela pode ser só minha e só em mim pode gerar um tipo de prazer sem possibilidade de divisão. 

        Outra dessa era querer que alguém provasse da mesma comida que eu, para que sentisse a mesma sensação divina que minhas papilas gustativas me concediam. Eu me via como muito bondosa por repartir as delícias que eu comia e por pretender doar um pouco do prazer dos manjares derretendo em minha boca. Mas, do mesmo modo, se só eu que posso sentir o gosto e a textura de alguma coisa, então só eu é que vou desfrutar daquele efêmero momento da forma mais intensa possível.

        Era comum também eu querer dividir o que eu sentia quando meus olhos absorviam uma paisagem maravilhosa ou quando eu experimentava uma forte emoção por enfiar o pé na areia quente da praia. E quando eu lia o trecho de algum livro que me despertava para algo, meu espírito de solidariedade já me forçava a divulgar as impressões que eu tinha, roubando a atenção dos demais para que fossem igualmente tocados pelo que eu acabava de aprender, sem que estivessem interessados, muitas vezes. Parei com tudo isso.

        Tenho exercitado também a individualidade das minhas emoções, apenas dando-me a esse direito, sem obrigação de entendê-las ou mesmo sem pensar que estou à beira de um delito só porque uma felicidade momentânea me invade tal qual um presente inesperado. Algumas emoções são tão especiais que até temos medo de perdê-las e é aí que as perdemos. Melhor então desfrutar profundamente antes que se vão, porque ninguém conseguirá senti-las por nós. E não é delinquente aquele que desfruta sozinho de uma forte emoção.

        É muito bom chegar à altura de perceber que há coisas imunes a rateio, porque absolutamente particulares, impossíveis de serem repartidas com quem está por perto. Até porque, mesmo que as sensações pudessem ser partilhadas, não o seriam as suas percepções, isto é, a maneira como são interpretadas, já que bastante subjetivas. Certos prazeres só são prazeres porque sentidos no reduto de cada um.

        E então eis que aprendi com o tempo a permitir só a mim aquilo que a ninguém mais é possível experimentar em meu lugar, e tudo isso sem culpas ou alardes até o ponto de estar em paz com isso.

        É tudo uma questão de singularidade, de convívio com essa pessoa que me habita. Talvez o amor próprio venha daí, dessa permissão silenciosa a que nos damos para sentir e apreciar as sensações do mundo de modo único sem que precisemos expor tudo o que sentimos. 

        Assim, mesmo latente aquela regra de repartir tudo, a gente deve se autorizar ao gozo solitário de certas coisas. É como ter o mapa de um tesouro que só a nós espera, uma dica de ouro que fará uma diferença enorme apenas para nós, sem afetar a ninguém e que tem a ver com a liberdade de sentirmos e de sermos o que bem quisermos.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

 PEDI E RECEBEREIS


        Com alguma frequência penso que talvez eu precise aprender a rezar de uma forma melhor, ao contrário de ficar apenas pedindo graças aos céus como a criança que necessita apaziguar o seu espírito pueril. Minhas súplicas não costumam acontecer sob a forma de elevação do pensamento à divindade e estabelecimento de uma conexão profunda. O que faço é, simplesmente, pedir, e pedir muito, inclusive, até mesmo negociando com minha moeda de promessas com novos comportamentos e atitudes. 

        Peço tudo o que representa o meu desejo, como o restabelecimento da saúde de Fulano, a chegada ao destino sem intercorrências na viagem de Beltrano, a superação do infortúnio pelo qual Cicrano vem passando e assim por diante. Rogo de um jeito que lá em cima devo ser conhecida como aquela que insiste até que as coisas aconteçam como mágica por acreditar na força do seu clamor.

        Não costumo, por exemplo, solicitar o merecimento dos enfermos para que se recuperem, ou a clareza aos que dela necessitam para auxílio em suas decisões, nem mesmo a força aos enfraquecidos. Minhas solicitações são diretas, com a pressa típica de alguém birrento, ao estilo do quero isso e aquilo e ponto final. Levei à risca a dica bíblica do 'pedi e recebereis'.

        Se é certo que Deus escreve certo por linhas tortas, Ele haverá de entender que eu não domino a melhor linguagem para acessá-Lo e tampouco consigo mais do que apenas insistir em minhas reivindicações até consegui-las. Ele saberá que sou mesmo igual à criança que ainda não sabe se expressar.

        Nos meus momentos de maior dificuldade, Ele já percebeu que não sei formular solicitações desprendidas de algum apego e que também não sei aguardar pela mitigação da minha angústia, mas devo estar de alguma forma convencendo-O em minhas invocações, pois venho sendo agraciada com muitas bênçãos ao longo da vida. Minha suspeita é a de que minhas preces, dificilmente, dirigem-se a mim, mas às pessoas a quem amo. 

        Verdade seja dita, posso até não saber falar com Deus, mas Ele me atende por saber que só consigo ser feliz quando a saúde e felicidade dos que amo estiver presente.

    

domingo, 1 de janeiro de 2023

O BOM GOSTO NA ROUPA DA PRIMEIRA DAMA

   

        Para a posse do seu marido presidente da república do Brasil, neste dia 1o de janeiro de 2023, a primeira dama apareceu com um tailleur bege claro com vários bordados em forma de flores e arabescos enfeitando as lapelas na parte da frente, assim como na parte de trás e nas mangas.

        Lá em casa, na sala, com a família reunida para assistir à cerimônia pela TV, a mulherada foi dando suas opiniões, fazendo uma rápida avaliação sobre o estilo da vestimenta escolhida para aquele evento de importância nacional. Umas aprovaram e fizeram elogios. Outras acharam tudo aquilo demasiado, comprometendo a sobriedade do traje. Particularmente, eu ainda estava em dúvida quanto a ter gostado ou não.

        Até certo momento ninguém havia pensado mais detidamente na intenção daqueles bordados que, num primeiro momento, pareciam destinar-se apenas a enfeitar a roupa. Mas uma rápida pesquisa que fiz pela internet logo mostrou tratar-se de um artesanato solidário desenvolvido numa tal região do Seridó, no Rio Grande do Norte, relacionado à época da colonização portuguesa em nosso país. Descobri que as bordadeiras daquele local integram uma cooperativa denominada Timbaúba dos Batistas e desempenham esse ofício que há anos é passado de mãe para filha como fonte de sustento e autonomia financeira.

        Imediatamente, brotou em minha mente que de uma região árida do nordeste brasileiro podem nascer delicadas flores, ainda que sejam elas bordadas em tecidos, como que destoando de uma realidade onde a pobreza e o sofrimento são o dia a dia de uma gente sofrida e batalhadora. Muito encanto nisso! Mas havia algo a mais mostrado na roupa da primeira dama, que era o fato de aqueles bordados não se prestarem a seguir regras estilísticas ou impressionar, mas sim fazer reverência ao patrimônio cultural brasileiro e incentivar o talento de mulheres da nossa terra.

       Foi aí que a roupa da primeira dama me capturou. Detectei o seu bom gosto transcendente a quaisquer tendências em voga, pelo exercício amoroso da identidade nacional, divulgação da arte brasileira, incentivo ao trabalho local, valorização do que é nosso. Isso é, sem dúvida, de um extremo bom gosto que extrapola qualquer coisa já vista em desfiles nas passarelas de moda. A esposa do presidente não deu importância apenas ao cetim, ao corte especial e à boa combinação, e sim aproveitou o evento para enaltecer a originalidade do seu país. 

        Não consigo pensar em outra atitude mais apropriada para o evento de posse do seu marido presidente da república, senão aquela da Janja, prestigiando o produto nacional, na minha opinião, uma espécie de aplauso silencioso à obra de suas trabalhadoras conterrâneas, além de um chamado ao engajamento social e uso da roupa como instrumento para o despertar de causas coletivas.


Fonte da imagem: https://images.app.goo.gl/fPgUf3FJE5tZP83v5