quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

HERANÇA DA PANDEMIA 


            Muitos dos efeitos secundários trazidos pelo Covid-19 vieram para ficar. Incorporaram-se na rotina das pessoas. No que diz respeito ao trabalho, o home office apareceu com carga positiva. O lar se transformou no escritório e o pijama, em uniforme. Desenvolver as usuais atividades sem tirar o nariz para fora pareceu bastante tentador e, com o tempo, todo mundo passou a recear ter de voltar aos seus escritórios, empresas etc. tão logo acabasse a pandemia.

             Trabalhar em casa de maneira remota facilitou um monte mesmo, seduzindo a todos. Não há dúvidas sobre a comodidade ficar de chinelos, deixar o carro na garagem economizando combustível, controlar o funcionamento da casa de perto, entre outros benefícios, como a segurança contra os perigos da rua. 

               O mundo se reduziu ao precioso espaço doméstico. Todavia, um olhar mais atento permite ver o quão nefasto isto pode ser.

            Quem adotou definitivamente o trabalho em casa, como eu, logo começou a espreitar as sombras do desequilíbrio e a sentir que outras consequências não tão boas começaram a aparecer, como a invasão de uma jornada elastecida no espaço que haveria de ser dominado pela liberdade de fazer qualquer outra coisa e até de não fazer nada. Os meus dias se fragmentaram em até três turnos e até nos fins de semana me vejo envolvida com obrigações laborais.

            Ao tempo em que eu trabalhava fora de casa, saía num dado horário e retornava algumas horas depois, quando concluídas minhas atividades do dia. Ficava para o dia seguinte a continuação de minhas tarefas. De volta ao lar, não fazia mais nada além do convívio com a família, do cuidado comigo mesma, com a casa, com minhas leituras etc. O meu tempo era melhor utilizado do ponto de vista humano. É até um pouco clichê falar desta forma, mas a questão é que, de fato, hoje, com praticamente todas as minhas horas dentro de casa, convivo menos com tudo o que me dá prazer.

            Virei escrava do trabalho remoto. Espalho minhas atividades de manhã, de tarde e de noite, chegando às vezes a fazer alguma coisa pouco antes da meia noite, quando o certo seria eu estar fazendo a higiene do sono, comendo alguma coisa leve antes de dormir ou apenas não me preocupando com a dor no ombro de uma dia inteiro sem ergonomia. 

            O resultado disso é que me sinto controlada pelo que preciso realizar, ao contrário de controlar. É como se eu estivesse em permanente sobreaviso, igual àqueles trabalhadores que usam um bip na cintura para atender a demandas inesperadas. Ter bastante tempo em casa me fez esquecer que posso exercitar o ócio. Péssima estratégia. É como estar e não estar em casa ao mesmo tempo.

            Nestas horas em que as demandas pessoais forçam a um remanejamento, vale botar o senso crítico em ação para desenvolver uma maneira de trabalhar com eficácia sem sacrificar o tempo livre valioso a que devemos nos dar. Resgatar momentos de mera contemplação permite redescobrir a plenitude de viver.

            Saber dimensionar o tempo para o trabalho permite um delicioso convívio com quem dividimos o mesmo teto, assim como uma trégua das horas para os cuidados conosco, os encontros com pessoas especiais, o lazer e até para uma meditação, que, longe se ser um luxo, é o dolce far niente mais merecido.


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

 

QUEM É ESSE QUE ME HABITA

                Às vezes sinto que meu próprio Eu não é quem manda dentro da minha cabeça. É como se por trás dele alguém, estranho à minha vontade consciente, comandasse todo o meu espetáculo na vida.  A verdade, no entanto, é que há realmente um estranho por trás do nosso Eu, que é mera vitrine no mundo. O verdadeiro comando é mesmo desenvolvido por um desconhecido que nos habita.

            Está longe de ser o Eu quem monta os cenários bem vivos das fantasias a que chamamos de 'realidade' psíquica. Também não é o Eu o responsável pela eclosão das nossas ideias e comportamentos repetitivos e diversificados, das recordações dos tempos da infância, dos esquecimentos que desafiam nossa prodigiosa memória e da criação de medos inexplicáveis. A infinidade de tais situações corriqueiras e sobre as quais não temos controle algum sinalizam a existência de um outro em nós e a quem não reconhecemos. Somos como hospedeiros de um invasor infiltrado, que age no nosso ilusório lugar de comando.

            Estou falando do nosso inconsciente, esse danado escondido no escurinho da mente, habitante do desconhecido interior que todos temos, capaz de sair da masmorra onde habita para dar as caras no mundo exterior disfarçadamente, sob forma de deslizes nas nossas palavras e comportamentos. 

            Uma vez livre no mundo externo, nosso inconsciente consegue nos deixar de saia justa, pregar peças. Expressa-se, por exemplo, por meio de atos falhos que escapam da nossa vigilância desmentindo nossos discursos tão fracamente planejados, assim como denunciam nossas verdadeiras intenções, sobrepujando o fraco Eu (esse general de araque), que não consegue se impor o tempo todo. É como o policial da fronteira, que não dá conta de vigiar toda a extensão territorial sob sua responsabilidade, acabando por não conseguir impedir o contrabando de mercadorias (conteúdos inconsciente, no caso) para fora do país (o indivíduo). 

            De forma bastante leve, assim é uma parte da nossa dinâmica psíquica, que, explicada mais seriamente, nos fará saber que somos bem menos pensantes do que supomos. Somos, eu diria, seres mais sentintes, neologismo que acabo de criar para expressar que o 'penso, logo existo' do medieval René Descartes é menos verdadeiro do que o 'existo onde não penso', de Sigmund Freud. Para mim, esta é a fórmula linguística perfeita para dizer que somos mais inconscientes a respeito de tudo e de nós mesmos do que podemos imaginar, pois nossa consciência não passa de ponta numa montanha de iceberg.

            Sim, foi Freud quem desmistificou a ideia de que a racionalidade é a coisa que mais caracteriza a nossa existência, dado que existimos infinitamente menos no terreno do pensar e mais no terreno do sentir. A nossa tão propalada razão, orgulho da raça humana para o estabelecimento da soberba distância imposta em relação aos animais e com a qual nos achamos no topo do mundo, não passa de uma casquinha em nossa psique, pois quem determina a baderna toda é o inconsciente, este infamiliar e desconhecido habitante das entranhas sem que nos demos conta dele.

            Por isso então é que temos a sensação de que em nossa cabeça vive, independentemente do controle racional e consciente, alguém agindo por nós, realizando produções espetaculares, como as criações intelectuais, assim como outras nem tanto, como as traições em forma de palavras indevidas que saem da boca mais rápido do que a capacidade que a língua tem para detê-las antes de causarem efeitos indesejados no mundo sonoro. Neste último caso, acabam por denunciar desejos obscuros e até reprováveis aos olhos do mundo comportado e cheio de regras morais.

            O danado do inconsciente, quando emerge dos recônditos da mente, parece um sabonete molhado que em vão tentamos agarrar para conhecer mais de perto, escapando-nos, sequer sendo possível um rápido tête-à-tête explicativo sobre seus métodos. Logo, é inútil convidá-lo para uma aproximação, dado ser inacessível na maior parte do tempo, seja porque seus aparecimentos são como estrelas cadentes, que iluminam rapidamente o céu e logo desaparecem.

            Quem normalmente impede o inconsciente de sair mundo afora a todo instante é o portão bem grosso e alto atrás da nossa consciência, chamado de 'barreira do recalque' pelos mais afeitos à psicanálise. O negócio é que o inconsciente consegue fugir de vez em quando, pular esse portão e, disfarçadamente, deixar deixar seus vestígios, detectáveis por aqueles que aprenderam a reconhecê-lo.

            Enfim, tudo isso era para dizer de forma simplória que nossa cabeça parece funcionar independentemente do nosso Eu porque, de fato, somos habitados por uma força inconsciente mais poderosa que nos comanda, como um estranho dentro de nós mesmos. O engano todo sempre esteve em achar que o Eu é o entendido sabichão do pedaço, senhor da razão, que tudo sabe, que tudo controla, que reina soberano no castelo da mente, quando não passa de um ingênuo perambulando pelo mundo.