HERANÇA DA PANDEMIA
Muitos dos efeitos secundários trazidos pelo Covid-19 vieram para ficar. Incorporaram-se na rotina das pessoas. No que diz respeito ao trabalho, o home office apareceu com carga positiva. O lar se transformou no escritório e o pijama, em uniforme. Desenvolver as usuais atividades sem tirar o nariz para fora pareceu bastante tentador e, com o tempo, todo mundo passou a recear ter de voltar aos seus escritórios, empresas etc. tão logo acabasse a pandemia.
Trabalhar em casa de maneira remota facilitou um monte mesmo, seduzindo a todos. Não há dúvidas sobre a comodidade ficar de chinelos, deixar o carro na garagem economizando combustível, controlar o funcionamento da casa de perto, entre outros benefícios, como a segurança contra os perigos da rua.
O mundo se reduziu ao precioso espaço doméstico. Todavia, um olhar mais atento permite ver o quão nefasto isto pode ser.
Quem adotou definitivamente o trabalho em casa, como eu, logo começou a espreitar as sombras do desequilíbrio e a sentir que outras consequências não tão boas começaram a aparecer, como a invasão de uma jornada elastecida no espaço que haveria de ser dominado pela liberdade de fazer qualquer outra coisa e até de não fazer nada. Os meus dias se fragmentaram em até três turnos e até nos fins de semana me vejo envolvida com obrigações laborais.
Ao tempo em que eu trabalhava fora de casa, saía num dado horário e retornava algumas horas depois, quando concluídas minhas atividades do dia. Ficava para o dia seguinte a continuação de minhas tarefas. De volta ao lar, não fazia mais nada além do convívio com a família, do cuidado comigo mesma, com a casa, com minhas leituras etc. O meu tempo era melhor utilizado do ponto de vista humano. É até um pouco clichê falar desta forma, mas a questão é que, de fato, hoje, com praticamente todas as minhas horas dentro de casa, convivo menos com tudo o que me dá prazer.
Virei escrava do trabalho remoto. Espalho minhas atividades de manhã, de tarde e de noite, chegando às vezes a fazer alguma coisa pouco antes da meia noite, quando o certo seria eu estar fazendo a higiene do sono, comendo alguma coisa leve antes de dormir ou apenas não me preocupando com a dor no ombro de uma dia inteiro sem ergonomia.
O resultado disso é que me sinto controlada pelo que preciso realizar, ao contrário de controlar. É como se eu estivesse em permanente sobreaviso, igual àqueles trabalhadores que usam um bip na cintura para atender a demandas inesperadas. Ter bastante tempo em casa me fez esquecer que posso exercitar o ócio. Péssima estratégia. É como estar e não estar em casa ao mesmo tempo.
Nestas horas em que as demandas pessoais forçam a um remanejamento, vale botar o senso crítico em ação para desenvolver uma maneira de trabalhar com eficácia sem sacrificar o tempo livre valioso a que devemos nos dar. Resgatar momentos de mera contemplação permite redescobrir a plenitude de viver.
Saber dimensionar o tempo para o trabalho permite um delicioso convívio com quem dividimos o mesmo teto, assim como uma trégua das horas para os cuidados conosco, os encontros com pessoas especiais, o lazer e até para uma meditação, que, longe se ser um luxo, é o dolce far niente mais merecido.

Perfeito. Perdemos nossa liberdade em nossa própria casa. Parece que sempre somos vigiados. Até postar fotos na academia gera um certo receio...
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