sexta-feira, 29 de março de 2024

 PAIXÃO DE CRISTO


            Hoje é dia 29 de março de 2024, uma sexta-feira santa, feriado católico conhecido como Paixão de Cristo ...e meu aniversário também, uma coincidência que sempre marcou minhas comemorações ao longo da vida e as datas sagradas. Nasci, inclusive, num domingo de Páscoa. Este entrelaçamento no calendário, de alguma forma, construiu alguma parte de minha memória afetiva.

            Por toda a vida sempre ouvi que a Páscoa guarda um significado mais emblemático que o próprio Natal, por indicar renascimento, renovação, e comemorar mais um ano de vida entre as celebrações cristãs talvez tenha contribuído para que eu me reconheça há tempos como uma pessoa às voltas com pensamentos sobre transformações pessoais no reino da minha alma. 

           Sinto-me feliz em poder comemorar meu dia numa data tão importante para o mundo cristão, uma espécie de privilégio que uso como pretexto para pensar de um jeito diferenciado, considerando a saga da principal personagem histórica relacionada à data de hoje: Jesus Cristo.

            O grande homem que lutou para inscrever sua verdade no mundo foi execrado e punido, tendo-lhe sido imposta a pena máxima. Que ousadia a sua, querer elevar a consciência da humanidade para um grau de maior elevação! Acabou pagando com a própria vida por seu ato revolucionário de querer implantar nas pessoas uma mentalidade que as fizessem melhores como seres humanos, mediante o despertar do amor e da caridade para com seus semelhantes. Jesus Cristo foi julgado criminoso em seu tempo aos olhos do poder então instituído, porque desafiou as autoridades, enfrentou o status quo de uma sociedade moralmente corroída.

            Mesmo em meio a tantas dificuldades, Jesus Cristo teve essa imensa coragem, sendo fiel à verdade que habitava em seu âmago, jamais cedendo a pressões externas. Enquanto isso, nós, pobres criaturas amedrontadas, recuamos de nós mesmos, tememos ser verdadeiros no meio em que vivemos, sentimo-nos ameaçados pelo julgamento alheio, sufocamos nossos princípios para nos adequarmos às convenções sociais, e isso na minúscula escala que envolve o nosso próprio umbigo.

           É pena que, muitas vezes, não tomemos o exemplo de Jesus para vivenciarmos nossa verdade interior e particular, a qual deixamos de manifestar por puro medo de ser quem somos em essência. Em vez disso, optamos pelo caminho ilusório das máscaras sociais, usando-as como falso antídoto, esperando encontrar segurança numa existência somente cheia de um vazio de autenticidade, isto é, uma ilusão de proteção contra um mundo hostil.

            Diferentemente de Jesus Cristo, guardadas as devidas proporções e graças ao bom Deus, não pagaremos com a própria vida pelo ato corajoso de vivermos em conexão com nossa própria verdade. Ao contrário, esta vem a ser a fórmula para fazer nascer o amor, primeiro por nós mesmos e, consequentemente, pelos demais.

            Uma vida permeada pela verdade representará a paz interior que todos almejamos, assim como a expressão das emoções genuínas, ao contrário de uma busca pela adequação a expectativas externas ou padrões impostos socialmente.

            A honestidade consigo mesmo implica também na assunção de responsabilidade pelas ações próprias, como meio de se atingir maior integridade e liberdade.

quarta-feira, 20 de março de 2024

 PALCO E BASTIDORES


            Há tempo de palco e tempo de bastidores. Normalmente, desempenho minha vida nos bastidores, atrás das cortinas, onde ninguém sabe dos meus roteiros escritos e reescritos, dos meus ensaios repetidos até a perfeição desejada, das minhas tensões para brilhar. É o lugar onde tudo está oculto para o grande público, que não chega a saber de todo o trabalho feito para o bom espetáculo. Ali onde os holofotes não mostram as dores, as incertezas, os esforços, o empenho, a hesitação, as dúvidas, além dos calos, das quedas, das pernas cansadas, dos olhos vermelhos de um choro muitas vezes não compreendido. 

            Somos artistas em nossas próprias vidas. Desempenhamos papeis e interpretamos o tempo todo os scripts aprendidos desde a infância. Fazer faculdade na pós-adolescência é o costume, já na idade madura...para quê? Subverter a ordem esperada das coisas...com qual finalidade? O palco da existência parece exigir atuação impecável e por isso tememos a desaprovação quando nos atrevemos a fugir do esperado.

            Tive de arranjar respostas rápidas para as inúmeras vezes que me perguntaram o porquê de eu ter voltado aos bancos escolares nesta altura da minha vida. Devo ter inventado as mais variadas explicações, pois, na verdade, nem eu sabia, apenas queria estar ali, aprender, ganhar conhecimento, divertir-me!

            No teatro da vida seguimos os trilhos conhecidos, até porque somos desejosos de aplauso e do amor dos nossos expectadoresPeriga ficarmos muito tristes por não sermos ovacionados quando nossa personagem resolve se desviar do texto decorado.            

            Então hoje venho falar do outro lugar que resolvi ocupar, corajosamente, em minha jornada. Hoje vou ficar à frente do pano de veludo vermelho, vou protagonizar, vou brilhar.

            Hoje é meu dia de ocupar o palco, onde vou desempenhar o papel de formanda, após cinco anos dedicados à vida acadêmica. Hoje estarei à frente da cortina como prêmio por tanta energia investida, pelos olhos cansados por muito ler, pelo corpo amolecido que muitas vezes pedia o silêncio do meu quarto, pela dedicação a provas, trabalhos e seminários. Estarei eu ali, a personagem das mais de mil e uma noites fora de casa, cumprindo minha parte na aposta por um conhecimento transformador. Psicologia é isso: transformação.

            Acontece hoje a minha noite de festa. O palco será meu, com gratidão a tudo e a todos, e as luzes estarão voltadas para mim. Chegou o momento de eu receber meu canudo de psicóloga, o papel símbolo das batalhas que travei. Sinto-me pronta para este momento tão esperado onde serei aplaudida, especialmente, por mim mesma.

segunda-feira, 11 de março de 2024

 QUE MORRAM

            Cansei deles: dos medos que se infiltraram em mim ao longo da minha vida. Cansei de senti-los como alma penada me rondando, como aquele médium que não vê espíritos mas ainda assim sente sua forte presença. Cansei de manter com eles um condomínio do meu próprio ser que é só meu. Cansei dos medos que costumam ser fortes a ponto de me confundirem a respeito de quem comanda minhas decisões. São dissimulados, ardilosos, teimosos. 

            Cansei de ceder espaço a eles, esses monstros ladrões de energia que nunca me deram nada em troca, exceto paralisia e prostração. Cansei de ceder ao uso de algemas imaginárias, colocadas em meus pulsos por autoridades imaginárias disparadoras de comandos também imaginários. É muita fantasia dominando a situação.

            Cansei de recuar de mim para obedecer a receios insanos que, mesmo que fossem existentes, não teriam o direito de me furtar aquilo que é inerente e profundamente meu: a minha liberdade.

            Decidi dar passagem ao meu instinto bestial e agarrá-los à unha, como fera raivosa que ataca seu inimigo maléfico, soltando urros com espumas de baba na boca e enfiando minhas garras como convite à morte deles. Decidi dar socos e pontapés até meus cabelos ficarem emaranhados de tanto sacudirem, assim como furá-los até sangrarem e liberarem o pus nojento que carrega o potencial da doença invisível.

            Vou dar gritos de guerra para que mais forças surjam das minhas entranhas, dando passagem à agressividade como um Rottweiler inoculado pela raiva, mas se nada disso funcionar, vou lançar mão de marteladas ritmadas, como quem está tomado pelo prazer de uma perversidade autorizada.

            Não terão condições de defesa, pois não lhes darei o direito à igualdade de armas e porque não há confronto entre iguais nesta luta.

            Depois de mortos e quando eu já tiver parado de babar de fúria e dado risada de suas tentativas agonizantes de alguma sobrevida, vou pisotear em cima deles, por terem tentado me aniquilar por anos. Farei minhas necessidades sobre suas cabeças para deixar bem claro o meu diabólico gozo pelo duelo valendo a minha autonomia.

           Depois de tudo isso, cansada que estarei e com o troféu da conquista em mãos, sentarei na sarjeta mais próxima para bradar que venci e dizer ao mundo que ali está um ser humano em essência, livre, em paz, sem possibilidade de dar abrigo ao que não é nem nunca foi seu. Ali estarei eu pensando e sentindo o sabor da vitória, pronta para me lançar pela vida, correr riscos voluntários, enfim, crescer.

            Vou sair dali e perambular sem relógio, nem roteiros ou mapas. Vou me reconciliar com a minha verdade antes sequestrada pela própria imaginação. O máximo que farei pelo que sobrar deles, dos medos, será  enterrá-los em uma sepultura sem o menor esforço para identificá-los com um 'aqui jaz...'. A morte dos medos será o triunfo da minha existência e a homenagem à vitória que darei aos céus com meus dois braços levantados ao estilo de uma saga épica.

           E em meu peito reluzirá o diamante da vida, como que ao som de uma orquestra inflamada em cujo refrão o maestro sacode seus cachos grisalhos enquanto movimenta as batutas por meio de seus braços. Executarei toda essa aniquilação bem no momento das notas mais graves de violoncelos e contrabaixos, bem no momento em que minhas vítimas já terão sucumbido a algum ímpeto de clemência.

            A única maneira de crescer é expor-se ao mundo, experimentar a vida, por mais perigosa que ela nos pareça.



Fonte da imagem: https://segredosdomundo.r7.com/o-que-fazer-se-voce-for-atacado-por-cachorro/