segunda-feira, 11 de março de 2024

 QUE MORRAM

            Cansei deles: dos medos que se infiltraram em mim ao longo da minha vida. Cansei de senti-los como alma penada me rondando, como aquele médium que não vê espíritos mas ainda assim sente sua forte presença. Cansei de manter com eles um condomínio do meu próprio ser que é só meu. Cansei dos medos que costumam ser fortes a ponto de me confundirem a respeito de quem comanda minhas decisões. São dissimulados, ardilosos, teimosos. 

            Cansei de ceder espaço a eles, esses monstros ladrões de energia que nunca me deram nada em troca, exceto paralisia e prostração. Cansei de ceder ao uso de algemas imaginárias, colocadas em meus pulsos por autoridades imaginárias disparadoras de comandos também imaginários. É muita fantasia dominando a situação.

            Cansei de recuar de mim para obedecer a receios insanos que, mesmo que fossem existentes, não teriam o direito de me furtar aquilo que é inerente e profundamente meu: a minha liberdade.

            Decidi dar passagem ao meu instinto bestial e agarrá-los à unha, como fera raivosa que ataca seu inimigo maléfico, soltando urros com espumas de baba na boca e enfiando minhas garras como convite à morte deles. Decidi dar socos e pontapés até meus cabelos ficarem emaranhados de tanto sacudirem, assim como furá-los até sangrarem e liberarem o pus nojento que carrega o potencial da doença invisível.

            Vou dar gritos de guerra para que mais forças surjam das minhas entranhas, dando passagem à agressividade como um Rottweiler inoculado pela raiva, mas se nada disso funcionar, vou lançar mão de marteladas ritmadas, como quem está tomado pelo prazer de uma perversidade autorizada.

            Não terão condições de defesa, pois não lhes darei o direito à igualdade de armas e porque não há confronto entre iguais nesta luta.

            Depois de mortos e quando eu já tiver parado de babar de fúria e dado risada de suas tentativas agonizantes de alguma sobrevida, vou pisotear em cima deles, por terem tentado me aniquilar por anos. Farei minhas necessidades sobre suas cabeças para deixar bem claro o meu diabólico gozo pelo duelo valendo a minha autonomia.

           Depois de tudo isso, cansada que estarei e com o troféu da conquista em mãos, sentarei na sarjeta mais próxima para bradar que venci e dizer ao mundo que ali está um ser humano em essência, livre, em paz, sem possibilidade de dar abrigo ao que não é nem nunca foi seu. Ali estarei eu pensando e sentindo o sabor da vitória, pronta para me lançar pela vida, correr riscos voluntários, enfim, crescer.

            Vou sair dali e perambular sem relógio, nem roteiros ou mapas. Vou me reconciliar com a minha verdade antes sequestrada pela própria imaginação. O máximo que farei pelo que sobrar deles, dos medos, será  enterrá-los em uma sepultura sem o menor esforço para identificá-los com um 'aqui jaz...'. A morte dos medos será o triunfo da minha existência e a homenagem à vitória que darei aos céus com meus dois braços levantados ao estilo de uma saga épica.

           E em meu peito reluzirá o diamante da vida, como que ao som de uma orquestra inflamada em cujo refrão o maestro sacode seus cachos grisalhos enquanto movimenta as batutas por meio de seus braços. Executarei toda essa aniquilação bem no momento das notas mais graves de violoncelos e contrabaixos, bem no momento em que minhas vítimas já terão sucumbido a algum ímpeto de clemência.

            A única maneira de crescer é expor-se ao mundo, experimentar a vida, por mais perigosa que ela nos pareça.



Fonte da imagem: https://segredosdomundo.r7.com/o-que-fazer-se-voce-for-atacado-por-cachorro/

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