terça-feira, 28 de outubro de 2025


MÁRIO

           No colégio em que cursei o ensino fundamental, de quase nada eu lembro a respeito de biologia, química, física e outras matérias. A maior parte do que aprendi fugiu da minha cabeça como pecado em dia de confissão, ao contrário da língua portuguesa. Aquelas freiras mandaram bem nesta parte, praticamente, gravando a ferro para sempre na minha pele as regras de gramática.

            Uma das coisas que jamais esqueci foi o MÁRIO. Mário não era um colega de classe, era um acrônimo, um macete, feito para decorar a conjugação de alguns verbos irregulares, cujas iniciais juntas dão a pista de quais são: Mediar, Ansiar, Remediar, Incendiar, Odiar. Estão incluídos aí os verbos Atear e Intermediar. Uma lista de operações humanas, na verdade.

            Vamos lá! Diga em público 'eu remedeio' e quase passará vergonha. Todavia, é o certo. Ainda que pareça estranho aos ouvidos, também é certo falar 'eu medeio', 'eu anseio', 'eu odeio' e 'eu incendeio'. Isso mesmo. Dói no ouvido, por exemplo, um 'eu incendio'. Mas ok, neste último caso até há um alívio, um lado positivo desta impropriedade, pois indica não ser comum sair por aí confessando incêndios, exceto no sentido amoroso do tipo 'você incendeia meu coração'! Daí pode incendiar à vontade. É licença poética para que o ato de incendiar role fácil na boca, como talvez dissesse Drummond. 

         Já não é o caso do verbo odiar. Todos dizem corretamente 'eu odeio' e não 'eu odio'. Eu sinto muito que todo mundo saiba conjugá-lo perfeitamente. Certos venenos se revestem de exatidão. Entre todos, é o verbo mais comum, mas bem que poderia ser o menos usado na linguagem. Ninguém erra ao falar que odeia. O psicanalista francês Jacques Lacan dizia que a ponta da língua entrega o coração, isto é, nós nos denunciamos por meio de nossa fala. No caso do 'eu odeio' então, é fala correta em demasia! Infelizmente, a gramática é impecável no caso deste verbo, por dizer respeito a um sentimento inútil e prejudicial.

            O 'eu anseio' é outro que está muito na moda ultimamente. Todos anseiam por algo. É o verbo da ansiedade. Também nunca vi alguém falando 'eu ansio'. O verbo ansiar combina com a época em que vivemos, porque é o verbo da inquietação. Eu desejaria até que pouquíssimas pessoas soubessem da sua existência e que meus ouvidos fossem atacados algumas vezes por causa de um equívoco na sua conjugação. Mas não. Hoje em dia muita gente anseia por muita coisa e talvez por isso é que saiba falar direitinho.

        Já os verbos mediar e intermediar são menos comuns, quase ingênuos, pouco usados. Muito gostoso seria escutar todos falando precisamente 'eu medeio' e 'eu intermedeio'. São pacificadores, porque expressam ação relacionada aos acordos e à solução dos conflitos, na qual, uma terceira pessoa, neutra e imparcial, facilita o diálogo entre duas partes, para que elas construam algo melhor do que suas posições originais. Mas o mundo parece carecer de mediação e intermediação. O macro e o micro mundo. Das guerras entre as nações até as batalhas íntimas de cada um. 

            Enfim, a linguagem revela que somos peritos em odiar e ansiar, ao contrário de mediar e intermediar, verbos que ficaram esquecidos no caderno, à espera de serem usados. O MÁRIO, mais do que uma lição, soa como um retrato de nós mesmos, especialistas em conflitos e amadores em soluções pacíficas. Somos a espécie que sabe odiar e ansiar com precisão, mais do que mediar lutas e intermediar combates.


            

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

 ENTRE PRATOS E PRANTOS


            Meu professor de pós-graduação em psicanálise, citando um autor lido por ele, encaixou no meio da aula uma aliteração interessante: Vivemos entre pratos e prantos! Aliteração é o recurso linguístico de juntar palavras acusticamente similares, porém, absolutamente diferentes em seus significados. 

            Os termos 'pratos' e 'prantos' não compartilham qualquer etimologia, mas juntos, formaram uma metáfora, que, por sua vez, é outro recurso linguístico em que palavras são usadas no lugar de outras para a obtenção de sentidos diferentes dos que lhes são usuais. Guardam uma associação apenas simbólica.

            Gosto bastante da linguagem metafórica para dar vazão a pensamentos e sentimentos. É como uma fala cifrada que, paradoxalmente, expressa melhor a ideia central que se pretende transmitir. Acho até que, em alguns casos, a literalidade das palavras atrapalha e é bem menos exitosa na transmissão fiel da mensagem. 

             Mas, voltando, o que pratos tem a ver com prantos? Nada. Por isto é que foi genial quem, usando um jogo de palavras, conseguiu resumir ao máximo o que é o viver nosso de cada dia.

            Começou com alguém que, a título de espetáculo circense, equilibrou diversos pratos ao mesmo tempo para mostrar seu talento em não os deixar caírem, coisa que o senso comum acabou por incorporar como forma de dizer que a vida é um constante exercício para impedir a queda e a quebra dos nossos "pratos". Indica a árdua tarefa de darmos conta das obrigações que temos e dos papéis que desempenhamos. Já o pranto é choro, lágrima, lamento.

            Vivemos entre pratos e prantos!  É o mesmo que dizer que vivemos em constante combate contra as perdas porque tememos ter que lamentar quando elas são inevitáveis. No cenário do teatro existencial ninguém escapa de perder e chorar. Ninguém sai desta vida sem louças quebradas e lágrimas derramadas. A vida é luta e luto.

            A frase é uma forma poética e até divertida de descrever a essência da condição humana. Refere-se à tragicomédia da nossa experiência neste mundo, à dualidade da vida, à coexistência de batalha e dor, ao drama do cotidiano regado de emoções.

            Eis que a vida é essa coisa que nos faz artistas de circo, malabaristas na corda bamba dos dias, enfrentando o risco das quedas.