domingo, 28 de novembro de 2021


                                 


                                                            MORTE E VIDA

       Ter medo da morte é, quiçá, a coisa que mais equaliza todos os seres humanos, incluídos aí aqueles que propalam, ingenuamente, o seu desprendimento em relação a este inevitável destino. É o tipo de temor bem democrático, por atingir a todos, indistintamente. Chamava-se Tânatos o deus grego da morte, e Mors o seu equivalente romano, a quem era atribuída a dimensão cruel da vida, bem como o seu doce poder libertador, num outro sentido. Seu nome aparece encoberto na etimologia de vários termos de nossa linguagem, como eutanásia, tanatologia, tanatose, tanatofobia, entre outros, todos eles ligados ao tema da morte. Não por acaso Freud deu o nome de Tânatos à nossa pulsão de morte, que faz par com nossa pulsão de vida, inconscientes, claro.

        A morte é natural, difícil é aceitá-la. E de tão natural, provoca-nos certo fascínio. Talvez por ser a baliza da vida, já que vivo é quem não está morto. Aliás, há quem já esteja morto em vida e há quem esteja até mais vivo do nunca, mesmo depois de morto, como Vadinho, um dos dois maridos de Dona Flor. Há quem viva eternamente também devido ao importante legado que deixou, permanecendo na memória de muita gente. A morte é tema da ciência, da religião, das artes, da filosofia e toda esta ênfase destina-se a uma só coisa: a imortalidade. O certo é que ninguém passa incólume pela vida sem um dia, ao menos, ter pensado no fim e, talvez seja todo esse poder que faça da morte o verdadeiro sentido da vida, servindo-nos de parâmetro pra avaliar a qualidade do nosso tempo neste mundo.

        Assim, ao invés de protestarmos contra a morte, que tal aproveitarmos para, enquanto vivos, tomá-la como uma força encorajadora da expressão dos nossos desejos, evitando sermos uns vivos-mortos, quero dizer, vivos no corpo e mortos na satisfação? Que tal ter na ponta da língua a diferença entre existir e viver? Os animais existem, porque não sabem que morrerão; nós, não, vivemos porque temos consciência do fim. Por isso nosso intervalo de vida aqui neste planeta há de ser o mais intenso, alegre, compensador possível. Negar a morte, fingir que ela não existe, é não viver extraordinariamente, é equiparar nossos dias à linha reta do eletrocardiograma. Por isso sou adepta de um bate-papo sobre esta grande mestra, deixá-la rondar nossa mente pra lembrar o quanto desperdiçamos preciosas oportunidades.

          Mas sou mais adepta mesmo é de gritar aos céus, para que escutem todas as pessoas que já se foram deste mundo, que, infeliz e inutilmente, se preocuparam demais com o que nós, os vivos desconhecidos de hoje, pensaríamos a respeito de suas vontades tolhidas, caso tivessem sido loucamente satisfeitas, e de seus ímpetos de vida, tristemente recolhidos. Agora estão lá, não sei onde, sequer sabendo que nós aqui aplaudiríamos sua coragem de viver intensamente!


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

 

                                                        ZONA DE CONFORTO


         Dias atrás fui ao shopping pra resolver pequenas coisinhas. Pra mim é o tipo de lugar perfeito, pois num só endereço podemos dar uma incrementada no guarda roupa, renovar os utensílios da cozinha, dar uma chegada na farmácia, fazer um lanche e ainda ganhar relaxamento. Como eu sabia que ficaria umas três horas perambulando por lá, saí de casa com meu par de sapatos mais confortável, de salto baixo e acolchoado por dentro. Já tinha ido a vários lugares com ele em outras ocasiões, e o bendito fora sempre fiel aos propósitos que me fizeram comprá-lo.

        O triste é que não consegui ficar lá pelo tempo a que me propus e meu divertimento foi por água abaixo. À certa altura meus pés logo começaram a reclamar formando bolhas bem doloridas, tal qual um alarme me dizendo pra ir embora urgentemente. Sem conseguir fazer metade do planejado, só deu mesmo pra ir mancando até o estacionamento, pegar o carro e dirigir descalça de volta pra casa e, depois disso, encarei uma semana inteira só andando de Havaianas pra não piorar o quadro.

        Em minha cabeça veio a dúvida óbvia: será que andei demais? Pior que não, foram apenas umas poucas voltas e, paralelamente, sequer cogitei ter escolhido o sapato errado, afinal julguei-o o mais bem cotado para aquela missão.  Então, se não havia exagerado na quantidade de passos que dei, só uma coisa poderia ter acontecido: fui infeliz na escolha daquele par azul marinho de verniz, e aquelas bolhas doídas me sinalizavam o ponto final da antiga parceria.

       Foi imediata minha conclusão, pelo método de tentar enxergar adiante do que o cotidiano nos permite: nem tudo o que é confortável é sinônimo de agradável, bom ou merece ser mantido, necessariamente. Muitas vezes é tudo uma questão de costume ou de uma falsa percepção de que estamos protegidos sem percebermos os machucados escondidos. É a tão famosa zona de conforto que, ao mesmo tempo, nos atrai, mas também nos engana, pois impede voos mais ousados em direção a mundos e situações diversas. O agradável conjunto de ações, pensamentos e comportamentos a que estamos habituados e que nos blindam contra medos, riscos, ansiedades e angústias são como trilhas bem conhecidas pelas quais andamos e já sabemos onde dará, mesmo sabendo que nosso encontro será com dores. Que tal experimentar algo novo dentro dos limites da ética que cada qual adota para sua vida? Que tal descer em outras estações? Que tal sair da caverna? Que tal?

        Penso que a ideia de bem-estar e comodidade acaba sendo um tanto relativa, já que até sofrimentos a que estamos acostumados nos dão a falsa sensação de conforto. Atentar-se para outras formas de olhar a vida, atrever-se a andar por caminhos desconhecidos ou arriscar o novo nem sempre é prenúncio de bolhas doloridas, ao contrário, poderá nos tornar mais adaptáveis e hábeis na tarefa de solucionar outras dificuldades. Nosso leque de habilidades se amplia e talvez nossa biografia ou nosso livro de histórias possam ficar mais gordinhos.

       

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

 

                                                          

                             ESPELHO DA ALMA

            Não é de hoje que adoro metáforas. Elas condensam sentidos. Expressam muito significado com poucos recursos linguísticos. Dizem com outras palavras aquilo que com as palavras certas, às vezes, não conseguimos exprimir. Encurtam caminhos. Deixam as coisas subentendidas. É também a linguagem do inconsciente, porque expressa conteúdos latentes, como Freud teorizou. Usar metáforas me parece um bom exercício de retórica, com a vantagem de poder ser também uma ferramenta de reflexão.

        Hoje mesmo não pude deixar de exercitar meu talento para construir paralelos me aproveitando da cirurgia para retirada de catarata do olho da minha mãe, que vinha, há um bom tempo, enxergando tudo borrado. Pra começar, fiquei pensando naquela máxima popular de que os olhos são o espelho da alma e no porquê de esse problema de visão ser conhecido com o nome de catarata. Pra quê!!! Minha cabeça voou. Comecei pensando que catarata, pra mim, é uma água que não tem fim, que escorre em forma de avalanche, que faz barulho e respinga em quem está por perto. As mais de dez viagens que já fiz a Foz do Iguaçu não me deixam mentir. 

        Será que quem tem catarata nos olhos sofre do acúmulo de lágrima? Eis aqui uma comparação que acabei de inventar como desculpa pra filosofar.Teria minha mãe enfrentado as barras da vida tentando ser forte e, por dentro, segurando uma baita vontade de chorar? E daí chega um dia em que a alma dela endereça ao corpo (olho) um sintoma, na verdade um recado, que há tempos vinha tentando entregá-la dizendo algo como: - Que tal ver tudo de uma forma diferente? Então, será a catarata uma espécie de metáfora ou linguagem do distúrbio ocular? Terá sido uma forma de convite para enxergar tudo mais nitidamente, num sentido mais metafísico? 

        Quem sabe as perturbações que nos impedem de enxergar com os olhos do corpo revelem, simbolicamente, a dificuldade de vermos um outro lado da vida. Ou talvez tudo não passe mesmo de mera vontade minha de transformar em filosofia o que a vida traz.

        Alguém diria que sim, que tudo não passa de um romantismo bobo meu, pois todo mundo tem ou vai ter catarata um dia na vida e, portanto, nada a ver minhas analogias usando os males do corpo. Mas daí pergunto: todos nós não teríamos bons motivos para que uma catarata nos olhos nos servisse de convite a enxergar tudo com clareza com respeito à nossa jornada nesse mundo? Pra mim isso é cristalino, aliás, é o cristalino dos olhos a estrutura afetada na catarata...portanto, tudo se encaixa nessa minha lógica de sabedoria recém inventada! Dá pra afirmar que nem Freud enxergava tão bem seu próprio umbigo, sendo ele próprio quem defendeu a ideia dos sintomas físicos como recados do inconsciente.

        De qualquer modo, seja ou não a alma da minha mãe trazendo-lhe a catarata como linguagem para sugerir uma nova visão de mundo, a verdade é que sempre é bom tirar as vendas de nossos olhos internos e ver com mais nitidez as cores da nossa caminhada.