segunda-feira, 28 de março de 2022


  

        Hoje é o meu aniversário. Sempre gostei muito de ter nascido neste dia, na época das águas de março fechando o verão, a la Tom e Elis, quando se inicia o outono aqui no hemisfério sul e o friozinho já começa a dar o ar da graça nas terras subtropicais do nosso país. Vim ao mundo num domingo de Páscoa, trazida pelo coelhinho, e por esse motivo é que a estória da cegonha nunca fez sentido para mim. Nascida sob o signo de Áries, sou a criança do zodíaco, quero tudo na hora, não sei esperar. Marte é o meu planeta regente, o deus da guerra na mitologia romana, e talvez isso explique porque sou tão briguenta e combativa, apesar de não parecer.

         Organizei-me já para receber em minha casa as pessoas que mais amo. Vou ganhar abraços e desfrutar dos meus afetos mais caros. Vou ser o centro das atenções. Vou ganhar amor e ouvir de novo de meus familiares as famosas histórias da infância, uma tradição anual que nunca deixa de acontecer. Já pressinto minhas estrepolias de outrora expostas na mesa do almoço. 

        Dizer que a gente sente os aniversários como um ano a mais de vida é um baita clichê que soa bastante óbvio, eu sei. Bem por isso, resolvi adotar um outro critério de contagem do meu tempo de vida para, ao invés de olhar o que passou, abrir-me para tudo o que será novo daqui para frente, a partir da postura  otimista de que cheguei exatamente na metade do caminho, começando uma espécie de 'segundo semestre' das minhas vivências. Talvez porque certa vez pedi ao universo para viver mais de cem anos com saúde e disposição. Então, pelas minhas contas, inicio hoje o meu período de 'julho a dezembro' desta vida comparada ao período de um ano.

        E se assim for, posso dizer que começo já a entrar em meu 'julho' de férias, descansar um pouco, recolher-me, acumular energia para me divertir, encorajar-me para o que nunca fiz e me lançar para o 'agosto' vindouro, isto é, um novo período de construção de outros projetos, avaliação dos meus erros e acertos de até então para, com muita vontade, encarar uma segunda profissão e começar outra história. Já trilhando um novo caminho, darei as boas vindas à primavera da minha vida, época que, nessa lógica, será o meu 'setembro' florido, a estação da beleza na alma que venho plantando, das novas frutificações, dos recomeços e da colheita. Virá em sequência meu 'outubro', quando espero encontrar a serenidade e a tranquilidade merecidas, a aceitação do que já passou, o orgulho das rugas por risos e sorrisos, a consolidação de meus aprendizados, após o qual meu 'novembro' se anunciará, quando ainda almejarei ter pernas fortes para viajar bastante, curtir meus novos descendentes, ter outros desafios, usufruir de uma mente cada vez mais ativa.

        Finalmente, entrarei em meu 'dezembro', já perto dos cento e poucos anos de vida, quando será o tempo de dizer obrigada por tudo, pela oportunidade de ter existido, amado, aprendido, conhecido tantas pessoas incríveis. Vou estar bastante cansada, mas ainda disposta para erguer as mãos ao céu e oferecer minha gratidão. Quero chegar no meu, digamos, Réveillon nesse planetacom alegria e felicidade por saber que minha vida valeu cada segundo e que, bem ao final, a contagem regressiva começará para marcar minha ida a um plano de vibração divina, onde chegarei acompanhada de fogos de artifício, porque a vida jamais se acaba, apenas muda de lugar e recomeça.

terça-feira, 8 de março de 2022

 MULHERES POR UM DIA



        Queria, por um dia só, que todos os homens soubessem o que é ser mulher.

        Experimentariam o sangue escorrendo por entre suas pernas e sentiriam cólicas parecidas com facadas, enxaquecas e ficariam surpresos com nossa alegria de viver mesmo tendo que suportar esta sina da natureza. Chorariam e teriam raiva sem saber muito bem o motivo e sentiriam em seu corpo a força aterradora dos hormônios. Perceberiam em seus corpos o potencial de uma gestação e temeriam as subsequentes e inevitáveis modificações, assim como temeriam as dores do parto e saberiam que amamentar é, antes de qualquer coisa, uma prova de fogo.

        Teriam que encontrar disposição para trabalhar, além das demandas da família e da casa. Teriam que desempenhar seus afazeres domésticos com filhos querendo seu colo e teriam que deixar para depois um rápido descanso no sofá com as pernas para cima. Os "mulheres por um dia" sentiriam o peso da obrigação social de se regozijarem com a maternidade como papel imposto como bênção inquestionável.

        Sofreriam com os padrões de beleza impostos pelas mídias sociais e entenderiam a dor de ser reduzida a um mero objeto sexual, assim como teriam medo de usar uma roupa justa ou de andar em qualquer lugar, a qualquer hora com liberdade. Saberiam o desconforto de ter que se esconder em panos para suas curvas não despertarem a fúria de machos excitados. Sentiriam a ameaça de um estupro.

        Saberiam como é ser obrigada a sentar de pernas fechadas para não serem criticados pelo seu jeito considerado pouco elegante, teriam de falar baixo ou não falar certas coisas para não serem julgados, queimados, açoitados ou até mortos. Teriam de se submeter à repressão dos seus desejos disfarçada de bons costumes sociais. Teriam vontade de esbravejar contra injustiças motivadas pela sua mera condição feminina.

        Lutariam por um espaço no mundo que já é seu, mas que foi suprimido, assim como batalhariam pela igualdade de oportunidades e direitos, porque garantidos apenas no papel. Os "mulheres por um dia" saberiam como é difícil fazer sempre o dobro ou o triplo para provar que também possuem inteligência e capacidade, assim como teriam vontade de dizer que ser doce o tempo todo, por exigência social, cansa muito. Experimentariam na pele o estigma da inferioridade. Saberiam que o mito da heroína perfeita é perturbador, porque não existe.

        Conheceriam a crueldade como lugar comum, a violência em atos e palavras. Saberiam o que é não gozar dos privilégios sociais a que os homens estão acostumados. Saberiam que força física não é poder.

        Contudo, adorariam sentir que em suas entranhas habita uma força diferente. Adorariam conseguir pensar e fazer cem coisas ao mesmo tempo. Entenderiam como bate um coração feminino e sentiriam a sensibilidade no olhar. Saberiam que as dificuldades sofridas não nos abatem, pois são combustível para a transformação. Aprenderiam estratégias sutis de avanço e recuo para conseguirem seus objetivos. Ficariam surpresos com a quantidade de ardis usados para conquistar um amor.

        Discordariam totalmente da existência de um 'sexo frágil' e reformulariam muitas de suas opiniões, bem como se arrependeriam de nunca terem se colocado antes nesse lugar, como ato de empatia para entender pelo que passa uma mulher num mundo moldado pelo masculino. Os "mulheres por um dia", apesar de nossas dores, teriam vontade de ser mulher.

        Concordariam com Simone de Beauvoir, para quem "ninguém nasce mulher, torna-se mulher" e entenderiam que se tornar mulher é um caminho difícil, ainda que muito compensador.

        Feliz dia internacional da mulher.

        




quarta-feira, 2 de março de 2022

        

NEM A GUERRA SEPARA



        Meu avô materno, Waldemar Werner, entre tantos labores que desempenhou, era também escritor. Escreveu mais de três mil crônicas em papéis que hoje, já muito amarelados pelo tempo, guardo comigo como joia preciosa. Relatava fatos interessantes, todos verídicas. Abordavam política, história, costumes, pontos de vista. Cresci vendo-o diante da máquina de escrever barulhenta, com seus óculos de armação preta e lentes grossas, sempre segurando o cigarro entre os dedos amarronzados pela fumaça de tantos anos. Dele herdei a veia literária e o gosto pela leitura.

        De quando em quando leio suas produções como forma de minimizar a saudade que tenho dele. Encantei-me recentemente com um de seus relatos escrito há cinquenta e seis anos e, por estarmos vivenciando um cenário mundial de guerra, reproduzo a seguir essa história emocionante:


        "Nícolas é o seu nome. Nasceu num dos famosos protetorados alemães de antes da Segunda Guerra Mundial.
        Quando esta eclodiu, mandaram Nícolas - que então era jovem e afeito às lides agrícolas - para a Rússia, nas proximidades da cidade de Odessa. Ali chegando, entregaram-lhe uma gleba de terra para explorar dizendo-lhe que aquelas áreas, dali por diante, seriam propriedade alemã.
        Nícolas começou a trabalhar na lavoura e era natural que principiasse a se interessar pelo sexo oposto. As suas preferências recaíram sobre uma jovem loira, filha de descendentes de alemães e que também haviam sido deslocados de outra região.
        Veio o namoro e logo depois o noivado oficial. O casamento seria realizado quando terminasse a guerra. As coisas estavam nesse pé quando houve a resistência de Stalingrado e, logo em seguida, o início da retirada das tropas alemãs do território russo. Os noivos começaram a se preocupar e certo dia uma ordem lacônica determinava que Nícolas abandonasse o sítio dentro de duas horas.
        Desesperado, apanhou a sua bicicleta - único bem que levaria consigo - e pedalou até a casa da noiva. Resolveram, dentro do prazo estipulado de duas horas, casar-se e fizeram-no de imediato. Após o casamento, saíram pela estrada, que estava coberta de retirantes, pedalando a bicicleta. Não foram muito longe. Um ataque aéreo desfechado sobre os retirantes dizimou e dispersou quase todos eles.
        Nícolas perdeu-se de sua mulher. Esgotou todos os recursos para reencontrá-la, mas tudo foi em vão e, desolado, prosseguiu sozinho.
        Finda a guarra vamos encontrá-lo em Londres, sempre à procura de notícias da esposa. Da Inglaterra mandaram-no para o Canadá como apátrida e dali para o Chaco paraguaio, mas Nícolas não se ambientou e foi para a capital, para Assunção.
        Em Assunção, tornou a apelar para a Cruz Vermelha Internacional, sempre à procura da esposa. Os meses foram passando e certo dia ele recebeu um volumoso envelope da Cruz Vermelha Suíça. Trazia uma minuciosa lista dos retirantes de Odessa, inclusive os que haviam morrido no ataque aéreo naquela estrada.
        A Cruz Vermelha Suíça informava que, entre as mulheres que haviam escapado, figurava uma cujo nome era idêntico ao da noiva-esposa de Nícolas, mas faltavam maiores dados. Entretanto, esta mulher, por sinal, havia sido enviada para Assunção, no Paraguai, e poderia ser encontrada numa determinada casa, de uma determinada rua.
        Por coincidência, essa rua distava apenas três quadras da rua onde morava o nosso homem. Nícolas resolveu ir até aquele endereço.
        Foi e bateu! A pessoa que abriu a porta era, nada mais nada menos, que a esposa dele. Haviam se reencontrado após seis anos de intensa busca. O caminho percorrido por Nícolas já descrevi: Inglaterra, Canadá, Chaco e Assunção. A mulher, depois do fatídico ataque aéreo, foi para a Grécia, Itália, Egito, Peru e, finalmente, Assunção.
        Conheci o casal e esta história é real, contada por ambos. Quando os conheci, a Ingrid, filhinha de ambos, tinha dois anos. Hoje já deve ser uma menina-moça".