quarta-feira, 2 de março de 2022

        

NEM A GUERRA SEPARA



        Meu avô materno, Waldemar Werner, entre tantos labores que desempenhou, era também escritor. Escreveu mais de três mil crônicas em papéis que hoje, já muito amarelados pelo tempo, guardo comigo como joia preciosa. Relatava fatos interessantes, todos verídicas. Abordavam política, história, costumes, pontos de vista. Cresci vendo-o diante da máquina de escrever barulhenta, com seus óculos de armação preta e lentes grossas, sempre segurando o cigarro entre os dedos amarronzados pela fumaça de tantos anos. Dele herdei a veia literária e o gosto pela leitura.

        De quando em quando leio suas produções como forma de minimizar a saudade que tenho dele. Encantei-me recentemente com um de seus relatos escrito há cinquenta e seis anos e, por estarmos vivenciando um cenário mundial de guerra, reproduzo a seguir essa história emocionante:


        "Nícolas é o seu nome. Nasceu num dos famosos protetorados alemães de antes da Segunda Guerra Mundial.
        Quando esta eclodiu, mandaram Nícolas - que então era jovem e afeito às lides agrícolas - para a Rússia, nas proximidades da cidade de Odessa. Ali chegando, entregaram-lhe uma gleba de terra para explorar dizendo-lhe que aquelas áreas, dali por diante, seriam propriedade alemã.
        Nícolas começou a trabalhar na lavoura e era natural que principiasse a se interessar pelo sexo oposto. As suas preferências recaíram sobre uma jovem loira, filha de descendentes de alemães e que também haviam sido deslocados de outra região.
        Veio o namoro e logo depois o noivado oficial. O casamento seria realizado quando terminasse a guerra. As coisas estavam nesse pé quando houve a resistência de Stalingrado e, logo em seguida, o início da retirada das tropas alemãs do território russo. Os noivos começaram a se preocupar e certo dia uma ordem lacônica determinava que Nícolas abandonasse o sítio dentro de duas horas.
        Desesperado, apanhou a sua bicicleta - único bem que levaria consigo - e pedalou até a casa da noiva. Resolveram, dentro do prazo estipulado de duas horas, casar-se e fizeram-no de imediato. Após o casamento, saíram pela estrada, que estava coberta de retirantes, pedalando a bicicleta. Não foram muito longe. Um ataque aéreo desfechado sobre os retirantes dizimou e dispersou quase todos eles.
        Nícolas perdeu-se de sua mulher. Esgotou todos os recursos para reencontrá-la, mas tudo foi em vão e, desolado, prosseguiu sozinho.
        Finda a guarra vamos encontrá-lo em Londres, sempre à procura de notícias da esposa. Da Inglaterra mandaram-no para o Canadá como apátrida e dali para o Chaco paraguaio, mas Nícolas não se ambientou e foi para a capital, para Assunção.
        Em Assunção, tornou a apelar para a Cruz Vermelha Internacional, sempre à procura da esposa. Os meses foram passando e certo dia ele recebeu um volumoso envelope da Cruz Vermelha Suíça. Trazia uma minuciosa lista dos retirantes de Odessa, inclusive os que haviam morrido no ataque aéreo naquela estrada.
        A Cruz Vermelha Suíça informava que, entre as mulheres que haviam escapado, figurava uma cujo nome era idêntico ao da noiva-esposa de Nícolas, mas faltavam maiores dados. Entretanto, esta mulher, por sinal, havia sido enviada para Assunção, no Paraguai, e poderia ser encontrada numa determinada casa, de uma determinada rua.
        Por coincidência, essa rua distava apenas três quadras da rua onde morava o nosso homem. Nícolas resolveu ir até aquele endereço.
        Foi e bateu! A pessoa que abriu a porta era, nada mais nada menos, que a esposa dele. Haviam se reencontrado após seis anos de intensa busca. O caminho percorrido por Nícolas já descrevi: Inglaterra, Canadá, Chaco e Assunção. A mulher, depois do fatídico ataque aéreo, foi para a Grécia, Itália, Egito, Peru e, finalmente, Assunção.
        Conheci o casal e esta história é real, contada por ambos. Quando os conheci, a Ingrid, filhinha de ambos, tinha dois anos. Hoje já deve ser uma menina-moça".

        

      


Nenhum comentário:

Postar um comentário