domingo, 25 de setembro de 2022

 DEMOCRACIA 

        Em tempos de eleição no país, julgo ser oportuno tocar num ponto relacionado à essência do conceito de democracia, o sistema em que os cidadãos elegem os seus representantes para o exercício de mandato político. Contrapõe-se ao antigo e odioso sistema absolutista, pelo qual o poder era exercido pelo monarca, em quem se concentrava a elaboração, a execução e a aplicação da lei. É lindo, ainda que triste, tudo que se fez, historicamente, para ver implantado o "governo do povo, pelo povo e para o povo".

        Porém, nem tudo é perfeito, como já dizia o filósofo Platão cinco séculos antes da era cristã, para quem, entre todos os sistemas de governo existentes, a democracia é o melhor entre os piores e o pior entre os melhores, querendo dizer, evidentemente, que não é nem tão bom e nem tão ruim. Tenho a impressão de que o pensamento ou a esperança reinante naquela época era de que ainda haveria de ser idealizado algo melhor em termos de assegurar a verdadeira expressão da vontade popular.

        Há algum tempo venho refletindo a esse respeito e, obviamente, sem o menor sucesso até o momento no sentido de pensar em algo diferente e melhor. É até pretensioso demais intuir sobre algo que garanta de modo mais verdadeiro a implementação da vontade de todos na escolha dos candidatos ao exercício de mandatos eletivos. Só vou até o ponto de reconhecer os aperfeiçoamentos em torno da democracia ao longo dos tempos, no sentido da criação de mecanismos legais e educacionais garantidores da sua manutenção na contemporaneidade.

        Na minha modesta opinião, porém, vejo que a democracia no Brasil vem se alterando ligeiramente em sua essência, no sentido de que os eleitores não vêm demonstrando sua verdadeira vontade nas urnas. Isto porque se tornou prática nacional não seguir o genuíno desejo de votar no Fulano. Vota-se no Beltrano para que o Ciclano não vença. Parece voto de tabela em jogo de sinuca, quando se mira numa bolinha para que ela empurre outra para dentro da caçapa. Fico pensando se isso é mesmo democracia, expressão da vontade dos eleitores, afinal, guiar-se por um espírito estratégico na escolha do voto não revela a real vontade daqueles. Por esse pensamento, o resultado é que quem acaba vencendo é o Beltrano, apesar de o desejo da maioria estar atrelado ao Fulano.

        Em tal caso, dá pra dizer que a eleição expressou a vontade do eleitor? Num certo sentido, sim, pois, apesar de não se ter eleito quem se gostaria, ao menos evitou-se que fosse eleito quem não se queria, mas o preço disso talvez seja um pouco caro e até um desperdício em termos de oportunidade de fazer valer a vontade geral.

        A questão não é simples mesmo, de todo modo, não basta o regime democrático estar garantido na lei do nosso país. Há que se suprir o espaço em aberto deixado pela falta de esclarecimento em torno de equívocos como a noção equivocada de 'voto perdido' para o caso de ser dado ao candidato menos cotado nas pesquisas. Isso não existe. O voto há de ser consciente, isso sim, sem vincular a escolha do candidato aos percentuais de pesquisas de opinião, até porque esta é representativa de uma mínima parcela da população consultada.

        Assim, sejamos autênticos na hora de expressar nossa verdadeira intenção, votando consciente e diretamente no(a) candidato(a) que melhor atende às expectativas e anseios de cada um, sem a utilização do voto como um jogo de estratégias em que se mira ali para atingir acolá.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

DOR E ALMA

            Como é que duas palavras tão diferentes podem rimar tanto? Apesar de dor e alma possuírem, cada qual, ortografia e fonética absurdamente diferentes e com significados também distintos, estão intimamente ligadas dentro do imaginário geral ou, sem sombra de dúvida, do meu próprio imaginário. A rim parece-me relacionar-se ao sentido destas palavras, ao 'não dito' que extrapola da significação de cada um desses termos.

            Particularmente, entendo ser inevitável experimentar uma dor sem, ao mesmo tempo, sentir-me viva e plena de uma alma movimentando-se internamente. Acredito mesmo que encarar certa dor no peito possa deflagrar a sensação de que eu existo, ainda que isso soe meio paradoxal ou estranho.

        Ouso afirmar que talvez nem a alegria ou o riso sejam tão competentes quanto uma amargura esporádica para proporcionar a sensação de viver e fazer testemunho de que a angústia é parte da vida, o contraponto daquela incômoda sensação de prazer ininterrupto que sempre buscamos. Ninguém conseguiria se reconhecer feliz sem as inevitáveis adversidades e os percalços que a realidade dura impõe a todos. O escritor alemão Goethe até disse certa vez que "nada é mais difícil de suportar do que uma sucessão de dias belos". Concordo.

        Vez ou outra, a cabeça e o coração mergulhados num caldo de desolação e infelicidade dão-me a certeza de estar viva, agindo como contraponto dos dias felizes. Não, não sou depressiva, melancólica ou desanimada. Sou apenas alguém que consegue extrair de estados de espírito mais sombrios o combustível para sentir a vida intensamente e até saber que gosto têm os prazeres.

         Adoro aquela música "Alma" da cantora Simone, porque a primeira estrofe já me captura nisso que estou dizendo: "há almas que têm as dores secretas, as portas abertas sempre pra dor". 

        Tenho a certeza de que uma dessas almas da canção é a minha, abrigo para dores secretas, capaz de acolher mais outras que apareçam de repente para ocupar espaços vazios e tudo o mais que, não cabendo em outras categorias, acabará ficando solto e perdido sem explicação, ecoando internamente e preparando-me para o reconhecimento de alegrias vindouras.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

 

ABSOLVIÇÃO

        Por toda a minha vida, graças à família na qual nasci, conduzi-me por linhas certas e construí um patrimônio moral do qual eu me orgulho, passando-o adiante para minhas adoráveis filhas. Meu crime mais grave na adolescência foi, num dia qualquer do último ano do colégio em que eu estudava, após o recreio, ter descascado as paredes recém pintadas em frente ao pátio central. Deu um gosto todo especial puxar inteirinhas aquelas lâminas de tinta quase seca. Como eu senti prazer em causar dano àquele lugar que tanto causou dano a mim! Foi como um grito de vingança em forma de ato. Não tenho boas recordações dos nove anos em que ali estive.

       Não fui punida por aquele vandalismo consciente, pois ninguém viu, nem mesmo a inspetora que costumava dar voltas por todos os espaços do colégio. Sequer lembro também de como tive tal oportunidade sem chamar a atenção de ninguém. Devo ter premeditado muito bem o meu ato, do contrário, não teria dado tudo tão certo. Fico hoje pensando também como é que, iniciada a segunda parte da aula, ninguém sentiu a minha falta na sala, com minha carteira vazia e ocupada apenas pelos meus materiais sobre ela. De todo modo, meu ato delinquente já foi perdoado devido à passagem do tempo, já prescreveu, como se diz juridicamente, por isso não tenho o menor medo desta confissão.

        Tirando a excelente base de língua portuguesa que lá obtive e umas poucas amigas do coração que mantenho contato até os dias atuais, o resto eu descarto no meu lixo de memórias. Meus pais nunca souberam disso tudo, mas aposto que eu os convenceria de que, naquele lugar, muito do que passei e aprendi só me prejudicou vida afora. 

        Meu maior ressentimento lá foi por não ter tido a melhor das lições para uma vida de felicidade: a de que somos livres para fazer o que quisermos com nossas vidas, com a correlata responsabilidade por nossas escolhas, evidentemente. Era sempre um não atrás do outro. Nada podia. Tudo era feio ou pecado, como se todas as freiras ali fossem exemplares em suas condutas privadas. O ensino era muito restrito em termos de possibilidades para o desenvolvimento pessoal e emocional.

        Tempos depois, quando saí daquele colégio, experimentei uma curiosa sensação: parecia que tornozeleiras eletrônicas saiam dos meus calcanhares e eram substituídas por asas. Fico hoje pensando no efeito daquele cárcere mental sobre minha personalidade desde os meus cinco anos de idade, bem como no estilo confessional e punitivo de lançar pessoas para o mundo. Sinto que, ao contrário de ter sido educada numa instituição escolar, fui adestrada para ter comportamentos adequados na sociedade, e tudo por meio de um poder canhestro que via na imposição da culpa a melhor forma de regular atitudes.

        Questionar práticas morais e rigores sem sentido era um ato que só vinha de colegas com extrema coragem, as quais eu muito admirava, mas mesmo assim, sem surtir qualquer efeito. Eram punidas, quando não ignoradas. De minha parte, nunca enfrentei aquelas autoridades ocas, resignando-me ao lugar de aluna comportada. Hoje entendo aquele meu crime de descascar as paredes do colégio como um ato simbólico para desmascarar hipocrisias e dizer o quanto eu estava me lixando para a beleza externa de um lugar tão feio por dentro.

        Creio que no fundo eu queria mesmo é ter sido descoberta pela inspetora, ter sido chamada de mau exemplo para as demais alunas, ter ficado de castigo, ter sido apontada por todos como a gângster que se atreveu a questionar o poder escolar e a dizer que a verdade ensinada era pequena demais, e daí eu talvez sentisse mais orgulho da minha ousadia frente àquelas falsas superioridades. Todavia, mesmo que sem testemunhas, valeu ter dito na forma de um ato reprovável o quanto falsos foram para mim todos aqueles anos de ritos obrigatórios e sem sentido, de promessas para a continuação de uma sociedade que eu viria a questionar na idade adulta. Pela minha depredação, a qual prefiro qualificar como um protesto, o veredito que dou hoje a mim é de absolvição plena.