ABSOLVIÇÃO
Por toda a minha vida, graças à família na qual nasci, conduzi-me por linhas certas e construí um patrimônio moral do qual eu me orgulho, passando-o adiante para minhas adoráveis filhas. Meu crime mais grave na adolescência foi, num dia qualquer do último ano do colégio em que eu estudava, após o recreio, ter descascado as paredes recém pintadas em frente ao pátio central. Deu um gosto todo especial puxar inteirinhas aquelas lâminas de tinta quase seca. Como eu senti prazer em causar dano àquele lugar que tanto causou dano a mim! Foi como um grito de vingança em forma de ato. Não tenho boas recordações dos nove anos em que ali estive.
Não fui punida por aquele vandalismo consciente, pois ninguém viu, nem mesmo a inspetora que costumava dar voltas por todos os espaços do colégio. Sequer lembro também de como tive tal oportunidade sem chamar a atenção de ninguém. Devo ter premeditado muito bem o meu ato, do contrário, não teria dado tudo tão certo. Fico hoje pensando também como é que, iniciada a segunda parte da aula, ninguém sentiu a minha falta na sala, com minha carteira vazia e ocupada apenas pelos meus materiais sobre ela. De todo modo, meu ato delinquente já foi perdoado devido à passagem do tempo, já prescreveu, como se diz juridicamente, por isso não tenho o menor medo desta confissão.
Tirando a excelente base de língua portuguesa que lá obtive e umas poucas amigas do coração que mantenho contato até os dias atuais, o resto eu descarto no meu lixo de memórias. Meus pais nunca souberam disso tudo, mas aposto que eu os convenceria de que, naquele lugar, muito do que passei e aprendi só me prejudicou vida afora.
Meu maior ressentimento lá foi por não ter tido a melhor das lições para uma vida de felicidade: a de que somos livres para fazer o que quisermos com nossas vidas, com a correlata responsabilidade por nossas escolhas, evidentemente. Era sempre um não atrás do outro. Nada podia. Tudo era feio ou pecado, como se todas as freiras ali fossem exemplares em suas condutas privadas. O ensino era muito restrito em termos de possibilidades para o desenvolvimento pessoal e emocional.
Tempos depois, quando saí daquele colégio, experimentei uma curiosa sensação: parecia que tornozeleiras eletrônicas saiam dos meus calcanhares e eram substituídas por asas. Fico hoje pensando no efeito daquele cárcere mental sobre minha personalidade desde os meus cinco anos de idade, bem como no estilo confessional e punitivo de lançar pessoas para o mundo. Sinto que, ao contrário de ter sido educada numa instituição escolar, fui adestrada para ter comportamentos adequados na sociedade, e tudo por meio de um poder canhestro que via na imposição da culpa a melhor forma de regular atitudes.
Questionar práticas morais e rigores sem sentido era um ato que só vinha de colegas com extrema coragem, as quais eu muito admirava, mas mesmo assim, sem surtir qualquer efeito. Eram punidas, quando não ignoradas. De minha parte, nunca enfrentei aquelas autoridades ocas, resignando-me ao lugar de aluna comportada. Hoje entendo aquele meu crime de descascar as paredes do colégio como um ato simbólico para desmascarar hipocrisias e dizer o quanto eu estava me lixando para a beleza externa de um lugar tão feio por dentro.
Creio que no fundo eu queria mesmo é ter sido descoberta pela inspetora, ter sido chamada de mau exemplo para as demais alunas, ter ficado de castigo, ter sido apontada por todos como a gângster que se atreveu a questionar o poder escolar e a dizer que a verdade ensinada era pequena demais, e daí eu talvez sentisse mais orgulho da minha ousadia frente àquelas falsas superioridades. Todavia, mesmo que sem testemunhas, valeu ter dito na forma de um ato reprovável o quanto falsos foram para mim todos aqueles anos de ritos obrigatórios e sem sentido, de promessas para a continuação de uma sociedade que eu viria a questionar na idade adulta. Pela minha depredação, a qual prefiro qualificar como um protesto, o veredito que dou hoje a mim é de absolvição plena.
Ler você é sempre uma incrível sensação de viagem nas palavras, porém este texto, em especial, levou-me a dar uma parada, "sentar" para relembrar, revisitar sentimentos e foi impossível controlar o choro. "Descasquei" grossas paredes e encontrei uma consciência que nunca imaginei que um dia encontraria. A falsa moral, o pecado, a prisão. Precisamos de mais horas para juntas darmos novas cores à vida. Mesmo sendo quase 5 décadas depois, ainda há muitos lugares para batermos asas. Gratidão por esse texto!!! Gratidão por essa Confissão!!!
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