quarta-feira, 29 de março de 2023

 VIRANDO A CHAVE


        Merece premiação quem inventou a famosa expressão virando a chave. Sem dúvida, é uma metáfora que condensa um significado tão amplo quanto profundo. Literalmente, a virada de chave é o que nos permite sair de um lugar e entrar em outro, da mesma forma que representa trancar portas que já não servem mais. Também indica a possibilidade de nos colocar em movimento a partir da inércia, como no caso da condução de um veículo qualquer, por exemplo. A virada de chave envolve um ato de vontade, de mudança no status quo, de consciência desperta.

        A alegoria tem muito a dizer sobre nós, uma vez que precisamos muito virar chaves como ato de reforma no campo de nossos comportamentos, pensamentos, sentimentos. É necessário virar chaves quando algo não vai bem ou mesmo quando até vai bem, mas pode ir melhor. Virar a chave é retificar-se, adequar-se ao diferente, adaptar-se, enxergar-se, responsabilizar-se.

        Especialmente no dia de hoje, viro algumas chaves na cabeça, porque venho batalhando para isso, por acreditar que as mudanças, externas ou internas, dependem de certo grau de esforço pessoal. Esperar que as coisas caiam do céu como chuva refrescante de verão me parece bastante ilusório, e é por isso que trabalho, e trabalho muito para conseguir detectar quando é necessário virar chaves.

        O nome disso é retificação subjetiva e consiste em uma mudança de posição, mas não uma mera mudança aleatória envolvendo tentativa e erro só para ver no que dá, como uma brincadeira qualquer. Trata-se de algo que passa a ser sentido nas células do nosso corpo, tal qual uma claridade que se abre, amplia o entendimento de si próprio e deságua em reformas pessoais, decisões, novos caminhos e compreensão da própria responsabilidade naquilo do que nos queixamos. Quem se retifica subjetivamente dá adeus ao ó vida, ó céus, coitada de mim, arregaça a manga e segue em frente com outro olhar.

        Qualquer dia é propício para um remanejo pessoal no cenário geral da vida que levamos, porém, fazer isso no dia em que sopramos velhinhas parece ter um significado diferente, pois soa como convocação íntima para dar atenção ao que não vem funcionando bem e também continuar investindo naquilo que está dando certo. 

        Viro novas chaves hoje, aproveitando que é meu aniversário, e também porque já venho treinando cada vez mais esse negócio que a maturidade traz, que é ter nas mãos um grande molho de chaves para o autogerenciamento. Virar a chave tem muito a ver com assumir os próprios desejos, ter autonomia, construir a própria narrativa, andar pelas próprias pernas.

sábado, 18 de março de 2023

 A CULPA É DO OUTRO


        A culpa é do outro, sempre. Primeiro, porque se for minha mesmo, eu costumo colocá-la em quem eu quiser, como se diz popularmente, e em tom de muita ironia, óbvio. Segundo, e daí em tom mais sério, porque é bem mais prático depositar no lombo de alguém aquilo que não queremos assumir em nós. Esta é, inclusive, a fórmula adotada para nos livrarmos da responsabilidade que nos cabe pelas nossas escolhas, e a dificuldade está em assumir nossos atos e omissões, o que dá trabalho, fere o nosso maravilhoso ser perfeito, pobre injustiçada vítima do mundo. Então, é melhor mesmo atribuir a um outro qualquer a autoria do que fazemos.

        Essa dinâmica se processa de forma inconsciente. No entanto, com um pouco de claridade interior, podemos reconhecer nossa participação naquilo do que nos queixamos. É possível retirar do senso comum exemplos desse conhecido ímpeto de por na conta de um outro aquilo que nos incomoda. 

        Veja, não é de hoje que muita gente se serve do demônio para livramento das culpas pelos crimes, maledicências e todo tipo de desvio de conduta. Cômodo dizer que o capeta invadiu meu ser e cometeu atos que eu sequer consigo explicar. É como um escudo. Da mesma forma, aquele corpo que arde de paixão e desejo por determinada pessoa também serve como cenário da terrível invasão do coisa ruim.

        Apontar o dedo para o outro, qualquer outro, faz aflorar na alma aflita a tranquilidade diante da angústia da culpa, deixando para longe as avaliações acerca das escolhas e trazendo para perto o veredito da inocência. O diabo é que simplesmente se infiltra no íntimo do ser por alguma fresta, invade-lhe sem autorização, faz estrago e foge sem maiores consequências. É fácil depois denunciá-lo a Deus, recusando-lhe o direito de defesa e saindo-se ileso. É comum também ajoelhar-se no ouvido do padre, assim como solicitar luz ao universo para que ilumine a cabeça dos coitados merecedores do perdão. 

        Que nada, é da nossa natureza humana guardar um caldeirão de pulsões e instintos que gritam por satisfação e exigências cegas. Deixemos o inocente demônio de lado. Somos nós os protagonistas de tudo isso, ninguém nos invadiu.

        É por não conseguirmos reconhecer nossa parte oculta, nossa sombra, que costumamos acusar os outros, sem nos darmos conta de que esses outros estão dentro de nós mesmos. Trata-se de uma defesa para afastar a aflição de nos sabermos responsáveis pelo que nos incomoda. 

        A boa tarefa para o nosso Eu é fazê-lo entender que não há outros e que aquele conjunto de forças internas representadas, metaforicamente, pelo demônio atiçador, ainda que pareça ter identidade própria, nada mais é do que nós mesmos. Logo, não somos vítimas coisa alguma.

        A ideia para uma vida menos infantil é integrar nossas facetas, acolhê-las. Culpar os outros é como construir uma muralha de proteção imaginária, e ultrapassar isso é necessário, é como passar por um grande portal e adentrar um nível mais elevado de consciência assumindo os próprios atos no mundo.

quarta-feira, 8 de março de 2023

 PARECE UM CRIME SER MULHER

            No dia de hoje, 8 de março, todos os holofotes estão voltados para nós, as mulheres. Observei infinitos parabéns de todos os lados homenageando nossa condição feminina neste mundo, por nascimento ou escolha. Foi cada postagem linda que vi nas mais diversas redes sociais e na televisão que até fiquei emocionada pelo seu conteúdo!

            No entanto, há muito ainda a ser feito empunhando-se essa bandeira da igualdade entre os gêneros. É fato que a luta já vem sendo travada há um bom tempo, ganhando cada vez mais a força de vozes e atos nesse sentido, de sorte que consigo sentir essa revolução com um bom grau de otimismo. Acredito mesmo que um dia a evolução do mundo nos purificará, enquanto humanidade, contra esse câncer social.

        Mas ainda falta, e falta muito para sermos totalmente respeitadas e acolhidas nesse planeta que veicula notícias dizendo sobre o sofrimento das Marias, Joanas, Cláudias e tantas outras mulheres que estão ou estiveram na mira de homens violentos e feminicidas  por causa da sua condição feminina. Passou hoje mesmo na TV: "Fulana foi morta pelo companheiro  por ser mulher".

        A notícia entrou meio atravessada em meus ouvidos, pois a palavra "só" me pareceu em excesso no texto da reportagem. Fosse eu a editora chefe daquele telejornal, teria mandado excluí-la de imediato, pois soou como se a Fulana tivesse realmente cometido um crime, um crimezinho, um pequeno deslize em sua conduta, mas que não precisava ter levado à perda da sua vida.

        Todos nós, na verdade, usamos muito desse artifício na linguagem para defender, afinal, que o nosso erro não foi assim tão grave, que pode até ser perdoado, que por ele não merecemos punição. Isso porque a palavrinha "" é redutora, usada para minimizar algo, um algo que existe. No caso da notícia que ouvi, o que existiu foi mesmo a transgressão daquela coitada. Como ousara ela ter nascido mulher num mundo tão machista? Aquele "" sobrou na voz da repórter, pois confirmou que ainda somos mal vistas por sermos mulheres, estruturalmente falando.

        Minha homenagem hoje para as mulheres é, justamente, para dizê-las que continuem a ser tudo isso, tudo o que quiserem, onde e quando quiserem, como quiserem, porque são mulheres, dignas de igualdade, respeito, reconhecimento, amor e muito mais.

        

         

        

             

domingo, 5 de março de 2023

 A CIRURGIA DA ALMA


        Já faz algum tempo que me coloco toda semana numa espécie de mesa de cirurgia para abrir meu coração. Meu propósito é deixar que dali saia tudo o que afeta o funcionamento saudável do meu ser em termos de emoções e sentimentos. O processo todo é voluntário de minha parte, dura em torno de uma hora, sem anestesia, com algum sangramento interno e até lágrimas. Dói bastante mesmo, e algumas vezes necessito de repouso para deixar que a intervenção possa promover o seu maior efeito possível. 

        Com essa metáfora acabo de descrever meu processo de análise no divã, parecido com um procedimento cirúrgico, especialmente o cardíaco. A equipe técnica é um pouco diferente, pois compõe-se de apenas uma pessoa: a analista, mas a base da minha relação com ela repousa sobre uma profunda confiança, assim como a que me faria entregar meu coração a um cirurgião renomado. Semanalmente, deixo-me guiar pela sua habilidade e sensibilidade para que eu possa atenuar minhas feridas internas.

        Nessa cirurgia da alma a instrumentação não é feita por bisturis, tesouras e pinças como no campo do corpo físico, mas pela palavra, ferramenta bastante eficaz para chegar-se ao fundo do ser, ainda que ela reduza os acontecimentos ao campo verbal. Por meio da palavra põe-se para fora a dor sentida. É também muito útil quando escapa da boca sem que se queira, tipo uma mordida na língua, pois com isso se consegue conhecer outra possível doença oculta.

        O processo analítico, similarmente ao cirúrgico, envolve tipos específicos de cortes e suturas para reparo dos danos há tempos sofridos. Apesar de não parecer, é muito bom, porque limpa por dentro e motiva ao cuidado contra novos males, de sorte que o bem-estar almejado acaba ficando muito mais nas mãos do paciente do que do médico, e do analista. Novos hábitos e novos olhares para uma vida mais plena e saudável. 

        Portanto, para quem quer seguir a vida com um coração menos pesado, mais oxigenado, não há outra alternativa senão abri-lo com frequência para a retirada de caroços antigos, mágoas calcificadas, ferimentos consolidados. 

        Nenhuma superação vem fácil, de modo que deitar no divã e abrir o peito dói mesmo e envolve coragem, dado que a melhora, em geral, vem do reconhecimento da nossa própria responsabilidade pelo quadro do qual nos queixamos. Ainda assim, funciona como medicina para a alma. Seria mais fácil fechar os olhos, seguir na cegueira e fingir que está tudo bem. Eu, no entanto, prefiro ir tateando o escuro porque sei que mais à frente vou poder contar com um pouco mais de luz.

        

       

Fonte da imagem: https://brasilescola.uol.com.br/biografia/sigmund-freud.htm