DIVÓRCIO
Acordei hoje, domingo, querendo me divorciar. Do latim divertere, a etimologia desta palavra leva-nos ao significado comum de "voltar-se para direções diferentes", onde "dis" é fora e "vertere" é virar-se para, tornar. É isso mesmo então. Acordei querendo me voltar para outra direção, longe do meu rema-rema de uma vida. Como cansa manter a fidelidade a decisões anteriores e que hoje já não fazem mais sentido!
Só de abrir os olhos de manhã cedo, não aguento mais ter que desejar bom dia à pilha de livros que, por não ter um lugar específico em casa, há tempos repousam em frente à minha cama, aguardando atenção de minha parte. Não aguento mais ver aquilo que se transformou numa pressão de ter que dar conta de ler. De uns tempos para cá passei a me sentir ameaçada, como se algo me cutucasse com um dedo pontiagudo. Há muitas pérolas ali que merecem meu tempo, mas também há uma parte que desperta o desejo de uma fogueira sem piedade.
O armário é outra questão que não escapará de uma franca conversa comigo sobre o assunto do rompimento. Manter algo por obrigação não faz o menor sentido e tem me desviado do meu novo eixo. São quinquilharias e cacarecos que não têm utilidade há mais de uma década e que só serve para juntar poeira, entulhar gavetas, abaular prateleiras.
Nesse sentido, quero, daqui para frente, romper também com a promessa de amor eterno por coisas que em algum momento fizeram brilhar meus olhos. Sou outra, preciso de menos, muito menos. Perenes são as montanhas, mas até mesmo elas se transformam. Um estudo geológico de almanaque é suficiente para mostrar que o pico da Cordilheira dos Andes já foi fundo de oceano, como provam os esqueletinhos de peixe que lá descansam.
Não aguento mais também os velhos hábitos, como horários, lugares frequentados, alimentos ingeridos. Tem sido enfadonho acordar todos os dias da semana e fazer sempre a mesma coisa, chegando ao fim de semana e repetindo as mesmas atividades, apenas ligeiramente diferentes para diferenciar que é sábado ou domingo. Que prazer é dar um pontapé naquilo que prende! Que delícia comparar tudo do que queremos nos desfazer com algemas que se abrem para nunca mais se aproximarem de nossos pulsos!
Já não conservo o mesmo amor pela minha fé e minhas crenças habituais. Tem sido monótona nossa convivência, que entrou numa rotina sufocante. Não estamos mais nos entendendo, pois sinto que evoluí ao longo dos anos, enquanto elas, obsoletas, permaneceram inalteradas. Tenho-as visto como comandos internos autoritários, cordas em meu pescoço ou vias únicas de acesso às mesmas opiniões e aos mesmos padrões de conduta petrificantes. Quero sentar com elas, com todo o respeito e gratidão, e ter um longo papo sobre a necessidade de novas parcerias para a expansão do meu Eu.
Porque chega de pensar sempre da mesma maneira. Não consigo mais ser fiel ao acervo de pensamentos que vinham me guiando até agora. Quero me desfazer dessas alianças mentais até aqui mantidas, pois não me satisfazem em mais em nada. Minha cabeça já está flertando com outras formas de pensar.
Quanto aos medos, após o nosso desenlace, sequer saberão para onde vou estabelecer meu novo endereço, onde a mais absoluta solidão se interporá entre nós como obstáculo contra quaisquer aproximações. Os medos são aquilo de que mais quero me distanciar. Se houvesse uma maneira de por no papel um divórcio deste tipo eu exigiria a consignação da seguinte cláusula: "O efeito do presente distrato afetivo implica em nunca mais se encontrarem nesta vida, sob pena de incalculável penalidade a cargo da parte inadimplente". Sem arrependimentos, mas penso que não há casamento com fantasmas que nos dominam e violentam nossa essência de seres humanos livres. Deles - do medos - não quero nem manter contato com suas origens.
Finalmente, não que estas sejam as únicas parcerias tornadas nefastas, mas porque não pretendo escrever um tratado sobre o descasamento, darei um fim também nos papéis que o mundo me obriga a desempenhar, como marionetes de um mestre. Não quero mais o papel de esposa do certo, do adequado, do esperado...minha ideia agora é ser amante da loucura, para a deliciosa liberdade que daí nascerá.

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