segunda-feira, 29 de abril de 2024

PARA ALÉM DO NORTE


            Buscar um Norte - ainda que já gasta pelo uso - é a expressão master do nosso vocabulário que, figurativamente, guarda o sentido de localizar-se, de estabelecer uma direção e segui-la. Carrega em si um apelo quase místico, um chamado para encontrar nosso lugar no mundo, traçar um rumo e ir adiante, guiados por uma bússola simbólica que aponta mais para dentro de nós do que para qualquer coordenada geográfica.

            Quem está se sentindo perdido na vida costuma dizer que precisa de um Norte, o que funciona como sinônimo de um roteiro previamente sabido, um ponto de referência para que o vazio do desconhecido não seja tão ameaçador. Este Norte diz de uma trilha da qual já se intui cada curva, buraco ou ladeira, pois o ser humano tem pavor da desorientação. Virou força de expressão na linguagem 'um Norte', sendo que ninguém diz precisar de um Sudoeste ou de um Leste na vida. O medo de ir sem direção acabou por influir até mesmo na nossa linguagem.  

            O automatismo das palavras, portanto, parece-me perigoso, pois alguém que se deixa levar por este ditado sem muito critério acaba se fixando na ideia de um ponto conhecido, o que é um tanto limitante, como se ignorasse o espetáculo vasto das possibilidades que nos rodeia, isto é, os milhões de caminhos que podemos tomar. A Rosa dos Ventos aprendida nas aulas de geografia no colégio serve para nos mostrar bem isso.

            É o instrumento de representação gráfica da volta completa do horizonte que surgiu a partir da necessidade de se estabelecer um sentido preciso nas cartas de navegação e de aviação, haja vista que, como descoberto há tempos pelo ser humano, um mínimo desvio implica em importante alteração da rota. Por exemplo, basta errar em uma ínfima subdivisão do grau para, lá na frente, chegar num ponto bem distante daquele inicialmente pretendido.

            Na vida, cada qual também tem o seu próprio horizonte, que é o lugar para onde lançamos as flechas das nossas escolhas de hoje e as quais nos levarão a circunstâncias e situações lá na frente. Mas é importante saber que perde quem navega sempre pelos mesmos mares e deixa de aportar em outras terras, com todas as suas correntezas e ventanias. 

            A bem da verdade, seguir o Norte expressa que fomos ensinados a seguir modelos de pensamento para tomadas únicas de decisão, que nos farão viver sem emoção, paralisados. É como disse o poeta "Os ventos do norte não movem moinhos". Portanto, buscar o Norte é rejeitar o infinito leque de possibilidades, ser dependente da validação dos nossos pares, da família ou da sociedade a que pertencemos, a fim de atender às suas expectativas. Seguir o Norte é não ouvir a voz interior que se orienta para outro ponto.

            Pequenos gestos e decisões aparentemente triviais podem mudar nossa trajetória de maneira significativa, abrindo-nos um leque quase infinito de futuros possíveis. Nossas condutas atuais levam-nos a um sem número de probabilidades ao redor da circunferência invisível que nos cerca, de sorte que bastam pequenas mudanças para que possamos chegar em pontos diferentes dos que imaginamos inicialmente, desde que armados de curiosidade e coragem.

            É sempre tempo de lançar os olhos em outras direções. A Rosa dos Ventos é então a metáfora perfeita da existência, para dizer que há sempre outros lugares, outras dimensões, outras realidades possíveis e o bacana é tomar consciência de que as nossas chances são infinitas.

            Como navegadores e aviadores no curso do nosso próprio destino precisamos encarar o novo, pois isso sim é viver, e quanto mais variadas forem as direções, mais ventos e alturas experimentaremos. Provar novos sabores, visitar lugares, engajar-se em conversas com estranhos, aprender habilidades desconhecidas são, justamente, o mosaico da nossa vida. São como os pequenos desvios, os pequenos ajustes no itinerário que fazemos para a descoberta de 'novos horizontes'. Aliás, não é à toa esta expressão, como um convite à experimentação.

             Ouso afirmar que a variedade da vida está, justamente, nos pequenos ângulos que mudamos, propiciando a ampliação do portfolio pessoal, a cartela de cores dos dias. Este é o poder das pequenas mudanças como meio para percorrer rumos diferentes dos que estamos habituados, para o que talvez seja necessário romper tratados, trair ritos, gritar, desabafar, como fez aquele poeta que achava que os ventos do norte não movem moinhos.



            

quinta-feira, 4 de abril de 2024

 O FEMININO EM CADA MULHER


            A cena é real e a presenciei dentro de uma livraria num sábado à tarde enquanto procurava algo novo para ler: uma mulher, nos seus trinta e poucos anos, com um bebê de uns seis meses no colo, prostrou-se a uns cinco metros de onde eu estava, em frente a uma grande estante de livros. Pareceu-me ter estacionado ali apenas pela comodidade de um sofá próximo enquanto aguardava por alguém, haja vista os tantos apetrechos que carregava, como carrinho, bolsa de fraldas, paninhos, brinquedos, mamadeira, chupeta etc. Fiquei olhando-os e deduzi que eram mãe e filho, devido à força de um código genético que denunciava tal parentesco. 

            Ela, durante todo o tempo em que foi vítima dos meus olhares, voltava seu rosto a todo instante para a criança, e enquanto a ninava suavemente como dança macia típica da maternidade, conversava com o pequeno em seus braços na língua do manhês. Oferecia-lhe água, chupeta, brinquedos. Também enxugava sua boquinha encharcada de baba. Deviam estar nascendo seus primeiros dentinhos, pensei. Era bonito ver o envolvimento mútuo entre ambos, pois ela estava toda para o bebê e ele todo para ela. 

            Às vezes penso que tenho alguma vocação para detetive, pois não é raro eu desempenhar a arte da observação discreta sem ser percebida. Fiquei ali então refletindo sobre esta tão forte natureza que muitas mulheres expressam quando se colocam à mercê do plano biológico de gerar e cuidar de seus filhos. Afinal, por uma boa parte de sua vida, abdicam de tempo, de desejos e de vontades diversas para garantir a sobrevivência e o cuidado com outro ser. Ocorreu-me até que, muitas vezes, são forçadas a isso sem que o saibam, pois a cultura é forte o bastante para impor seus desígnios também.

            O fato é que há um contingente de mulheres que aceitam o desafio de passar pela gestação, parto, lactação, além dos picos e vales hormonais, com profundas mudanças em seu corpo, em seu psiquismo, em suas emoções, tudo acompanhado do sorriso de satisfação e, às vezes, nem tanto, e tudo bem se assim for. Não tenho dúvidas de que algo as solicita ao exercício desta nobre função, ao preço de um quase esquecimento de si próprias. Para elas, tudo parece valer a pena, pois estão cumprindo alguma programação, seja interna, familiar, da sociedade, de Deus, enfim.

            Mas minhas divagações nessa temática da maternidade mudaram de rumo quando a mulher, ainda com o bebê no colo e preparando-se para ir embora, pareceu ter sido capturada em sua atenção por um livro específico. Mesmo já tendo reunido todas as suas tralhas, estica seu braço para pegá-lo e dá uma olhada nele, porém, devolve-o à prateleira. Em seguida, pega-o de novo e o devolve de novo, em clara movimentação ritmada que denunciava alguma tentação de adquirir para si aquele exemplar. Decide finalmente pegá-lo e sai se equilibrando com tudo.

           Esse pega/devolve o livro foi o que me chamou a atenção a ponto de ir ver qual era, afinal, o assunto abordado naquela obra. Tratava-se da produção de uma jornalista a respeito das mulheres sob o viés histórico da internalização de regras morais opressoras baseadas nos sete pecados capitais da Igreja Católica. De acordo com a contracapa, a proposta da escritora era explorar a noção do comportamento considerado exemplar das mulheres ao longo das eras, já indicando que seriam tecidas considerações em torno das repressões impostas sobre os seus desejos, raivas, preguiças, bem como a respeito do padrão boazinha plantado nas cabeças de todos.

            Assim, o livro falava de luxúria, como fundamental para a vivência de um prazer sonegado por tanto tempo, bem como da ira, para a luta por um futuro mais igualitário e também da preguiça, dado que se deleitar com o fazer nada momentâneo é útil para recarregar as forças para novas empreitadas. Sobre a gula, uma olhada superficial no capítulo correspondente indicava o quanto a regulação do comportamento alimentar foi nociva para o grupo feminino ao longo do tempo, como atesta a triste corrida para encaixar-se em padrões de beleza ilusórios.

            Enfim, seriam ali debatidos todos os pecados capitais como alertas vermelhos impeditivos de condutas que muito prejudicaram as mulheres, especialmente. De fato, se muitas coisas são pecado para nós mulheres, então nada nos resta, não podemos fazer mais nada, nem sequer deixar fluir sensações e afetos, porque considerados rigidamente proibidos.

            A escolha daquela mulher pelo livro soou-me como evidência de que todas nós somos mais do que um corpo reprodutor e cuidador de seres humanos. Somos também o receptáculo de um feminino ferido, que há muito tempo vem lutando e esbravejando para ser ouvido na sua demanda por libertação. 

            Talvez a atitude daquela jovem mãe tenha representado para mim que, mesmo feliz com as obrigações da maternidade, a mulher também guarda dentro de si um grito silencioso para anunciar que antes de tudo, pode ser mulher no sentido mais pagão da palavra. Um ser dotado de tudo o que lhe fora impedido de aparição para que não se afastasse do modelo ideal de conduta previamente estabelecida. 

              É provável que um discurso inteiro, antecipadamente elaborado, sobre a ânsia feminina de libertar-se de um jugo nascido em épocas primevas e atuante até hoje, não tenha sido tão esclarecedor como foi para mim ver aquela cena na livraria, mesmo que, em realidade, a dúvida concretamente manifestada quanto a pegar ou não o livro não tenha passado, para aquela mulher, de uma mera avaliação do seu preço.