quinta-feira, 4 de abril de 2024

 O FEMININO EM CADA MULHER


            A cena é real e a presenciei dentro de uma livraria num sábado à tarde enquanto procurava algo novo para ler: uma mulher, nos seus trinta e poucos anos, com um bebê de uns seis meses no colo, prostrou-se a uns cinco metros de onde eu estava, em frente a uma grande estante de livros. Pareceu-me ter estacionado ali apenas pela comodidade de um sofá próximo enquanto aguardava por alguém, haja vista os tantos apetrechos que carregava, como carrinho, bolsa de fraldas, paninhos, brinquedos, mamadeira, chupeta etc. Fiquei olhando-os e deduzi que eram mãe e filho, devido à força de um código genético que denunciava tal parentesco. 

            Ela, durante todo o tempo em que foi vítima dos meus olhares, voltava seu rosto a todo instante para a criança, e enquanto a ninava suavemente como dança macia típica da maternidade, conversava com o pequeno em seus braços na língua do manhês. Oferecia-lhe água, chupeta, brinquedos. Também enxugava sua boquinha encharcada de baba. Deviam estar nascendo seus primeiros dentinhos, pensei. Era bonito ver o envolvimento mútuo entre ambos, pois ela estava toda para o bebê e ele todo para ela. 

            Às vezes penso que tenho alguma vocação para detetive, pois não é raro eu desempenhar a arte da observação discreta sem ser percebida. Fiquei ali então refletindo sobre esta tão forte natureza que muitas mulheres expressam quando se colocam à mercê do plano biológico de gerar e cuidar de seus filhos. Afinal, por uma boa parte de sua vida, abdicam de tempo, de desejos e de vontades diversas para garantir a sobrevivência e o cuidado com outro ser. Ocorreu-me até que, muitas vezes, são forçadas a isso sem que o saibam, pois a cultura é forte o bastante para impor seus desígnios também.

            O fato é que há um contingente de mulheres que aceitam o desafio de passar pela gestação, parto, lactação, além dos picos e vales hormonais, com profundas mudanças em seu corpo, em seu psiquismo, em suas emoções, tudo acompanhado do sorriso de satisfação e, às vezes, nem tanto, e tudo bem se assim for. Não tenho dúvidas de que algo as solicita ao exercício desta nobre função, ao preço de um quase esquecimento de si próprias. Para elas, tudo parece valer a pena, pois estão cumprindo alguma programação, seja interna, familiar, da sociedade, de Deus, enfim.

            Mas minhas divagações nessa temática da maternidade mudaram de rumo quando a mulher, ainda com o bebê no colo e preparando-se para ir embora, pareceu ter sido capturada em sua atenção por um livro específico. Mesmo já tendo reunido todas as suas tralhas, estica seu braço para pegá-lo e dá uma olhada nele, porém, devolve-o à prateleira. Em seguida, pega-o de novo e o devolve de novo, em clara movimentação ritmada que denunciava alguma tentação de adquirir para si aquele exemplar. Decide finalmente pegá-lo e sai se equilibrando com tudo.

           Esse pega/devolve o livro foi o que me chamou a atenção a ponto de ir ver qual era, afinal, o assunto abordado naquela obra. Tratava-se da produção de uma jornalista a respeito das mulheres sob o viés histórico da internalização de regras morais opressoras baseadas nos sete pecados capitais da Igreja Católica. De acordo com a contracapa, a proposta da escritora era explorar a noção do comportamento considerado exemplar das mulheres ao longo das eras, já indicando que seriam tecidas considerações em torno das repressões impostas sobre os seus desejos, raivas, preguiças, bem como a respeito do padrão boazinha plantado nas cabeças de todos.

            Assim, o livro falava de luxúria, como fundamental para a vivência de um prazer sonegado por tanto tempo, bem como da ira, para a luta por um futuro mais igualitário e também da preguiça, dado que se deleitar com o fazer nada momentâneo é útil para recarregar as forças para novas empreitadas. Sobre a gula, uma olhada superficial no capítulo correspondente indicava o quanto a regulação do comportamento alimentar foi nociva para o grupo feminino ao longo do tempo, como atesta a triste corrida para encaixar-se em padrões de beleza ilusórios.

            Enfim, seriam ali debatidos todos os pecados capitais como alertas vermelhos impeditivos de condutas que muito prejudicaram as mulheres, especialmente. De fato, se muitas coisas são pecado para nós mulheres, então nada nos resta, não podemos fazer mais nada, nem sequer deixar fluir sensações e afetos, porque considerados rigidamente proibidos.

            A escolha daquela mulher pelo livro soou-me como evidência de que todas nós somos mais do que um corpo reprodutor e cuidador de seres humanos. Somos também o receptáculo de um feminino ferido, que há muito tempo vem lutando e esbravejando para ser ouvido na sua demanda por libertação. 

            Talvez a atitude daquela jovem mãe tenha representado para mim que, mesmo feliz com as obrigações da maternidade, a mulher também guarda dentro de si um grito silencioso para anunciar que antes de tudo, pode ser mulher no sentido mais pagão da palavra. Um ser dotado de tudo o que lhe fora impedido de aparição para que não se afastasse do modelo ideal de conduta previamente estabelecida. 

              É provável que um discurso inteiro, antecipadamente elaborado, sobre a ânsia feminina de libertar-se de um jugo nascido em épocas primevas e atuante até hoje, não tenha sido tão esclarecedor como foi para mim ver aquela cena na livraria, mesmo que, em realidade, a dúvida concretamente manifestada quanto a pegar ou não o livro não tenha passado, para aquela mulher, de uma mera avaliação do seu preço.

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