quarta-feira, 19 de junho de 2024

TODA A VERDADE

           Imagine a seguinte situação, aliás, bastante comum nos foros da justiça de qualquer lugar do nosso planeta: a de uma testemunha que é convocada num dado processo judicial, para que preste o seu depoimento acerca do que sabe, viu ou ouviu a respeito de certos fatos envolvendo as pessoas em litígio. Suas declarações serão necessárias para que o juiz da causa possa dar o seu veredito e, com isso, alcançar a paz social almejada.

            Pois bem, chegado o momento processual, a testemunha é chamada a se sentar em frente ao juiz e, antes de tudo, ouvir deste uma pergunta obrigatória prevista na lei, disparada da seguinte forma: - Sob as penas da lei, compromete-se a dizer toda a verdade do que lhe for perguntado? A resposta é, invariavelmente, sempre a mesma: - Sim!  Lógico, ninguém é louco de, olhando nos olhos da autoridade judiciária, dizer que não dirá toda a verdade do que sabe. E assim feito, todos acreditarão que a testemunha dirá mesmo toda a verdade, que os fatos serão esclarecidos e que a costumeira justiça será feita. Será?

            É neste ponto que começo a brincar um pouco, migrando do meu conhecido território da prática jurídica para entrar no meu também conhecido território da psicanálise, fazendo uma espécie de debate entre estas duas áreas. Começo dizendo que aquela testemunha que prometeu dizer toda a verdade do que lhe for perguntado, já teria começado sua participação mentindo, ainda que não o saiba disso, porque, no máximo, será capaz de contar uma parte, apenas.

            Não se trata de deslealdade ou crime de falso testemunho, e sim porque é próprio da verdade nunca poder ser dita em sua inteireza, por ninguém. Ela escapa e não se deixa apreender completamente. Uma parte dela escorre e jamais se deixa revelar. É como se sobrasse sempre um resto de verdade que foge da conversa e que não se deixa comunicar.

            Mesmo quem se propõe a dizer toda a verdade não o conseguirá, simplesmente, porque isto é impossível. A verdade será sempre parcial, semi-dita e a razão disso é que a linguagem humana não dá conta de expressar tudo. Por isso é que o psicanalista francês Jacques Lacan foi brilhante ao mencionar sobre a 'impotência do saber', ao afirmar que a verdade é apenas um ideal humano. Ele explicou que a verdade se serve das palavras para ser dita, contudo, as próprias palavras são limitadas, logo, há algo da verdade que as palavras não conseguem transmitir.

            Além do mais, o que é a verdade, senão aquela em que uma pessoa acredita? Verdade é, assim dizendo, sempre pessoal, restrita, não-toda, ficcional. Isto mesmo, a verdade é sempre a ficção de cada um. Achar-se detentor de uma verdade é enganar-se.

            Desta forma, aquela nossa testemunha, apesar de ter prometido, jamais dirá toda a verdade para o juiz, o que não quer dizer que mereça um processo nas costas, pois não lhe era mesmo possível dizer tudo. Pelo lado do juiz, a ele não caberá outra posição senão a de se contentar com o foi apresentado e tomar como verdade a parte dos acontecimentos veiculada pela testemunha por meio de suas palavras e, quem sabe, admitir que ele próprio, no seu ideal de fazer justiça, também o conseguirá apenas parcialmente.   

            

sábado, 1 de junho de 2024

   

LOCALIZAR-SE 

            Uma expressão que sempre aparece nas minhas sessões de terapia é o 'localizar', mais especificamente, em sua modalidade reflexiva, isto é, 'localizar-se'. O dicionário revela-a como um verbo transitivo direto cujo significado é o ato de encontrar o lugar onde está algo ou alguém. A partícula 'se', em sua função gramatical, serve para restringir o sentido à pessoa a quem ela está referida.

            Como se vê, é simples a apreensão do sentido usual do termo, ainda que se possa esticá-lo para que outros sentidos surjam, como quando sua aplicação é usada no território da subjetividade humana, pois ninguém duvida que, com alguma frequência, nos perdemos sem sair do lugar. O localizar-se, então, vem como solução contra esta sensação de descaminho interior.

           O fato é que a palavra em questão, no contexto da busca de si, indica a necessidade de conhecer nosso lugar subjetivo em relação às pessoas em geral, bem como em relação aos fatos e às histórias que vivemos. E é o discurso de cada qual que denuncia sua posição, por exemplo, como a de vítima injustiçada, alvo de ataques por parte de tudo e de todos, assim como a de infeliz descontente da vida, a de infantil que teme responsabilidade, a de amedrontada, a de otimista, a de soberba, a de inferior, a de superior etc. A cada uma das infinitas posições subjetivas que as pessoas ocupam no mundo corresponde um efeito em suas vidas, assim como também mostra como é a luta pessoal em prol da sua sobrevivência emocional.

            Querer saber disso é rumar para fora da penumbra da inconsciência para reconhecer o posicionamento subjetivo ocupado e, consequentemente, avançar no autoconhecimento, abrindo-se para a possibilidade de um remanejamento interior. Quem não sabe da sua posição no mundo está perdido e acaba como vítima da própria escuridão, que é também o ambiente master para o aparecimento de fantasmas interiores, assim como é o caldo perfeito para a proliferação de medos.

            Guardadas as devidas proporções e contextos, o cinema adora lançar filmes de terror em que a personagem principal, perdida num lugar desconhecido, geralmente de noite, busca refúgio numa cabana no meio da floresta. Anda a passos lentos e cheios de medo para conhecer aos poucos o espaço que a cerca, para, justamente, localizar-se. Tateia paredes para se familiarizar com os cômodos e, devagar, vai abrindo portas, tropeça em degraus não visíveis por causa da ausência da luz e todo este cenário é montado para a fantasia correr solta e eis que o monstro aparece, aproveitando-se das circunstâncias.

            Tudo isso é para dizer também que encontrar nossa posição subjetiva perante a vida é como tatear paredes para saber onde estamos, abrir as cortinas da janela e deparar-se com uma nova luz, ver um enquadramento novo para as coisas, ampliar a visão e descobrir, enfim, que o que nos assombrava antes não passa de um fruto da imaginação, ainda que real até certo momento. Mas esta tarefa não pode ser considerada simples nem imediata como um estalar de dedos, precisando de tempo de elaboração, às vezes anos até. Localizar-se é encontrar um lugar melhor dentro de si próprio, onde se possa reconhecer as coisas e as pessoas por outro ângulo, e constatar que aquilo que antes fazia doer já não existe mais, já se foi.

            Localizar-se é enxergar-se, é conhecer o lugar onde habita a nossa subjetividade, é conseguir promover retificações internas, é o mesmo que se encontrar dentro da bagunça que nossas mentes produzem e ganhar a dissolução de muitos dos nossos fantasmas. Localizar-se é saber que o 'onde eu estou' é tão importante quanto o 'que eu sou'.