TODA A VERDADE
Imagine a seguinte situação, aliás, bastante comum nos foros da justiça de qualquer lugar do nosso planeta: a de uma testemunha que é convocada num dado processo judicial, para que preste o seu depoimento acerca do que sabe, viu ou ouviu a respeito de certos fatos envolvendo as pessoas em litígio. Suas declarações serão necessárias para que o juiz da causa possa dar o seu veredito e, com isso, alcançar a paz social almejada.
Pois bem, chegado o momento processual, a testemunha é chamada a se sentar em frente ao juiz e, antes de tudo, ouvir deste uma pergunta obrigatória prevista na lei, disparada da seguinte forma: - Sob as penas da lei, compromete-se a dizer toda a verdade do que lhe for perguntado? A resposta é, invariavelmente, sempre a mesma: - Sim! Lógico, ninguém é louco de, olhando nos olhos da autoridade judiciária, dizer que não dirá toda a verdade do que sabe. E assim feito, todos acreditarão que a testemunha dirá mesmo toda a verdade, que os fatos serão esclarecidos e que a costumeira justiça será feita. Será?
É neste ponto que começo a brincar um pouco, migrando do meu conhecido território da prática jurídica para entrar no meu também conhecido território da psicanálise, fazendo uma espécie de debate entre estas duas áreas. Começo dizendo que aquela testemunha que prometeu dizer toda a verdade do que lhe for perguntado, já teria começado sua participação mentindo, ainda que não o saiba disso, porque, no máximo, será capaz de contar uma parte, apenas.
Não se trata de deslealdade ou crime de falso testemunho, e sim porque é próprio da verdade nunca poder ser dita em sua inteireza, por ninguém. Ela escapa e não se deixa apreender completamente. Uma parte dela escorre e jamais se deixa revelar. É como se sobrasse sempre um resto de verdade que foge da conversa e que não se deixa comunicar.
Mesmo quem se propõe a dizer toda a verdade não o conseguirá, simplesmente, porque isto é impossível. A verdade será sempre parcial, semi-dita e a razão disso é que a linguagem humana não dá conta de expressar tudo. Por isso é que o psicanalista francês Jacques Lacan foi brilhante ao mencionar sobre a 'impotência do saber', ao afirmar que a verdade é apenas um ideal humano. Ele explicou que a verdade se serve das palavras para ser dita, contudo, as próprias palavras são limitadas, logo, há algo da verdade que as palavras não conseguem transmitir.
Além do mais, o que é a verdade, senão aquela em que uma pessoa acredita? Verdade é, assim dizendo, sempre pessoal, restrita, não-toda, ficcional. Isto mesmo, a verdade é sempre a ficção de cada um. Achar-se detentor de uma verdade é enganar-se.
Desta forma, aquela nossa testemunha, apesar de ter prometido, jamais dirá toda a verdade para o juiz, o que não quer dizer que mereça um processo nas costas, pois não lhe era mesmo possível dizer tudo. Pelo lado do juiz, a ele não caberá outra posição senão a de se contentar com o foi apresentado e tomar como verdade a parte dos acontecimentos veiculada pela testemunha por meio de suas palavras e, quem sabe, admitir que ele próprio, no seu ideal de fazer justiça, também o conseguirá apenas parcialmente.

Nenhum comentário:
Postar um comentário