domingo, 30 de outubro de 2022

 

A POTÊNCIA DA FEMINILIDADE       

        Eu já maior, vacinada e mãe quando em dado momento da minha maturidade tive de me submeter a um procedimento cirúrgico para a retirada do útero e ovários. Ali tive de me despedir de uma parte visceral de mim. Biologicamente falando, tornei-me inapta para a tarefa de gerar filhos. Socialmente falando, tornei-me desprovida do selo e do destino da maternidade.

          Aproveitei a situação para repensar sobre todo o imaginário em torno da relação entre a gestação e o feminino.

        De início, nada abalou a certeza sobre a minha condição de mulher. Talvez porque já a algum tempo penso que o poder feminino é bem mais vasto do que estar na posse dos equipamentos fisiológicos para o desenvolvimento de uma gravidez. A passagem do tempo vem me mostrando que nós, mulheres, somos aptas à geração de outros tipos de "filhos", como projetos, sonhos, transformações. É próprio da alma feminina a potência criativa.

        Quero dizer que o nosso poder é muito maior do que apenas ser capaz de povoar o mundo, ainda que esta seja uma dádiva que nos aproxima do divino. Devemos saber que, além da fecundidade que nos é dada pela natureza, também podemos dar conta de outros papéis e funções, pois somos também profissionais, empreendedoras, talentosas, influenciadoras, empoderadas.

        Ser mulher é, antes de mais nada, uma coisa do campo da alma e não apenas do corpo biológico, porque diz respeito a uma energia, uma potência que nos torna maiores do que as expectativas sociais que recaem sobre os nossos ombros quanto ao aspecto da procriação. Ser mulher compreende um diálogo constante entre o corpo e alma, entre o ser e o mundo. É uma energia que nos eleva acima das expectativas sociais sobre procriação e nos permite dar luz a novas ideias, novos mundos, novas possibilidades.

        Ao meu aparelho reprodutor, que foi muito competente em me proporcionar duplamente a maravilhosa experiência da maternidade, expresso a minha mais profunda gratidão. É certo, no entanto, que chega um momento em que precisamos desenvolver maior clareza quanto ao que podemos criar sob várias outras formas mediante os nossos esforços e habilidades físicas, bem como usando a forte da conexão que existe entre o universo e nossa essência feminina.

       Naquele dia em que me submeti à cirurgia para a extração de meus órgãos reprodutores femininos internos, intensificou-se essa travessia em direção à ressignificação do meu ser mulher.

        Penso ser um dever darmos à luz ideias e revoluções às futuras gerações de homens e mulheres, promovendo o crescimento em todos do brilho de novas criações e irradiando sobre as demais pessoas o que temos de melhor.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

 PRESUNÇÃO


       Existe uma coisa bastante enganadora para a mente que é presunção a respeito de coisas que não têm base em fatos concretos. De acordo com o dicionário, o verbo presumir indica a ação de tirar conclusões antecipadas e precipitadas a partir de suposições, conjecturas. A presunção é uma viagem traiçoeira, porque transforma em verdade algo que não tem lastro, numa operação mental capaz de gerar ideias tortas.

        Presumir é ir direito a um ponto sem avaliá-lo, sem usar a energia psíquica para elaborar conclusões melhores. É tomar como certo o que não passa de uma premissa falsa, a qual irá desencadear a necessidade futura de consertar ideias tortas dela decorrentes, podendo até contribuir para um cenário de mal entendidos e comunicações equivocadas. É como seguir por túneis que levam sempre a um único e mesmo lugar, sem questionamento da rota. É como enxergar tudo por uma lente fixa e desprezar as nuances dos acontecimentos.

        Presunções nascidas de cálculos apressados e puramente individuais não possuem serventia alguma. Levam-nos a restringir o foco de análise a respeito de algo, assim como a tomar decisões equivocadas, cometer injustiças. São, ainda, um terreno fértil para discriminações e incompreensões, porque dali nascerão os pré-conceitos. Presumir qualquer coisa é querer encurtar o caminho para o encontro com a verdade, sem sucesso, no entanto.

        Presumir é não se esforçar para ver as coisas sob outros ângulos, é reforçar a fixação das energias mentais em um único ponto. É como enfiar a cabeça num buraco sem considerar o que está em volta. Presumir é querer economizar energia de pensamento, mas que acaba levando a um desperdício.

        De toda a quantidade de calorias que queimamos em um único dia, nosso cérebro responde por vinte por cento do total, de acordo com os fisiologistas. Isso significa que presumir equivale a desperdiçar potências internas para o cultivo pontos de vista superados, uma espécie de neurose inutilmente alimentada. Por isso eu diria "vai carpir, irmão!", para evitar um déficit na qualidade da sua saúde mental. 

        Normalmente, nossos dias já são bastante variados em termos de demandas importantes, de modo a ser absolutamente desnecessário o acréscimo de elucubrações que não são outra coisa senão um prejuízo auto infligido.

       Camadas de interpretação pessoal sobre os fatos, acrescidas a caras feias que nos fazem por aí ou a olhares atravessados e frases fora de contexto, é o que basta às vezes para dar início a um sofrimento que lá na frente será visto como sem sentido. Tal é a razão pela qual é salutar o policiamento interno para evitar o escoamento desnecessário de preciosos recursos mentais, direcionando-os para algo mais vantajoso e construtivo. Eu diria até que a paz interior tem relação direta e proporcional com esta prática.

        Lidar de forma objetiva com o que nos chega pelas vias sensoriais já está de bom tamanho para enfrentar os percalços da vida, sem que seja preciso inventar narrativas infundadas para engordar nossas habituais neuroses.

        


domingo, 2 de outubro de 2022

 


MÃE TAMBÉM MENTE

        Desde que minhas duas filhas nasceram, há vinte e um e dezoito anos, tornei-me uma mentirosa, mestre das artimanhas para conseguir fazer o melhor por elas.

        Minhas primeiras mentiras aconteceram quando eu lhes dava comidas saudáveis, com caras e bocas de prazer para simular e convencê-las de que eu adorava o seu gosto. Ah, como eu encenei neste meu teatro particular! Por dentro, eu me sentia torcendo o nariz, fazendo a maior careta por não conseguir nem sentir o cheiro. A estratégia colava, e hoje elas comem de tudo. Muita novidade alimentar foi apresentada a elas por meio desta enganação. 

        Já maiorzinhas, sentando-se à mesa para o almoço, perguntavam-me porque o arroz era vermelho, alaranjado e até verde em algumas vezes. Eu, mais do que rápida, inventava nomes, dizendo-lhes que era o "arroz primavera" da cor das flores ou o "arroz carnaval" da cor das fantasias ou ainda o "arroz mágico", da cor das florestas. Mentira. Pura invenção minha para incorporar à mesa legumes e verduras nutritivas. Eram a beterraba, a cenoura e a couve disfarçadas junto à água do cozimento.

        Com as frutas eu me especializei na arte da falsidade. Oferecia-lhes sempre novas opções dizendo que era aquela que já haviam experimentado antes e que só não estavam lembrando. Ficava naquela argumentação de que já 'tinham comido na casa da vovó no mês passado'. Mentira de novo. Nunca haviam comido, mas eu tinha que dissimular, pois criança sempre reluta um pouco em conhecer novos sabores.

        E com o passar do tempo, minhas enganações foram ficando melhores. Frente a alguma teimosia que eu não dava conta, eu lhes dizia que teriam que se haver com o pai. Minha ideia era enaltecer sua autoridade, obviamente, sem esquecer da afetividade envolvida no processo. Outra mentira, pois o pai era mais banana que eu. Se duvidar, até dava risada da minha tentativa em torná-lo brabo. Eu só queria fortalecer a imagem dele e ensinar limites e comportamentos benéficos para elas.

        Nas consultas ao dentista era a mesma coisa. Eu sempre dizia que não sentiriam nenhum desconforto nos procedimentos, apostando sempre no esquecimento posterior delas. Era eu de novo querendo passar-lhes tranquilidade e convencê-las de que era bom e divertido sentar naquela cadeira infame, com filminhos e lembrancinhas ao final. E tantas outras mentiras eu contei, como nas épocas das vacinas ou nas vezes em que eu disse não estar com vontade de comer aquele único bombom achado no armário, só para cedê-lo a elas. Menti mesmo e não me arrependo um único segundo das minhas falácias destinadas, unicamente, ao bem-estar das minhas pequenas. O único artifício que eu tinha, muitas vezes, eram tais mentirinhas inocentes, sempre tomando muito cuidado no que eu dizia e tendo a certeza de que me entenderiam no futuro.

        Cheguei ao ponto de chorar longe delas, para que não ficassem infelizes e porque eu queria retardar ao máximo a chegada das angústias da vida. Porém, elas cresceram, tornaram-se sensíveis, espertas, perspicazes, conhecendo-me a fundo, sabendo detectar quando o meu olhar está cinza ou quando uso um meio sorriso para disfarçar a tristeza. Aprenderam a saber até o que estou pensando em certos momentos. Foi a partir daí que não pude mais sustentar minhas fraudes. Não seguiriam acreditando em mim e eu só perderia a confiança delas ou criaria uma distância difícil de encurtar mais tarde, caso eu ficasse neste esquema de mentiras sinceras e bem intencionadas. Ficaram para trás aquelas velhas historinhas inventadas. Agora são as conversas adultas que tomaram este lugar, daquelas em que a verdade não escapa mais e onde nada fica por dizer.

       A maior de todas as verdades foi surgindo a partir de minha própria humanidade e quando passei a mostrar-lhes o meu lugar de mulher comum, com defeitos, medos, inquietações, desejos, dores, fantasmas, inseguranças e um histórico de erros na vida. Ao revelá-las quem eu realmente sou, descobri um novo lugar em seus corações e fui deixando de querer ser a mãe superpoderosa que tudo consegue para me transformar numa mulher real, que também pode impressionar simplesmente por exercitar sua essência.