domingo, 24 de setembro de 2023

 COMO UM DRAGÃO QUIETO


            Todos os dias os meios de comunicação divulgam o conteúdo de decisões proferidas em todos os lugares do país e por todas as instâncias da Justiça. Às vezes dá até a impressão de que os juízes que decidem a respeito de conflitos fazem-no por iniciativa própria.

        O que uma boa parte das pessoas não sabe, porque não acostumada ao ofício jurídico, é que a Justiça é inerte, parada, não se movimenta sozinha, não age espontaneamente. É como táxi parado no ponto esperando alguém chegar e solicitar uma corrida até um dado endereço, metáfora que acabo de inventar para dizer o que está estabelecido no artigo segundo do nosso Código de Processo Civil brasileiro: "nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer". Este é um dos pilares do processo judicial e uma das primeiras lições a quem se prepara para a labuta com as leis. Chama-se princípio da inércia da jurisdição.

            Na época da faculdade de Direito, há uns trinta anos, tive um professor dessa matéria que dizia que a jurisdição é como um dragão quieto em seu canto, que só se mexe quando provocado. Diga-se de passagem, a palavra provocação é usada no âmbito jurídico, justamente, para se referir ao pedido que alguém faz à Justiça. Se ninguém cutuca aquele dragão, ele nada faz, permanece inerte, do mesmo modo que a Justiça, que não fornece nenhum pronunciamento sem que alguém a procure para a resolução de um conflito. Fica lá, à disposição, estática, esperando ser chamada.

            Mas, assim que provocada a Justiça, o que se dá a partir de um pedido formal, inicia-se o processo judicial cujo ato final é o julgamento. Este somente ocorre após ser dada às partes a oportunidade para a produção de todo tipo de prova prevista na lei, como a testemunhal, documental, pericial, vistorias, entre outras, que são imprescindíveis, porque somente depois da sua análise é virá o veredito que afetará de várias formas a vida dos envolvidos.

            Pensando nisso, bem que poderíamos adotar o princípio da inércia na vida diária porque, cá entre nós, não estamos imunes a meter o bedelho na vida dos outros. Para qualquer notícia da vida alheia que adentra nossos ouvidos, vamos logo dando um juízo de valor, uma opinião, sem que isso tenha sido pedido. Às vezes é por ingenuidade, outras vezes é por maldade mesmo. Se Fulana foi demitida do emprego é porque deve ter aprontado alguma. Se Beltrano estava acompanhado da prima do seu amigo é porque seu casamento vai mal e assim por diante.

            No dia a dia de todo mundo, dar opinião sem que se tenha sido chamado a tanto, é coisa muito comum de se ver. É entrar em um transporte público ou recinto qualquer, assim como na rua, na escola, no ambiente de trabalho e tem lá gente falando de alguém, seja condenando ou absolvendo, dando suas versões ignorantes sobre os fatos apenas porque não aguentam segurar dentro de suas bocas seus pontos de vista. Devemos é nos esforçar para entender os motivos alheios, as circunstâncias determinantes de um comportamento tal, enfim, não palpitar sobre coisas que não nos digam respeito, recolhendo-nos ao lugar do silêncio, deixando que o poder da toga seja exercido por quem o deva.

            Dar opinião sem critério é fácil demais quando a vida dos outros é que está no centro do debate. Difícil mesmo é entender os motivos de cada um, os porquês dos atos que cometeram, a história toda que os levou a fazer isso ou aquilo. Então, quando ninguém pedir a nossa opinião, o lugar onde devemos ficar é o mesmo daquele dragão dorminhoco representante da Justiça, que só se move quando alguém o provoca. No mais, a inércia é a melhor posição para todos.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

GRANDES INVENÇÕES


            É próprio do ser humano inventar, quando alguma dificuldade lhe aparece à frente ou apenas em razão da sua inerente veia criativa. Desde a época das cavernas, inventou ferramentas para caçar e poder alimentar-se, como também meios para abrigar-se das tempestades, do frio e do calor, e vestimentas para a proteção da sua pele.

            Em parceria com a terra, inventou maneiras e sistemas para o plantio de sementes e a multiplicação dos frutos, dividindo-os com os seus semelhantes. Inventou sons simbólicos para comunicar-se, bem como a escrita, para tornar comum suas ideias, divulgar novidades, contar histórias. Para não se sentir assombrado com os fenômenos incontroláveis e desconhecidos da natureza, o homem inventou os mitos, antes que ele próprio inventasse a ciência para entender melhor o mundo em que vivia. 

           O homem inventou alquimias contra suas dores físicas ou, simplesmente, para deslumbrar-se diante de reações químicas coloridas e fumacentas. Seu brilhantismo permitiu a invenção da indústria e do comércio para a produção e distribuição de suas descobertas. De sua cabeça saiu todo tipo de engenhoca para o seu deslocamento de um continente a outro ou do chão para as alturas e até para outros planetas.             

            Essa criatura inteligente inventou um jeito de verticalizar moradias para resolver o problema da falta de espaço. Inventou a arte como linguagem de expressão de sua essência e também a religião para diminuir o seu desamparo, também a política, para organizar sua vida comunitária, e a lei, para impedir os excessos de uns contra os outros, disciplinando os seus impulsos. Inventou a filosofia para dar conta de seus dilemas internos e a medicina, para a cura dos males do seu corpo e até de sua mente.

            Há bem pouco tempo, essa figura inteligente inventou um jeito de falar com outra, e até vê-la a quilômetros de distância, sem precisar sair da poltrona onde, confortavelmente, descansa, inventando também inteligências artificiais, foguetes, vacinas, drones, robôs, entre tantas outras criações benéficas.

            Mas há algo que o espírito humano ainda não inventou, que é a produção do antídoto contra os fantasmas psíquicos que lhe desafiam. O ser humano foi capaz de inventar todo tipo de teoria para explicar os medos e temores, aliás, que ele mesmo também inventou, mas ainda não inventou nenhuma maneira de impedir para sempre o surgimento deles.

            Somos peritos em inventar do nada neuroses e uma infinidade de outros sofrimentos, contudo, ainda não conseguimos inventar um jeito de enxergar que a simplicidade, a autenticidade, o enfrentamento das dores e a empatia com os demais são as melhores invenções para uma vida feliz, e que, na verdade, já existem para todos, bastando incorporá-los.

       

domingo, 10 de setembro de 2023

TERAPIA DO ARMÁRIO


            Uma sobra de energia num domingo à noite foi capaz de me levar para a frente do meu armário e um rápido olhar por tudo me fez perceber que não há espaço para mais nada. Quanta bolsa grande impedindo a entrada de outra mais atual, menor e mais prática...quanta roupa entupindo as prateleiras e amassando aquelas com potencial de uso ainda. Dei-me ao trabalho de por tudo abaixo para uma seleção criteriosa e objetiva, sem que sentimentalismos tomassem conta da minha faxina.

            Comecei pelas calças, provando uma a uma e quando vi estava formada a pilha das que não me serviam mais. Eram de um tempo em que eu andava por outras bandas e me satisfazia com outras situações. Percebi que o passar dos anos me deixou mais pesada e com mais medidas. Contudo, para não dizer que engordei, prefiro acreditar que minhas pernas cresceram porque deram maiores e mais audaciosos passos, arriscando caminhos nunca antes imaginados ou por mim autorizados. Nesse caso, então, minhas calças é que não quiseram acompanhar em tamanho as experiências que eu incorporei com o tempo e ficaram só entupindo as prateleiras. De um tempo para cá, serviram apenas como testemunho da pessoa que eu me tornei.

            Com as blusas a dinâmica foi a mesma e então outra pilha foi formada, especialmente por aquelas cujos botões não consegui mais fechar. Sem dúvida, ganhei mais corpo com os anos, mas é melhor afirmar que ganhei mais presença e fôlego. Minha caixa torácica deve ter ficado maior porque exercitei o pulmão respirando mais fundo diante do que antigamente, por mero impulso insano, me fazia reagir sem pensar. Atualmente, sou mais calma e serena. Outra hipótese é a de que talvez meu peito tenha crescido por conta de mais amor ocupando meu coração.

            A prateleira dos sapatos também ficou menos entulhada depois do meu olhar crítico sobre aquele acervo. Tirei aqueles de salto muito alto que já não uso mais, bem como os que estavam com a sola gasta. Já foi o tempo de eu querer aparentar uma altura maior do que a que eu tenho e não digo isso no sentido apenas da estatura. Passei a preferir ficar mais perto do chão mesmo, praticando o ato simbólico de andar com equilíbrio e mais próxima da realidade. Resolvi que os pares tirados do meu armário já cumpriram a sua missão de me elevar e de me levar para lugares onde antes eu me sentia feliz. Hoje sou mais adepta do conforto, mesmo que sacrificando a elegância.

            Não escaparam do meu escrutínio as bolsas. Várias delas retirei do closet. Já foram úteis para mim, especialmente, as grandes, que eu usava para levar um monte de coisas que atualmente julgo desnecessárias. Tornei-me minimalista, por gostar e precisar de pouco, tanto no sentido material quanto figurado. Acho perfeita a analogia entre os itens que levamos na bolsa e a bagagem de vida, que num dado momento já pode ser reduzida para o essencial. Talvez isso tenha a ver com a leveza que os perrengues da vida ensinam. 

            Finalmente, dei também uma aliviada na gaveta das maquiagens, dos penduricalhos e dos enfeites, como brincos, colares, lenços etc. Um monte deles já não eram usados há muito tempo, o que prova a sua pouca importância comparada ao que me levou um dia a comprá-los. Deve ser porque já não venho mais sentindo vontade de sair de casa como um pavão, dado o sentido da autenticidade que está batendo cada vez mais forte em mim. Sou o que sou, não preciso agradar os olhos de ninguém.

            A gente impregna os objetos de memórias afetivas ou os transforma em lembranças concretas de épocas e de pessoas a eles relacionados. Bobagem, pois desfazer-se deles não significa desfazer-se do que vivemos, nem daqueles que nos presentearam.

            Arrumar o armário, tirando aquilo que não me servia mais ou que eu não precisava chegou a ser terapêutico, porque ao mesmo tempo em que exercitei o desapego, refleti sobre o que já passou e imaginei novas vivências, o que deu uma boa viagem ao passado e ao futuro sem ter saído do lugar.

             

            


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

 A VIDA É CHEIA DE 'ÕES'


            Prestando certa atenção, podemos ver que, no corre-corre de todo dia, estamos envoltos de muitos 'ões', isto é, um tipo de ditongo que faz parte da linguagem corrente que usamos em nossas comunicações. Olha um deles aí! São muitos, vou usá-los aqui de um jeito diferente, fazendo reflexõesOlha outro aí!

            Começo dizendo que ninguém passa pela vida sem levar tombos e escorregões, tampouco escapa de certas dores e decepções ou do medo diante de experiências desconhecidas, poeticamente denominadas escuridõesDesconheço ainda quem, tipicamente moderno, não se canse das tensões, daquelas que nos fazem matar leões para chegarmos ao ponto onde queremos. Porém, somos de carne e osso, não fomos programados para explodirmos como vulcões. Somos frágeis em certa medida, vítimas de nossas próprias ilusões das quais ninguém se safa, tão gostosas quanto perigosas, mas aí entram outras questões.

            Até aqui, só falei de atribulações difíceis de dar conta, mas graças ao bom Deus somos uma espécie dotada da magnífica capacidade de desenvolver bons sentimentos em nossos corações que, como correntes marítimas, esquentam a alma permitindo vivenciar a alegria, a felicidade e os bons ventos das emoções. São como mágicas poções, ajudam a nos empurrar para o alto em dias de céu limpo e azul, como balõesQuem, por exemplo, nunca se sentiu voando, momentaneamente, pelo arrebatamento das paixões?  Ou nunca sentiu friozinhos gelados e cobrinhas na barriga mais conhecidas como excitações?

            Viver é mesmo assim, é experimentar um pouco de tudo (ou muito, até), é como subir e descer escadas, porém, sem contar com corrimões. O jeito então é aprender a se equilibrar, para ganhar mais tranquilidade, livrar-se dos cansaços, experimentar menos pressões.           

            Somos todos muito tomados por compromissos, temos caminhões de coisas que demandam nossa dedicação. É necessário que em certas horas paremos, nem que seja para conversarmos com nossos botões, para conseguirmos ressignificar coisas, transformar as dificuldades em aprendizados e os erros, em profissões. Algo como fazer limonadas a partir dos limões, para tornarmos menos sofridos os reveses da vida e sentirmos menos aflições. Todo cuidado é pouco para, encarando nossas atribuições, não consumirmos horas preciosas, comprometendo nosso tempo ao ponto de necessitarmos drásticas mudanças e retificações.

            É importante viver com leveza, acolhendo mais as nossas intuições, despertando novos olhares para o mundo e, perante a vida, novas visões. Diversas razões nos orientam para mudarmos o foco para outras direções, buscando encontrar outros propósitos em tudo. É igualmente importante rever sonhos, tomar decisões, concentrar energia para outras ações, alterar velhas rotas, neutralizar antigas preocupações.

            Da nossa existência, somos nossos próprios guardiões, não deixemos que os dias de inverno estraguem nossos verões. Olhemos tudo com cores novas para termos outras impressões. Para administrar esses tantos 'ões' que perpassam por nossa vida, tenhamos fé e inspirações.