terça-feira, 28 de novembro de 2023

 

O BENEFÍCIO DA DÚVIDA


        A dúvida, mais conhecida como a falta de certeza, é uma constante na vida de qualquer pessoa. Existe em qualquer alma humana que habita ou já habitou este planeta, assim como já está à espera das que ainda virão. A dúvida está em todos os lugares e em todos os tempos. É mesmo uma grande questão, como expressou Hamlet com o 'ser ou não ser' nascido da pena de Shakespeare nos idos anos do século XVII.

        Mas não é de todo ruim a dúvida. Chego ao ponto de pensar que devíamos acolhê-la como parte indissociável de nós e reverenciá-la em vista da sua utilidade muitas vezes ignorada. No fundo a dúvida é nossa amiga, protege-nos em muitas situações. O seu oposto sim é que é nefasto: a certeza. 

        Primeiro, porque funciona como uma espécie de vírus psíquico que passeia pelo nosso cérebro atingindo o coração e gerando outros estragos secundários. Tem muita gente doente dessa fraqueza. Engana-se quem acredita que a certeza é valiosa, algo para ser almejado.

        Segundo, porque a certeza sequer existe, posto que é efeito de uma distorção do pensamento de quem diz possuí-la. É uma fantasia maléfica que promove julgamentos rasos, tem efeito redutor de tudo, interrompe progressos em vários campos, enfim, a certeza é péssima. A certeza é tão maléfica que a sua ausência chega a provocar uma necessidade de inventá-la para dar sustentação a crenças cristalizadas.

        A expressão 'benefício da dúvida', como popularmente se diz, confirma que a dúvida é mesmo benéfica, pena que ninguém presta muita atenção na sua utilidade. Precisa-se ser acusado de algum comportamento indevido para o indivíduo lançar mão da dúvida como escudo de proteção na hora de um empurrão contra o muro das cobranças. 

        Basta também ser destinatário da denúncia de uma transgressão qualquer para que se peça socorro ao 'benefício da dúvida' para escapar da condenação. Daí sim a dúvida é maravilhosa e todo mundo tira ela da manga para se ver absolvido. No mais das vezes, todo mundo quer é ser visto como o grande porto onde a certeza aterrissa.

       Dúvida, meu povo, é prima irmã da liberdade! É o 'só sei que nada sei' de Sócrates, o puro reconhecimento da falibilidade humana. A dúvida é o portal das mil e uma possibilidades. A certeza que é a vilã, porque reside no bueiro onde convivem a cegueira e a estupidez.

        Ninguém é menos porque tem dúvida. Fazer as pazes com a dúvida é como sair da vala comum das infalibilidades humanas, este lugar tão sem luz, onde nada é maleável e tudo é endurecido e provisório, o esconderijo onde as certezas brigam entre si para se sobressaírem. 


Fonte da imagem: https://tomgreentree.com/when-doubts-assail-how-faith-can-grow-when-doubts-come-knocking/

sábado, 11 de novembro de 2023

 ERROS QUE EU AMEI


    
        Quando minha filha mais velha era pequena, eu podia contar com uma pessoa muito amorosa para cuidar dela no meu horário de trabalho. Francisca dava-lhe comida, cuidados, companhia, afeto. Ensinava-lhe brincadeiras, cuidava de sua roupinha, dava-lhe o lanchinho sadio, fazia-a dormir o soninho da tarde. Foram bons anos zelando pelo meu maior tesouro.

            Mas uma vez, Francisca acertou mais do que talvez pudesse perceber. Ela resolveu cantar para minha filha a musiquinha da igreja. A letra da primeira estrofe era assim: "Mãezinha do céu, eu não sei rezar, só sei lhe dizer, que eu quero te amar". Minha pequena aprendeu, porém, repetia trocando as letras desta forma: "...só dei delizer, que eu quero te amar...". Já na primeira vez em que escutei, notei que cantava errado. Não corrigi, porque achei bonitinho. 

            Ela estava na fase de aprendizado da linguagem e eu sabia que no futuro saberia cantar corretamente a cançãozinha. Eu também sabia que o mais importante era o contexto da musiquinha e que a troca de letras não implicaria em nada. A menina ficou adulta e até hoje peço-lhe para cantar "errado" para mim.

            Agradeço à Francisca por nunca tê-la corrigido também, deixando a criança cantar daquele jeitinho, porque, no fundo, nos divertíamos escutando aquela voz fina e pueril expressando o que vinha de seu coraçãozinho aprendiz de emoções.

            Mais velha um pouco, e já dominando mais as palavras, ensinei minha menina a rezar o Santo Anjo: "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, ...a piedade divina sempre me rege, me guarde, me governe ...". Ela dizia "me gorrernerepetindo, simplesmente, o que lhe parecia o correto. Da mesma forma como na canção da igreja ensinada pela Francisca, eu não corrigi a oração, pois no futuro ela também aprenderia. Enquanto isso, suas falas truncadas eram o meu gatilho seguro para amassá-la e beijá-la tantas vezes quantas fossem as que eu pedia para ela cantar ou rezar.

            Até hoje, reunidos em família, recordamos seus pequenos tropeços fonéticos e sentimos muita saudade daquela fase que, sem percebermos, aprendíamos a célula da coexistência entre erro e amor. Perfeição é a derrota, como li há alguns dias. Que bom se pudéssemos sempre sentir que podemos ser amados independentemente dos erros que cometemos, sejam eles pequenos ou grandes!

            Quando adultos, esquecemos que somos falíveis e pobres de entendimento, porque também estamos num oceano de aprendizados, de todas as linguagens humanas, das expressadas pelo nosso corpo, da que sai do nosso olhar, da que grita para dizer dos nossos desejos e até mesmo daquela linguagem que nos sai pela boca, porque nem sempre somos hábeis em dizer o que sentimos.

           Errar é humano, como o amor. É uma pena que algumas vezes perseguimos a medalha do acerto como moeda de troca de sentimentos, especialmente, daqueles que já nos amam ao jeito deles. No máximo, aquilo que entendemos como erros, deveriam ser vistos nossos melhores professores, veículos de um conhecimento especial sobre a vida e as relações. 

            Agradeço muito à Francisca, que não corrigiu minha filha, pois, sem querer, ela me ensinou sobre o amor na sua maior amplitude. Lá do céu, este texto está também assinado por ela.

 O COFRE DE CADA UM 


        Veio-me à cabeça, como metáfora, que todos guardamos no recanto do nosso ser uma espécie de cofre peculiar. Não é feito de aço, mas forjado pelo nosso inconsciente escuro, enigmático e fechado, cuja abertura - exclusivamente por vontade própria - condiciona-se ao emprenho de tempo, sensibilidade, persistência e, principalmente, coragem para ali encontrar o que no passado guardamos e hoje nos é desconhecido. É como um santuário de experiências.

       Neste cofre que ocupa algum lugar dentro de nós, encontram-se as nossas penumbras de memórias pouco tangíveis, além dos aromas da infância, dos sabores doces e amargos das relações que mantivemos com pessoas. Também as emoções pueris ali cristalizadas com o tempo e que se transformaram em ecos incômodos a reverberar em nossa vida adulta, porque não as compreendemos. 

       Neste espaço secreto também estão as nossas interpretações sobre as palavras e olhares dirigidos a nós pelas pessoas que nos moldaram. Neste cofre de difícil acesso está colocado tudo o que a nossa consciência, em uma época remota, não tinha capacidade para entender, pois não passava de uma sementinha em desenvolvimento.

      Porém, já adultos, precisamos abri-lo se desejarmos uma vivência mais autêntica, leve e feliz e menos cheia de dúvidas, hesitações e cegueira. Mas somente chaves emocionais conseguem abrir este depositário de sombras que costumamos não compreender. São os nossos fantasmas e dragões, muitas vezes frutos de nossa própria criação, como projeções de nossas inseguranças e vulnerabilidades, por trás das quais há uma lição a ser aprendida. A busca por maior autoconhecimento é fundamental. 

      Para isso é que eu conto com a minha analista Sherlock Holmes de almas, que há algum tempo vem me auxiliando a virar de pouco em pouco a peça giratória secreta do meu cofre para que eu consiga defrontar-me com meus mapas, códigos e narrativas ali existentes para reescrevê-los, daí sim, transformá-los em tesouros para minha vida. 

        Relembre ser necessário o emprenho de tempo, sensibilidade, persistência e, principalmente, coragem, pois ressignificar o passado requer dedicação e esforço, assim como uma boa dose de humildade.

        O resultado dessa jornada será o encontro com uma luz interior irreversível, a verdadeira fortuna de uma existência e um portal para um futuro melhor.