sábado, 11 de novembro de 2023

 ERROS QUE EU AMEI


    
        Quando minha filha mais velha era pequena, eu podia contar com uma pessoa muito amorosa para cuidar dela no meu horário de trabalho. Francisca dava-lhe comida, cuidados, companhia, afeto. Ensinava-lhe brincadeiras, cuidava de sua roupinha, dava-lhe o lanchinho sadio, fazia-a dormir o soninho da tarde. Foram bons anos zelando pelo meu maior tesouro.

            Mas uma vez, Francisca acertou mais do que talvez pudesse perceber. Ela resolveu cantar para minha filha a musiquinha da igreja. A letra da primeira estrofe era assim: "Mãezinha do céu, eu não sei rezar, só sei lhe dizer, que eu quero te amar". Minha pequena aprendeu, porém, repetia trocando as letras desta forma: "...só dei delizer, que eu quero te amar...". Já na primeira vez em que escutei, notei que cantava errado. Não corrigi, porque achei bonitinho. 

            Ela estava na fase de aprendizado da linguagem e eu sabia que no futuro saberia cantar corretamente a cançãozinha. Eu também sabia que o mais importante era o contexto da musiquinha e que a troca de letras não implicaria em nada. A menina ficou adulta e até hoje peço-lhe para cantar "errado" para mim.

            Agradeço à Francisca por nunca tê-la corrigido também, deixando a criança cantar daquele jeitinho, porque, no fundo, nos divertíamos escutando aquela voz fina e pueril expressando o que vinha de seu coraçãozinho aprendiz de emoções.

            Mais velha um pouco, e já dominando mais as palavras, ensinei minha menina a rezar o Santo Anjo: "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, ...a piedade divina sempre me rege, me guarde, me governe ...". Ela dizia "me gorrernerepetindo, simplesmente, o que lhe parecia o correto. Da mesma forma como na canção da igreja ensinada pela Francisca, eu não corrigi a oração, pois no futuro ela também aprenderia. Enquanto isso, suas falas truncadas eram o meu gatilho seguro para amassá-la e beijá-la tantas vezes quantas fossem as que eu pedia para ela cantar ou rezar.

            Até hoje, reunidos em família, recordamos seus pequenos tropeços fonéticos e sentimos muita saudade daquela fase que, sem percebermos, aprendíamos a célula da coexistência entre erro e amor. Perfeição é a derrota, como li há alguns dias. Que bom se pudéssemos sempre sentir que podemos ser amados independentemente dos erros que cometemos, sejam eles pequenos ou grandes!

            Quando adultos, esquecemos que somos falíveis e pobres de entendimento, porque também estamos num oceano de aprendizados, de todas as linguagens humanas, das expressadas pelo nosso corpo, da que sai do nosso olhar, da que grita para dizer dos nossos desejos e até mesmo daquela linguagem que nos sai pela boca, porque nem sempre somos hábeis em dizer o que sentimos.

           Errar é humano, como o amor. É uma pena que algumas vezes perseguimos a medalha do acerto como moeda de troca de sentimentos, especialmente, daqueles que já nos amam ao jeito deles. No máximo, aquilo que entendemos como erros, deveriam ser vistos nossos melhores professores, veículos de um conhecimento especial sobre a vida e as relações. 

            Agradeço muito à Francisca, que não corrigiu minha filha, pois, sem querer, ela me ensinou sobre o amor na sua maior amplitude. Lá do céu, este texto está também assinado por ela.

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