domingo, 26 de maio de 2024

 O SAPO DO BANHADO


            Se há algo que subsiste como dogma no grande caldeirão de verdades da humanidade é que cada um tem seu tempo e maneira para curar suas dores. Isso indica que é necessário respeitar os ritmos e estilos próprios de cada um até que consigam dar conta do que a vida lhes traz como desafio individual. E longe de ser uma benevolência, trata-se de um direito que lhe cabe, talvez, dos mais sagrados.

           É como se cada pessoa tivesse dentro de si um fundo de recursos emocionais acumulado aos poucos e variável de acordo com sua idade, suas relações familiares, suas vivências e acontecimentos em geral. Isto é o mesmo que afirmar sobre a necessidade de se colocar no lugar dos outros, cujo tempo de elaboração em face das lutas que enfrenta é muito particular e que cada calo é proporcional à ferida sofrida.

            Quando se está protegido com um coturno de solado grosso, não há como exigir que o ser humano ao lado, descalço num chão de pedregulho, não sinta dor. Ignorar que cada um tem seu tempo é pura ausência de compaixão e de empatia, além de um egoísmo, do brabo, assim como falta da noção de que as pessoas vão até onde conseguem num dado momento de suas vidas, só conseguindo ultrapassar seus limites quando os velhos ferimentos não latejarem mais e possam ser úteis como referencial de superação para outras dores ou medos que vierem, sejam reais ou imaginários.

            Sim, dores ou medos imaginários também contam, pois eles só são bestas ou bobos aos olhos de quem está de fora, sendo muito reais para quem os experimenta. É por isso que não há como obrigar alguém a desprender-se dos seus fantasmas como quem abaixa um simples véu do rosto. Dores e medos ilusórios são tão verdadeiros e concretos para uns quanto não o são para quem não acessa a singularidade alheia. É porque a realidade será sempre individual, e particularmente relacionada às histórias pessoais, que, bem ou mal, influirão na visão de mundo de cada um perante o chamado da vida para algum enfrentamento. É o mesmo que dizer que cada um enxerga o mundo conforme sua própria lente.

           Assim, não adianta se fiar na crença de que todas as criaturas têm ferramentas emocionais equivalentes contra as adversidades. É como oferecer o oceano para o sapo do banhado e criticá-lo por sua recusa. Se o bichinho só domina o seu habitat, é certo que um mundo novo lhe será assustador, ainda que não o seja para o tubarão que o propagandeia. Para este tubarão que tenta seduzir o sapinho com as maravilhas que conhece, dizendo-lhe sobre um lugar bem melhor do que o banhado pequeno e raso, estará faltando a lição número um da convivência, que é o respeito ao outro, aos seus processos, às suas escolhas.

            É até possível imaginar que o sapinho se sentirá encantado com os mares, mas será necessário respeitar o seu tempo e a capacidade das suas perninhas até que chegue lá, caso queira, inclusive, pois o seu banhado pode ser também muito bom e estar no âmbito de suas escolhas. Pode ser que o sapo diga ao tubarão que seu conforto está na água calma e doce do seu banhado e que as correntes marítimas salgadas, ainda que tentadoras, estão fora de suas cogitações, não são a sua morada. Forçar alguém a algo é desumano e violento.

            Como disse Simone de Beauvoir "é meu passado que define a minha abertura para o futuro... o meu passado é a minha referência que me projeta e que eu devo ultrapassar... ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância". 

terça-feira, 21 de maio de 2024

 LIGADOS DE ALGUMA FORMA

            Era um homem alto, magro, com a calvície dominando os poucos cabelos finos e prateados. Seus olhos, de um azul claro e profundo, eram expressivos e guardavam muitas histórias. Suas orelhas eram levemente pontudas e delas saíam tufos de pelos. Sua nuca era enrugada pela velhice e pelo sol tomado durante toda uma vida com a proteção de apenas um chapéu de palha. Os dedos de sua mão direita eram bastante amarelados de tanto segurar o cigarro, vício do qual nunca se afastou. Andava e falava vagarosamente.

            Este era o meu avô materno. Seu nome era Waldemar. Era também meu padrinho de batismo. Morreu aos 74 anos de idade, pouco depois de eu completar os meus vinte e um. Que saudades de você, vô! Jamais esqueceu de comprar na vendinha da esquina a barra de chocolate de que eu tanto gostava. Era ele também quem me dava mesada na adolescência. São dele muitos dos livros que eu guardo até hoje em casa.

            Gostava muito de ler comendo doces ao mesmo tempo. Livros, revistas, qualquer coisa que lhe caísse à frente. Usava seus óculos de lentes grossas e armação preta. Tinha hábitos simples.

            Foi de tudo na vida. Começou a trabalhar como aeronauta, mais especificamente, como rádio-operador de voo, tendo atravessado os céus do Brasil inteiro por meio de aviões de empresas aéreas que já nem existem mais. Também trabalhou numa companhia de transporte ferroviário, já extinta.

            Depois de se aposentar, comprou uma chácara e lá ia todos os dias de tarde para capinar, colher frutas, cuidar das plantas, das galinhas, assim como conversar com o Seu Bressan, vizinho do terreno ao lado, dono do Tito e do Caco, os cavalos a quem dávamos capim através da cerca que dividia as propriedades. Chegou a construir uma casinha branca nesta chácara, da qual eu tenho uma forte lembrança, capaz de preencher um espaço tão real quanto simbólico em minha memória.

            Vendida a chácara após alguns bons anos, o velho alemão foi ser escritor. Escreveu mais de três mil crônicas, todas com a ajuda da sua máquina de escrever obsoleta, mas que nunca lhe deixou na mão. Está comigo uma grande parte daqueles papéis, hoje escurecidos pelo tempo. Gostava de conversar sobre tudo, desde política, história, geografia, causos... Era metido a saber de tudo, interessava-se por tudo.            

            Hoje passei o dia inteiro pensando nele. Em meus ouvidos veio a memória de sua voz grossa, assim como a sua boca fumacenta por causa do cigarro. Meus olhos também pareceram captar o seu semblante, como se ele estivesse bem à minha frente. 

            Mas a maior mesmo foi na hora do meu banho, em que cheguei a cantar umas quatro vezes a musiquinha que ele cantava para mim quando criança. A letra , bem singela, falava de acordar uma tal de Dona Maria, porque já eram oito horas e o sol já raiava e os passarinhos faziam seus ninhos e lá, lá lá e a tal da Dona Maria precisava levantar-se para a lida do dia. Ao final da cançãozinha, meu avô fazia cócegas na cintura magrela da menina de 5 anos que eu era. Eu sempre sabia do final desta brincadeira, mas pedia para ele repetir mesmo assim.

            Já faz 33 anos que ele partiu e muita saudade brotou no coração da neta que tanto amava aquele velho homem. Achei muito engraçado ter ficado o dia inteiro lembrando do meu avô Waldemar: sua voz, seu rosto, seus dedos amarelos, suas histórias. No fim da tarde, percebi o motivo dessa lembrança intensa, quase como uma revelação surpresa vinda à minha mente: hoje é 21 de maio, o aniversário do meu querido avô.            

            Para mim, coincidências não existem, mas se existem, não quero acreditar nelas. Prefiro pensar que meu avô esteve ao meu lado todo o tempo no dia de hoje, para dizer que temos um fio de luz que nos une para sempre, porque amor é coisa que transcende o tempo e a própria vida.

sábado, 18 de maio de 2024

                                        

AMOR E DEVER
(tem spoiler)

            Ontem assisti a um filme muito gostoso, daqueles que conseguem preencher o vazio de uma madrugada sem sono. Uma história de amor às avessas, contrária ao roteiro clichê da mulher casada que se apaixona por outro homem. Um pano de fundo sensível ambientava uma história de amor marcada pelo amargor sentido no contexto de um triângulo amoroso, em meio ao qual foi possível ver nascer o amor verdadeiro no lugar de um vínculo antes enfraquecido.

            "O Despertar de uma Paixão" é o título do drama romântico passado nos anos 1920, onde um jovem casal britânico se muda para a China rural para tentar combater um surto de cólera. Walter é um dos médicos sanitaristas destacados para a missão e sua esposa Kitty, que o acompanhara, encontra um serviço voluntário junto ao orfanato religioso local.

            A viagem para a China ocorrera poucos meses após o casamento afetado por uma crise nascida da desilusão de Walter ante à descoberta do envolvimento de sua esposa com outra pessoa, bem como pelo desprezo a ela desde então. Kitty, que havia se casado apenas por imposição paterna, nunca negou seu sentimento por Charles, de quem acaba se afastando devido à necessidade de acompanhar seu marido àquele país.

            O desenrolar de toda a história é muito bonito, ainda que permeado por inúmeras dificuldades, mas, no que verdadeiramente interessa aqui, a narrativa destaca o médico desiludido se encantando aos poucos com a dedicação de sua esposa junto aos necessitados, bem como junto a ele próprio, cuja saúde estava a todo momento ameaçada pela proximidade com tantos doentes. É assim que Walter experimenta o renascimento do seu desejo. Kitty, por seu lado, também começa a enxergar o marido com outros olhos, por ver nele o envolvimento com a causa nobre que lhe fora conferida, assim como por estar sempre atento ao bem estar dela. A antiga frieza da convivência vai dando lugar ao nascimento de algo autêntico, pois ambos redescobrem a si mesmos e o relacionamento, transformando a crise inicial em uma profunda conexão emocional.

            O filme capturou minha atenção de maneira especial em uma cena que revi ao menos três vezes. Foi no diálogo entre Kitty e a Madre Superior do orfanato, quando esta, sem nada saber da história do casal, expressa o que, para mim, representou uma verdade descortinada. Falou dos enlaces em que há amor, mas não há dever e daqueles em que há dever, mas não há amor, e concluiu dizendo que a graça é alcançada no coração quando o amor e o dever estiverem juntos. Achei lindo.

            Kitty, inicialmente, havia encontrado o amor junto ao seu amante, mas não possuía qualquer dever perante este, ao mesmo tempo em que se mantinha junto de seu marido apenas pelo dever do casamento, mas sem amor. O nascimento paulatino do sentimento por Walter fundiu-se com o dever já existente, o que fez Kitty experimentar a autenticidade do que a freira lhe dissera, podendo sentir a graça adentrar seu coração.

            Para mim, quando amor e dever estão juntos, talvez nem haja divisão possível, e sim uma unidade, na medida em que tudo é sentido como uma coisa só. O dever é cumprido com alegria e assumido como escolha consciente. Pelo lado do amor, este promove o surgimento natural da vontade do cumprimento do dever, perpetuando o vínculo estabelecido.

            A harmonização destas duas forças, muitas vezes vistas como opostas, pode representar a união entre o desejo e a responsabilidade moral, permitindo que se sinta alegria tanto no que fazemos por amor, quanto no que fazemos por dever.

            O dever, imbuído de amor, deixa de ser um fardo. O amor, quando mesclado ao dever, ganha profundidade e propósito, transforma-se em desejo genuíno de honrar o compromisso entre os seres. Neste estado de harmonia, amor e dever se sustentam mutuamente.

terça-feira, 14 de maio de 2024

 JÁ TUDO CONSERTADO

            Vi recentemente na TV que Susana Vieira acabou de lançar uma autobiografia. A atriz global tem vindo a público anunciar a imortalização de sua história, desde a infância até os dias atuais. Aos 81 anos de idade resolveu dividir com o público os bastidores de sua própria vida, contando a respeito da sua carreira nas emissoras brasileiras, seus casamentos, seus filhos, seus netos.

            Numa das suas aparições para divulgar a obra, chamou-me a atenção a seguinte frase dita com bastante entusiasmo para o telespectador: - O livro é alegre, divertido, fala da minha história e de algumas coisas que deram errado, mas já tudo consertado! Foi aí, nesta parte final em que ela fala de coisas já consertadas, que algo me capturou de um jeito sutil e ao mesmo tempo profundo, porque foi como uma garantia de que tudo um dia volta a ficar bem. O que ontem deu errado amanhã encontrará novos lugares e configurações.

           Foi uma frase que valeu como depoimento de alguém que, com conhecimento de causa, pode dizer que na vida tudo o que se submete à passagem do tempo acaba se acomodando de alguma maneira, se rearranja, se recupera, para de latejar.

            Aquela fala rápida da Susana em prol de sua obra soou como uma dica para não ligar para o que dói hoje, para agarrar as várias possibilidades que aparecem na vida, para não deixar que a força do medo domine, porque lá na frente, aos 81 anos de idade ou mais, tudo estará consertado.

           Tomei esta palavra como um sossego antecipado capaz de neutralizar minha fantasia que às vezes dita um futuro turbulento tão dependente do que eu fizer hoje. Foi como se eu tivesse ouvido diretamente dela 'Vai, boba, aproveita o que a vida está te trazendo, porque lá adiante tudo estará consertado!' Foi como me dizer que sair da linha, desobedecer a protocolos sociais, fazer-se de surda para alguns discursos morais vigentes, não é o fim do mundo, afinal, quando se estiver na casa dos oitenta, tudo estará consertado.

            Achei que a Susana Vieira foi bastante feliz no que disse, ao menos para mim, que identifiquei nas suas palavras uma forma leve e verdadeira de recomendar que o importante é viver, fazer história, tomar os erros como marcas de uma vida bem vivida. 

            Passei a vê-la não mais apenas como a grande atriz nacionalmente conhecida, mas também como uma senhora octogenária que consegue brincar com sua trajetória, quem sabe recomendando dar risada de medos, porque estão fadados a minguar e assumir o status de passado curado, ressignificado, ou melhor, consertado.


Fonte da imagem: https://tribunadonorte.com.br/viver/susana-vieira-80-anos-decada-de-1970-marcou-a-carreira-da-atriz/

terça-feira, 7 de maio de 2024

 AMOR E DISPONIBILIDADE

                Recentemente, assisti a uma live na internet cujo tema era o amor. De duas uma: ou eu estava sem nada para fazer a ponto de poder ficar absorta por uma hora e meia com os olhos e, principalmente, os ouvidos grudados na tela, ou o assunto é de tal importância que mereceu uma pausa no cumprimento das minhas obrigações. Fico com a segunda alternativa, pois penso que nada em nossa existência é mais importante, desafiador e vital do que o amor. Ninguém vive sem amor, ninguém sobrevive sem amor, melhor dizendo.

              Para começar, falou-se do amor romântico explicado por meio de um retorno ao Banquete de Platão, mostrando que desde tempos remotos de nossa história, este sentimento sempre esteve em pauta na vida dos seres humanos, que até hoje buscam sua outra metade, após terem sido cortados ao meio pelo poderoso Zeus mitológico, com a ajuda de Apolo. 

              É daí que teria vindo a ideia do(a) parceiro(a) como a cara metade ou a metade da laranja que todo mundo fala e canta por acreditar que, ao encontrá-lo(a), experimentará a completude. Então o amor seria a tentativa de reunificação, de resgate do paraíso perdido, o que é um tanto impossível e utópico, diga-se de passagem, de sorte que alguém que diga tê-lo encontrado está mergulhado na ilusão.

              Como eu já havia ouvido esta explicação mítica, prestei mais atenção noutro ponto da conversa, mais prático e menos filosófico e que falava sobre o amor próprio que cada um precisa conservar como luz permanentemente acesa dentro de si. A questão do amor próprio estava sendo abordada a partir de um viés diferenciado e sobre o qual eu jamais havia pensado, por envolver a ideia de disponibilidade.

              Disponibilidade, segundo a live, é um indicador para avaliar o quanto de mim, do meu tempo, das minhas energias e até das minhas vontades estão aí para o uso amoroso. É uma medida para avaliar o quanto alguém está aberto para dar de si e, ao mesmo tempo, dar a si próprio, conservando-se, cuidando-se. Disponibilidade é, portanto, estar em stand by para o atendimento das necessidades do outro, como também envolve uma gestão cuidadosa dos próprios recursos emocionais.

              Logo, trata-se de uma palavra que possui dois lados, a face e a contraface, como dupla potência, porque porta o sentido de que o amor é ficar em posição de espera em benefício de alguma demanda do outro, mas também é adotar uma dinâmica de economia em favor de si mesmo, dando-se amor próprio, que também é expressão de amor.

              Se escolho estar disponível a alguém, concordo em doar-me e é por isso que posso dizer que amo. Se escolho não estar disponível para certas empreitadas com o outro, também amo, a mim, em tal caso, e toda esta reflexão sobre a dualidade do amor e da disponibilidade está a dizer sobre a necessidade do equilíbrio entre a dedicação aos outros e o autocuidado.

              Colocar-se à disposição de alguém é uma declaração de amor que transcende o superficial de uma relação. Nesse sentido, amar envolve uma escolha ativa e não uma submissão às necessidades alheias. De outro lado, não estar disponível às necessidades alheias é também uma forma de amor, dirigido a si próprio, pré-requisito da saúde mental e bem-estar. E tudo isso, funcionando ao mesmo tempo, é o melhor da experiência humana relacionada ao amor.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

 CONSENTIMENTO


            A palavra de ordem para hoje é esta: consentimento. Consentir é não obstaculizar, é tolerar por vontade verdadeira, por desejo de não se opor e de não gastar energia psíquica. Consentir é não antagonizar. Consentir é diferente de permitir, porque porta um sentido maior envolvendo apaziguamento e porque permissão pressupõe hierarquia e poder de quem permite. Consentir também é diferente de desistir, porque não se trata de abrir mão ou de largar os bets, como se diz aqui no sul. Não é tampouco entregar-se à derrota e à impotência, porque o consentimento, por sua natureza, envolve o ato voluntário de reconhecer que algumas coisas são do jeito que são. Consentir é acolher com o coração o que não se pode mudar, o que não se sujeita à vontade egoísta de transformar algo que tem seu próprio modo de ser, sua essência.

            O consentimento há de ser autêntico, genuíno, sentido na própria carne e com aquietação frente a um desejo insistente. Envolve a percepção de que é melhor dar vazão à paz que sempre está à disposição de qualquer um, só esperando passagem para se presentificar no coração e oferecer leveza à alma. Diz respeito à aceitação de que algumas coisas repousam sobre o solo alheio às influências do querer individual e presunçoso.

            Malhar em ferro frio é a expressão que ouvi desde pequena da minha mãe para o aprendizado de que há coisas sobre as quais não temos o poder de interferir, e nisso não entram apenas as coisas para as quais nossas forças físicas são limitadas, como mudar as montanhas de lugar ou forçar a chuva a cair. Entra de tudo, inclusive aquilo que não temos do direito de mudar, como as pessoas, quiçá o terreno mais difícil de se aplicar o consentimento, uma vez que aceitar o outro em sua inteireza e peculiaridades demanda sabedoria, humildade e inteligência.

            O consentimento é a melhor via para a paz interior e, certamente, um exercício difícil, pois implica no caminho obrigatório para o respeito às razões pessoais de cada qual, de acordo com o seu tempo, seus limites, suas vontades, seus quereres. Consentir é não dar abrigo à soberba e ao egoísmo de achar que o mundo gira em volta do próprio umbigo.

            Na cultura japonesa, o tai sabaki é o conjunto de técnicas para lidar com uma dada situação, um método de gestão das energias pessoais para evitar o esgotamento inútil dos combustíveis mentais. Não se tratam de formas para se esquivar do que é preciso enfrentar e gerenciar, a exemplo de alguns objetivos e alguns conflitos, mas de estratégias para alcance da tranquilidade.

            A própria natureza mostra o uso do tai sabaki em suas dinâmicas, como o tronco grosso da árvore que não consente com o peso da neve acumulada em si e acaba quebrando numa determinada hora, ao passo que o caule fino e flexível do bambu verga suavemente, deixando cair a neve ali depositada, voltando íntegro à sua posição original, sem danos. Melhor ser tronco duro, rijo e quebrar-se frente à adversidade ou bambu leve, flexível e durável quando o peso da vida se acumula? Melhor quebrar-se na insistência de parecer forte ou curvar-se para deixar que a dificuldade passe e mostre que fragilidade não é fraqueza? 

            Consentir é sinal de iluminação, porque demonstra o conhecimento de que não podemos ter o controle de tudo, dos acontecimentos, das pessoas, do mundo, da vida, da morte. É deixar de querer ser o anteparo contra certos movimentos da vida, porque precisamos saber que não somos tão fenomenais na luta contra coisas que são como elas são. Consentir significa abdicar da ideia do suposto direito sobre algo que reside na esfera de escolha do outro, é saber que o exercício da alteridade liberta mais a quem o pratica.

            A libertação virá, trazendo a consciência de que certos embates não são sadios e servem apenas para escoamento das forças, além da mais pura perda de tempo e enfrentamento inútil contra algo irrealizável. Virá como troféu pela triagem sensata das disputas que valem alguma medida de esforço pessoal. Consentimento é concentrar-se em potência para viver bem e deixar de gravitar em volta do outro exigindo-lhe mudanças para eximir-se da responsabilidade própria. Consentimento é como abrir janelas para que o ar pesado se vá com o vento e limpe o ambiente, é varrer a arrogância de que se pode atropelar o outro, sem respeitar sua natureza individual.

Fonte da imagem: https://www.fastcompany.com/91014728/heres-what-its-like-to-quit-a-job-you-love-and-how-to-make-it-easier