quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 VOCÊ É COMO UMA ÁRVORE 

                Para começar, imagine você no começo da sua vida como a semente de uma árvore sendo colocada na terra para germinar, crescer e se transformar em um lindo representante do reino vegetal. Neste início você será sutil, leve e frágil, mas carregado do maravilhoso potencial de, simplesmente, ser e se transformar. Você será regado, alimentado e, da mesma forma que as plantas, poderá desenvolver alguns espinhos para a sua defesa e até uma casca dura contra socos e pontapés. Você florescerá e frutificará. 

                Como a semente, você é lotado de informações genéticas, bem como um portador da incrível capacidade de viver e estar no mundo. Você crescerá entre os seus, fará parte de uma comunidade, da mesma forma que a árvore é parte da floresta. Ao longo do seu crescimento, ela será recoberta com várias camadas para adaptação ao seu meio, assim como você. No seu caso, todavia, estas camadas serão as crenças e histórias familiares que te passarão.

                Você e a árvore enrijecerão suas estruturas para se manterem firmes, ao mesmo tempo em que oferecerão sua delicadeza ao universo. E como para a árvore, também chegará para você o momento de realizar algumas podas para um renascimento parcial, instante em que, tal qual a seiva escorrendo após o movimento do facão, dos seus olhos escorrerão lágrimas diante dos cortes que a vida lhe fará sofrer, ou os cortes que você mesmo decidirá como necessários.

                Este é o tempo em que mais luz chegará até você, e então sentirá que muitas vezes é preciso se desapegar dos galhos e folhas que já não lhe servem mais, assim como o são as velhas idealizações e medos que nos mantêm na escuridão. Você precisará descascar um pouco o seu tronco rijo para que ele, ao invés de te proteger, não acabe te impedindo de crescer mais. Feito tudo isso, você gostará de olhar para cima e ver o céu ilimitado. Estará aberto para o novo em sua vida. Você conseguirá viver melhor com menos folhas, galhos e pedaços de tronco seco, ficará ficará mais oxigenado.

               Tal qual a árvore, você passará por inúmeros ciclos e dependerá sempre da natureza para viver e, mesmo que não saiba, você representará proteção para os muitos que te procurarão para um descanso encostado em você. Você se sentirá importante para outros seres e saberá oferecer os seus doces frutos, que serão suas lições às outras pessoas. Você será capaz de reconhecer as suas qualidades, assim como as árvores mostram a beleza das suas flores.

                Na sua maturidade, você conseguirá reconhecer que a união dos princípios masculino e feminino é que deram viabilidade à sua existência, assim como a terra e a água juntas deram a oportunidade de vida para a árvore. Você será capaz de sentir gratidão por isso.

                É neste momento que você será visitado por um desejo especial que brotará do seu próprio coração e então você se verá empenhado na tarefa de resgatar aquela sua essência primeira, o seu potencial criativo, a sua própria unidade e irá se perguntar... quem sou eu nesta selva? Porque todos os seres têm uma essência e você não é diferente. Você se conectará com o seu próprio interior e descobrirá que a maneira como você se identificou até hoje não é outra coisa senão as palavras e os discursos que os outros, antes de você, lhe vestiram como roupas. Você entenderá que a macieira é um ser em essência, independente do nome que alguém lhe dera e irá querer sentir a vida como ela. 

                Você, assim, entenderá que aquelas camadas que lhe deram consistência subjetiva até hoje, forram necessárias somente até certo momento em sua vida, pois se tornarão absolutamente dispensáveis a partir de quando essa reforma em você tiver se iniciado. É nesta fase que você perceberá o quanto esteve sempre preso às suas origens e sentirá que as suas raízes, que um dia foram tão importantes para que você pudesse se desenvolver, é justamente o que te paralisa perante o futuro e te impede de estar em outros lugares.

                Você irá perceber que, como a árvore, sofrerá com algumas pragas que tentarão sugar sua energia e também será vítima de alguns que aparecerão para te derrubar. Mas você estará mais do que vivo sempre que souber que sua essência interior está preservada e que ninguém poderá tirá-la de você. Você, em essência, poderá viver para sempre neste mundo.

                Assim, procure sua semente dentro de você, vá deixando que algumas folhas velhas caiam para que a luz lhe chegue de forma mais abundante. Faça algumas podas em seus galhos para ficar mais renovado. Não deixe que pedaços do seu natural tronco duro te sufoquem e te enrijeçam. Seja grato ao seu pai e à sua mãe que, como a terra e a água, permitiram que você viesse a este mundo.

                Ofereça a sua estrutura frondosa como quem oferece um colo para aquele que te procura para um descanso na alma, como o andarilho que se encosta na árvore para um momento de sombra num dia de sol escaldante. Quanto àquelas camadas que o envolveram a vida toda e que te permitiram chegar até aqui, reconheça a sua importância, mas saiba que elas podem ser modificadas, assim como nossas crenças. Talvez esta seja a única diferença entre você e a árvore.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

 FALHEI COMO PESSOA

                Que bom chegar numa altura da vida e conseguir dizer em voz alta e para qualquer um ouvir: Falhei como pessoa! Porque cansa elaborar explicações para justificar um erro. Cansa procurar as melhores palavras que sirvam de atenuantes para as pisadas de bola. Melhor e mais simples reconhecer. Minha geração cresceu sendo impedida de errar e sendo punida quando não se fazia o que era o tido como certo. Assumir uma falha era doloroso e anunciava expiação.

                Sou do tempo em que o ensino vinha a partir do castigo, da ameaça, do dedo levantado em sinal de aviso. Quem viveu na época da minha infância aprendeu a se controlar para que o comportamento saísse de acordo com as expectativas e normas vigentes. Como resultado, ficou na alma uma espécie de cicatriz disso, o medo do desacerto, esse fantasma alojado no fundo da cabeça. Parece um ente com vida própria, um parasita, um inquilino folgado ditando ordens.

                Aos dez anos roubei o jornal que o zelador do meu prédio estava guardando para a hora do seu café. Não lembro porque fiz aquilo, mas jamais esqueci da bronca que levei dele ao ter sido descoberta. Meu Deus, ele iria contar tudo para os meus pais! Nem precisou, eu mesma me antecipei e confessei a eles meu grave crime, chorando como se tivesse matado alguém. Aos onze, fiquei de conversinha e risadinha com uma amiga no auditório do colégio enquanto alguém palestrava sobre educação sexual. Também fui pega e, óbvio, punida em casa. Minha mãe me obrigou a fazer uma redação sobre o assunto, com pesquisa na Barsa e tudo. 

                Aos treze, tive de ficar trancada no quarto até esgotar o conteúdo da prova de ensino religioso marcada para o dia seguinte, para compensar a péssima nota do bimestre anterior. Já mais crescida, aos vinte e um, dei um empurrão no meu namorado no meio da rua por ele ter olhado a bunda de uma mulher que havia passado perto de nós com uma calça bem justa. O figura não me perdoou e fez da minha insegurança um motivo para me passar o maior sermão e ainda me jogar na cara que eu o havia agredido. Engoli aquilo como justo.

                Lembrando dessas e de outras passagens da minha vida, quando fui posta (e permaneci) no lugar da mais terrível infratora, lamento não ter tido serenidade e autocompaixão suficientes para, simplesmente, ter dito com generosidade para comigo: - Sinto muito, falhei como pessoa! Falhei, porque sou humana e erro, porque não sou perfeita. Não preciso ser jogada do precipício ou ser açoitada por causa disso. Falhei porque tive meus motivos, porque me equivoquei, porque senti medo, raiva, preguiça, porque fiz o que me foi possível, porque ninguém anda com os meus pés para saber das minhas aflições e dificuldades.

                A gente falha mesmo, por coragem ou covardia e também porque às vezes a melhor das nossas intenções acaba, sem querer, prejudicando os outros ou porque a gente, de vez em quando, se sente perdido, insatisfeito, deprimido. A gente falha a toda hora e isso não devia regular o nosso valor nem limitar nossos atos e tentativas futuras para uma vida mais feliz.

                'Falhar como pessoa' devia ser como uma espécie de slogan carregado de incentivo do tipo 'seja você mesmo' ou 'aparência não é essência'. Falhar é até bom, pois ensina, mas reconhecer que se pode falhar é libertador. Um peso que sai das costas e um ótimo exercício de autopiedade e aceitação.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

 O MELHOR PORQUE EU MEREÇO

            Ontem pela manhã, logo após ter acordado, como sempre faço, fui à cozinha preparar meu café com leite de todo dia. Mas ao adoçá-lo, sem querer pinguei umas gotinhas a mais de adoçante e o negócio ficou enjoado, doce demais. Fui logo construindo discursos internos como desculpa para me forçar a tomá-lo, afinal, custou dinheiro, o desperdício não combina comigo e eu não iria morrer daquilo.

           Ainda bem que me veio o estalo: por que não fazer outro café com menos adoçante e daí tomá-lo com prazer? Eu teria mesmo que pagar o preço de me sentir enjoada por causa do meu erro? Despejei a xícara inteira na pia. Fiz um mais gostoso, porque me dei conta de que eu não precisava me punir nem praticar a economia em casa tão ao pé da letra e contra mim.

            Este episódio é para lá de banal, mas talvez seja a raiz de um comportamento que, levado a outros contextos mais importantes da vida, demonstra um grau de bondade para conosco. Se é para comer, que seja uma comida gostosa, caprichada, bem temperada. Se é para se vestir, que seja com uma roupa limpa, confortável e bonita. Se é para tomar banho, que seja bem quentinho e com sabonete cheiroso. Se é para dormir, que seja numa cama macia. Se é para passar o tempo em frente à televisão, que seja para assistir a algo que acrescente. Merecemos o melhor, sempre. Vale para tudo.

              Se é para nos relacionarmos, que seja com pessoas amáveis, que nos tratem bem, com respeito, educação e amor. Não há razão para autoimposições desconfortáveis sem sentido à custa do próprio bem estar. Provei, não gostei, lixo. Seja o que for. Não fomos feitos para aturar coisas ruins que nos desagradam, que invalidam o nosso poder de dizer não, apenas por razões, muitas vezes, desconhecidas ou porque imaginamos que não somos merecedores de que é bom. 

                Conversa chata, desculpe, preciso ir embora. Convite enfadonho, obrigada, não vou. Conselho que não pedi, agradeço, mas recuso. Não é crime sair do cinema no meio daquele filme que não diz nada e também não é pecado alertar o garçom de que o ponto da carne não está como foi pedido. Se somos o centro de alguma coisa, é do nosso próprio mundo e neste lugar há de imperar a benevolência para conosco. Não são nada razoáveis os prejuízos autoimpostos em nome do que for, seja do costume ou do famigerado receio de desagradar.

                Se a gente se esforça em fazer o bem para tantas pessoas que amamos, não há sentido em não fazer o mesmo por nós. Também merecemos amor, carinho e respeito de nós próprios.