quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

 Capítulo II

        Na família de Justinne, as expectativas em torno de uma vida feliz repousavam sobre o casamento, como se a vida sem uma parceria afetiva fosse a mais pura tradução da tristeza. Casar era uma finalidade. Tanto para os homens quanto para as mulheres, mas, sem sombra de dúvida, bem mais para as mulheres. Não por outro motivo é que Justinne herdara de sua linhagem feminina a ideia duvidosa de que uma mulher jamais poderia viver por conta própria. Padeceria, caso ousasse ser independente, emocional ou financeiramente falando.

         No seu meio familiar, aprendeu que casar era um destino mais do que certo para as mulheres, e até esperado, independentemente de quem ela escolhesse para dividir a vida. Ouviu diversas vezes ser melhor casar e depois separar do que nunca casar e ter de carregar a mancha da solteirice. Uma vez separada, ao menos não lhe recairia o rótulo daquela que sobrou. Casando, teria garantido o sucesso feminino atrelado ao matrimônio, isto é, o lugar culturalmente delineado para a sua condição. 

            Isto explica a ideia que Justinne tinha desde pequena de que um dia ocuparia o lugar de Angely, sua avó, matriarca da família. Já havia antecipado toda a sua vida futura com um marido, uma casa, filhos, animais de estimação, legados, memórias de uma vida inteira, tudo de acordo com a cartilha social do seu tempo, do tempo dos seus pais, dos seus avós e, é bem possível, de todos os seus antepassados. Achava poética a vida familiar, mesmo com os cansaços do corpo devido aos cuidados com todos que amasse.

        Quando ainda pequena, em muitas tardes em casa, Justinne deixava bonecas e outros brinquedos de lado para envolver-se com o álbum de casamento dos seus pais. Era todo de madeira, recoberto com um tecido de veludo verde escuro e tinha quatro pezinhos cromados. Nele havia uma sucessão de páginas intercaladas por um papel fino e barulhento com a função de não deixar as fotos grudarem. Mas ali não havia sido colada uma única foto sequer. Justinne folheava páginas em branco. Nunca vira uma só imagem da união dos seus pais. Na contracapa havia uma pequena caixinha de música embutida e Justinne dava-lhe corda para ouvir a melodia da marcha nupcial. Seu coração ficava apertado e em seu pescoço parecia surgir de repente um nó doído que lhe provocavam lágrimas. Era uma dor que, naquela tenra idade, Justinne não sabia nominar. 

         Só foi saber mais tarde que vontade de chorar desconhecida e presa em seu pescoço, vinda de folhar o álbum vazio, estava relacionada ao amor entre seus pais. Demorou a perceber que esta dor perante as lembranças ausentes nas folhas em branco não era sua, mas de sua mãe, ou quiçá daquela bailarina magricela que girava sobre o mesmo eixo, desacompanhada de um único registro. Era um ciclo monótono, devido ao mesmo movimento circular ao som da mesma melodia. Na vida adulta, Justinne comparará essa lembrança ao sofrimento das pessoas presas à repetição — mesmos atos, mesmos pensamentos, mesmos lugares — como giros em torno de si sem transformação alguma, mas ainda assim esperando um desenvolvimento diferente. Sentiu-se por muitos anos como a bailarina solitária da caixinha de música, visualizando sua vida como a de sua mãe e a de sua avó, sem a referência do amor romântico que unira seus próprios pais e, pior, colocando-se como voluntária para carregar em suas próprias costas uma dor que nunca foi sua, mas que a afetaria para sempre. A dor de uma vida não vivida.

         Na juventude, Justinne conheceu Phelipe já no primeiro ano na Faculdade de Lima, com quem iniciou um romance duvidoso. Seu primeiro pensamento ao enxergar o rapaz que demonstrava interesse numa aproximação, foi de já estar próxima de realizar o comando familiar de se casar, como que abrindo mão de forma inconsciente das inúmeras possibilidades de vida que lhe poderiam surgir no futuro e que a fariam mais feliz. Sua tendência era não perder tempo, para logo encaixar-se no padrão familiar conhecido, enfim, satisfazer um desejo que não era propriamente seu, ainda que incorporado em seu ser e sem que soubesse disso de forma consciente. 

      Ambos iniciavam o curso de ciências contábeis, mas era apenas Phelipe quem demonstrava ter planejado desde pequeno trabalhar com números, tabelas, escalas, gráficos. A escolha de Justinne pela profissão que, definitivamente, não amava, deu-se por acreditar que, lidando com números, teria um pouco mais de equilíbrio em sua vida cansativamente emotiva. 

       Phelipe, por seu lado, não sabia, mas, na realidade, buscava a riqueza que seu pai não teve. Ouviu sempre deste que as grandes fortunas começaram a partir da contabilidade, dos controles sobre as finanças e das planilhas. Falava sempre do quanto queria ter sido rico. Neste contexto, um casamento entre Phelipe e Justinne já a fazia desconfiar que sua vida e sua casa estariam repletos de cadernos com pautas quadriculadas para elaboração de balancetes e registros de ganhos e gastos, assim como para o planejamento contra os excessos. O rapaz era metódico, controlava todas as saídas de dinheiro do seu bolso, até as mínimas, e isto assustava Justinne.

            Namoraram por um ano e esta fora a primeira experiência de Justinne no campo dos relacionamentos. Mas não progrediram nesta área. Ao final deste período, já era forte em Justinne a dúvida sobre continuar com Phelipe. Em sua mente, começava a vir com frequência um medo grande de que tivesse de transformar sua vida num constante esforço para economizar em tudo e com isso enriquecer, acumular dinheiro. Enfim, teve medo de ter que se privar dos prazeres como condição para manter viva a ideia fixa de riqueza que nem era sua, mas de seu futuro marido ou, mais certo, do seu futuro sogro. Isto não lhe fazia o menor sentido.

      Phelipe sempre dera ouvidos ao pai quando este vinha com histórias sobre os milionários nas capas de revistas e notícias na TV, exibindo suas propriedades e seus diversos bens. Sem dúvida, ali residia uma frustração passada de pai para filho e era este o perfil que definira o destino profissional de Phelipe, o depositário direto dos sonhos não realizados do seu pai. Esta imposição pouco velada sobre o rapaz não agradava em nada a Justinne e foi esse o berço do seu desencanto. Pensou que, graças à voz da razão, seu coração tão cego e comprometido com o destino matrimonial projetado antes do seu nascimento, fora livrado de um sentimento maior por Phelipe.

            Rompeu com ele de forma convicta, e este, aparentemente, não lamentou em nada a decisão tomada por ela. O motivo deste descaso, mais tarde explicado, foi o fato de que um casamento entre ambos não daria certo. Phelipe confessara deu desagrado frente ao objetivo maior de Justinne se casar. Lógico, alguém que punha tudo na balança, não o faria diferente com relação ao custeio de uma família inteira, com filhos, casa, contas a pagar etc. Phelipe só tinha cifrões nos olhos. Para Justinne, a lição despertada na ocasião foi a de que as histórias familiares de ambos por pouco não os levaram a tomar uma decisão errada, uma vez que ali não havia vontades genuínas, ainda que assim parecesse aos demais.

         Justinne não desistiu apenas do relacionamento, mas também do próprio curso de contabilidade, pois não sentia ser esta a sua vocação. Nesta época, agradeceu aos céus por se livrar dos frequentes arrepios que lhe invadiam o corpo quando pensava em uma vida atolada em números e anotações diárias em cadernetas dos centavos gastos. Justinne pendia mais para o lado dos sonhos, das poesias do mundo, da profundidade dos sentimentos, das belezas ocultas aos olhos da maioria.

        De fato, não teria dado certo a vida com Phelipe, pois Justinne sempre fora acostumada desde pequena, em todas as férias, a viajar, comprar lembranças, gastar dinheiro com comidas típicas. Não lhe cabia a obrigação de explicar ao marido avaro todo tipo de compras que tivesse de fazer. Justinne tinha planos maiores do que, simplesmente, entupir o cofre de dinheiro apenas para regozijo. Acúmulos são o outro lado dos vazios humanos, desconfiava. Acumula-se coisas para preencher vazios emocionais. Esse era o seu pensamento.

         Naquelas viagens familiares nas férias, quase sempre de carro, enchiam-se malas de coisas para que pudessem visitar lugares distantes. Ethan jamais escondera o prazer que tinha de guiar seu carro tão cuidadosamente mantido. Gostava de tê-lo sempre em ordem e limpo, pneus calibrados semanalmente, motor revisado, sempre pronto para levar sua família para onde esta quisesse. Mesmo nos finais de semana a diversão era também andar de carro, passear por bairros distantes de Lima e arredores, para conhecer realidades diferentes, ainda que na mesma cidade. Justinne apegava-se a quaisquer lugares que visitasse nas férias, de forma que quando já era hora de retornar para casa, chorava querendo ficar. Cresceu sempre com este sentimento de estar deixando para trás a novidade do lugar aonde havia estado.

            Ali já se mostrava outra faceta da sua personalidade, só percebida na vida adulta, que era o desejo de não estar em casa, ainda que dela tivesse boas memórias. Justinne guardava em si desde sempre o tédio de estrar entre as mesmas paredes, de ter as mesmas portas como possibilidades únicas em sua vida, de olhar o mundo de forma parcial através das mesmas janelas. Parecia sempre não querer retornar para sua rotina, por julgá-la enfadonha. Sentia-se prisioneira em seu próprio lar, talvez porque até seus dezessete anos limitara-se aos compromissos escolares por absoluta impossibilidade de inovar no seu repertório de atividades. 

            Ethan, comovido com o comportamento da menina todas as vezes em que não queria voltar para casa após as viagens de férias, dizia-lhe sempre a mesma coisa, que convencia a menina a parar de chorar... temos de ir embora para um dia podermos voltar. Era uma lógica real e sem possibilidade de ser questionada por Justinne, ainda pequena. Ethan aproveitava-se disso para passar-lhe uma segurança de pai. Mas sem que estivesse errado, porque só se pode mesmo voltar para o lugar de onde se partiu, esta era a forma de apaziguar o coração da filha, ainda que ele soubesse que nunca voltariam para os mesmos destinos visitados. O passar do tempo e a rotina após a volta davam a Ethan a certeza de que Justinne não sustentaria por tanto tempo aquela vontade. Era um pai hábil em despertar em todos o prazer da notícia de que já tinha escolhido o local para o próximo ano, valendo-se da ansiedade de todos.

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