terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

 O FANTASMA DA PRAIA


Capítulo I

             Eram duas casas ocupando o mesmo terreno, uma diferente da outra. A maior, sólida e mais antiga, já mostrava o peso do tempo, ainda que bem mantida. Nela morava o casal de idosos Walther e Angely. Na menor, uma improvisação da garagem sem uso, moravam o jovem casal Ethan e Olivia com a pequena Justinne que, desde os três anos de idade exibia nos joelhos vermelhões e machucados por causa do hábito de subir todas as manhãs sobre a áspera pia da cozinha, coberta por um mármore grosseiro. 

        O motivo da escalada era porque em frente à pia havia uma janela do tipo basculante com esquadrias de ferro velhas e enferrujadas que dava para o quintal comum às duas casas. Por ali, todos os dias, Justinne alcançava para a avó Angely, a postos do lado de fora, a chave da porta que, ao lado da janela, dava para o quintal. Angely já aguardava cedinho e diariamente o berro da neta pedindo a liberdade. A criança havia nascido com um desejo diferente de experimentar o mundo, que o carregaria por toda a vida, ainda que nem sempre o pusesse em prática.

          Angely acordava cedo todos os dias, preparava o café, esquentava os pãezinhos no forno à lenha, colocava a mesa, ajeitava a bagunça do dia anterior, antecipava os preparativos para o almoço e, em seguida, saía pela porta dos fundos para cumprir a tarefa de ajudar a neta a ganhar seu mundo, ainda que pequeno e limitado. Essa dinâmica só era possível porque a chave da casa sempre dormia sobre a pia da cozinha, uma espécie de código familiar. Assim foi por uns quatro anos seguidos, até que Justinne, mais crescida, fosse autorizada pelos pais a abrir a porta da casa sozinha.

      Ethan saía muito cedo para o trabalho em um curtume da família localizado nos arredores de Lima, voltando só no fim do dia. Olivia trabalhava em casa mesmo, por isso sempre podia dormir até mais tarde antes de começar a se envolver com os afazeres, sabendo que a filha pequena estava sob os olhos atentos e amorosos de Angely, sua mãe, uma mulher magra, porém, forte e disposta a qualquer atividade pela família e que a todos encantava pela sua voz muito doce e rosto sereno. Tinha os cabelos curtos e crespos cor de mel, nariz adunco e os olhos castanhos escuros encravados em pálpebras fundas, traços que denunciavam sua ascendência italiana.

     Com a cumplicidade de Angely é que foram construídas as primeiras marcas de amor e confiança em Justinne, inicialmente visíveis apenas nos seus joelhos esfolados. Jamais esqueceu a disposição da avó colaboradora da sua liberdade, assim como de tantas memórias ao longo de sua infância naquele endereço que, para sempre, tornou-se o pano de fundo de muitos dos sonhos noturnos e memórias de todos daquela família. Foi naquele lugar que a afetividade de Justinne foi sendo construída e cravada em sua própria carne e no fundo do seu ser. O amor viria a ser tão forte quanto doloroso para Justinne desde muito cedo, relacionando-o a dores e sangue. Amar dói, dizia.         

        Justinne sentia-se amada assim como amava aquele pequeno quintal, o seu primeiro mundo de grama verde e úmida, passarinhos empoleirados na árvore de maracujá num canteiro cuidado por Walther, o avô, um homem claro e alto, magro, olhos azuis, tufos de pelo nas orelhas, poucos cabelos e muitas ideias. Descendia de alemães. Tinha os dedos amarelados por causa do péssimo vício com o cigarro e a pele da nuca com sulcos profundos, muito enrugada pela idade e porque jamais tomou qualquer precaução para evitar em seu corpo os efeitos do sol enquanto capinava todas as manhãs para tirar ervas daninhas do gramado e regar as folhagens. No máximo, um chapéu de palha já encardido e amolecido, com pontas soltas, seu material de trabalho para tornar impecável aquele espaço a céu aberto.

        Walther tinha o costume de escrever suas ideias em uma espécie de diário secreto, impedindo qualquer um de chegar perto. Não queria que ninguém soubesse dos seus escritos, fazendo mistério quanto ao conteúdo do que registrava em cadernetas com papeis pautados e manchados pelo tempo. Sempre pedia a Angely que, quando morresse, queria ser enterrado com seus mais de trinta volumes de cadernetas preenchidas, sem que ninguém tivesse a ousadia de olhá-las. Costumava ameaçar que assombraria durante a madrugada quem se atrevesse a não atender a este pedido de não violação da sua privacidade mesmo depois de morto. E assim foi feito, de forma que nunca ninguém soube o que Walther escrevia diariamente desde seus trinta e poucos anos de idade até o dia em que suspirou pela última vez. E foi Justinne, na época com dezenove anos, quem providenciou uma caixa onde coubessem todas as cadernetas do avô, colocando-a no alto de um armário para que ninguém alcançasse ou até mesmo achasse.  

        Justinne cresceu gostando de dizer que tinha um avô misterioso e excêntrico e o respeito profundo que aprendeu a manter sobre os seus segredos era o que mantinha a fantasia de que ele era diferente de todas as pessoas, por saber de coisas importantes que não queria dividir para proteger sua família. Era como se, mesmo depois de morto, Walther continuasse na casa. Sem dúvida Justinne mantinha com o avô patriarca uma relação de fascínio e foi isso que o fez reinar de forma grandiosa na memória da neta por toda a sua vida.

         A verdade é que os pais de Olivia, tanto Angely quanto Walther, eram pessoas muito peculiares. Tinham hábitos esquisitos, ainda que fossem pessoas carinhosas e dessem a Justinne tudo o que podiam, desde chocolates até brinquedos improvisados com sucata e madeira, montados num pequeno quarto da casa grande, cheio de materiais. Era uma espécie de ateliê silencioso e muito quente, porque pegava sol desde cedo até o anoitecer. Ali Walther inventava e construía coisas. Os avós de Justinne atendiam muitos dos gostos da menina, mas não a ponto de desvirtuar a educação que esta recebia dos seus pais. Por causa desta referência, Justinne se tornou uma criança doce, calma e, mesmo quando não podia ter ou fazer o que queria, era bastante compreensiva. Ali estava a semente de uma pessoa sempre chamada a concordar com o mundo, ainda que guardasse dentro de si a vontade de fazer tudo diferente.

        Foi com seus avós que Justinne aprendeu sobre o amor em forma de doação, já que era com eles que a menina passava a maior parte do tempo. Porém, mesmo assim, o amor foi um terreno que se tornou doloroso para Justinne ao longo de sua vida, um lamaçal por onde transitaria sempre e de onde tiraria como conclusão a de que era necessário existir alguma dose de sofrimento, do contrário, não seria amor, não faria sentido. Amor era batalha e esse foi sempre o seu referencial. Amores calmos pareciam-lhe enfadonhos ou estórias inventadas.

        Justinne não sabia, mas choraria muito em sua vida. Quando ganhou um cachorro aos oito anos de idade, chorou de emoção e aprendeu que o amor possui diversas faces. Chorou todas as vezes em que olhou para oceanos e montanhas, pois a natureza lhe comovia. Chorou com as injustiças do mundo e concluiu cada vez mais que só quem ama sofre. Justinne também chorou todas as vezes em que, querendo romper relacionamentos entre amigos e amores, não conseguia. Sentia-se amordaçada e impedida de tomar decisões importantes no campo amoroso. Tinha um real medo do desconhecido. Julgava que era culpa do próprio amor fazê-la se sentir impedida de ser feliz. O amor começa em si próprio, dizia-lhe Angely todas as vezes que enxergava sua neta com o olhar distante, querendo com isso fortalecer o espírito de Justinne, para quem não fazia sentido associar amor e felicidade, pois só via sofrimento entre as pessoas conectadas por este sentimento.

        Na escola e em relação a todas as tarefas intelectuais, Justinne guardava em si a certeza soberba de que sempre daria conta sem grandes dificuldades. Não era a melhor aluna das turmas pelas quais passou, mas sempre sabia antecipadamente que não teria problemas com sua criatividade, seu grau de empenho nas tarefas solicitadas e, especialmente, porque de sua cabeça costumavam nascer novas ideias. Este era o que mais a diferenciava de sua vizinha Allane, com quem estabeleceu uma grande amizade, somente rompida quando esta mudou-se para o Uruguai por causa de uma amor arrebatador por Diego, promissor advogado que não abria mão de construir uma nova vida com Allane, desde que o fosse em sua terra natal.

            Desse certo ou não, Allane se lançou para um outro país em nome do amor, mesmo sem dinheiro, sem permissão da família, sem planos para o futuro, apenas levando na bagagem um sentimento no peito e algumas poucas roupas que ainda lhe serviam depois de um emagrecimento súbito conseguido à custa de descobrir-se, após um longo tempo de terapia, uma mulher com medo de não viver sua própria vida. O convite apaixonado de seu noivo se tornou o passaporte para uma nova vida, como se esta escolha tivesse sido feita mediante o lançamento de um dardo em algum ponto do seu horizonte, uma espécie de declaração do tipo 'é para lá que eu vou!'. Caso se tratasse de uma tentativa fracassada, Allane dizia, simplesmente, que poderia retornar para sua casa, bastando para isso pagar um trecho de volta e nada mais. A reconstrução dos possíveis cacos não a assustava. Para ela, viver tornou-se abraçar riscos e Justinne entendia isso como excesso de uma coragem que não tinha, pois tudo para ela, o que imaginasse fazer, haveria de ser pago com o preço do medo.

        Foi neste contexto que Justinne e Allane nunca mais se viram, apenas tiveram notícias uma da outra por meio de seus pais, que continuaram como vizinhos por muito tempo, ouvindo uma notícia aqui outra ali a respeito do destino de ambas.

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