quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

 PESSOAS DECENTES


            Dei-me de presente, dias atrás, uma tarde na cafeteira dentro da livraria que fica num shopping da cidade. Pedi meu Masala Chai pelando, apesar do bafo de calor infernal lá fora. Muito embora eu tenha esquecido meus óculos em casa, ainda assim tentei ler algo. Escolhi um livro com letras grandes para facilitar. Mas não deu, não consegui lera nada, mesmo apertando os olhos e esticando os braços. Isso me lembra o meu pai que dizia sofrer de braços curtos. O negócio é que, daqui para frente não há mais a possibilidade de eu dispensar lentes para minhas leitura!

            Entrei definitivamente na fase em que os óculos são tão indispensáveis quanto a carteira de dinheiro, o celular e os analgésicos para aquelas dores de cabeça inoportunas. Só o que me restou foi ficar olhando para aquelas prateleiras recheadas de livros colados uns aos outros, do chão ao teto, em frente à mesa em que eu havia me colocado. Era um paredão de livro que até me ocorreu de pensar que a era dos e-books talvez não tenha vingado tanto, mas não, eu é que continuo no time dos que gostam de cheirar livros, rabiscá-los, sublinhá-los.

            Nessa de focar o olhar para aquela infinidade de obras, uma em especial me chamou a atenção. Seu título era 'Pessoas Decentes', do cubano Leonardo Padura, dando o start para a minha imaginação trabalhar em busca do que ele trataria. Teria um cunho filosófico, histórico, policial? Falaria de política indecente, sociedade indecente, moral indecente? Independentemente disso, o que é ser decente, para começar?

            A obviedade me dizia que o autor buscava questionar ironicamente o conceito de decência, mas sob qual ângulo de análise? Uma rápida pesquisa na internet indicou uma trama fictícia, mas com um pano de fundo real, que é a prostituição como ganha-pão da vida, sob o viés de que se pode ser decente ou indecente de várias maneiras, sem que se precise adotar a moral vigente como farol de conduta. Para o autor, indecente é a condição de vida que obriga à prostituição e não esta por si só.

            Eu pensava que era decente por pagar meus impostos em dia, não fazer mal a ninguém, cumprir minhas obrigações e promessas, não explorar ninguém, não ofender a ninguém, não cutucar ninguém. Sob este prisma sou decente. Resolvi ir ao dicionário, que me prestou o seguinte esclarecimento sobre o significado de decência: "que está em conformidade com os padrões morais e éticos da sociedade; digno, correto, decoroso, honesto". Ora, defina digno, correto, decoroso, honesto...diria alguém de mente mais aberta. Isso já mostra que o significado patina.

            A concepção sobre dignidade, honradez, decoro e honestidade é móvel, porque ligada a referências sociais que, por sua vez, são transitórias ou bem particulares. Começo então a desconfiar que não sou decente, pois não quero me conformar com padrões morais sufocantes formulados em épocas remotas. Não quero replicar de forma automática comandos gerais só porque ainda vigentes, mas sem correspondência com o espírito crítico que paira sobre o meu momento histórico. 

            Também não quero me encaixar em regras obsoletas e sem sentido sem ao menos questioná-las. Não quero seguir o que um dia outros, antes de mim, entenderam como correto ou decoroso na época deles, em que a sociedade era diferente. Não quero permanecer fixada em estatutos e diretrizes sociais ultrapassadas com potencial gerador de segregação num tempo em que tudo já se tornou diferente do que passou.

            Partindo desse pensamento, ouso afirmar que quero albergar uma alma indecente, revolucionária e transgressora, pois para mim os padrões morais são como gaiolas mentais, verdadeiras cordas ocultas amarradas em nós e forjadora de culpa e sentimento de inferioridade. 

            Culpa, porque se você, supostamente, está fora do padrão, acaba até achando que merece alguma punição, inconscientemente. Basta um olhar de desdém de alguém que se gaba por seu comportamento dito decente para que a culpa crie raízes em nossa cabeça. E sentimento de inferioridade porque, de algum modo, você será induzido pela massa a se sentir aquém do ideal de comportamento social e cultural em vigor.

            Parando de exercitar a minha imaginação sobre o conteúdo do livro, resolvi dar os quatro passos que me separavam do lugar onde ele fora colocado para acabar com a minha divagação. Bom, como estava sem óculos meus olhos doeram e não deram conta daquelas letrinhas miúdas. Só pude verificar que se tratava de um romance policial com fundo histórico real, recentemente escrito e que, provavelmente, põe o dedo em algumas feridas abertas pela hipocrisia do mundo.

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