terça-feira, 28 de junho de 2016

SÁBIA CIGANA

     
Penso que não há búzios, bola de cristal, tarô, quiromancia ou baralho que possam antecipar a sorte. Já diz o dito popular que o futuro a Deus pertence. Mas pra mim, é claro como a água que algumas atitudes e pensamentos do nosso hoje constroem o amanhã, de modo que nem são necessários grandes truques pra indicar o quanto nos daremos bem com as pessoas, se seremos felizes no trabalho, ou cercados de amigos ou se a fortuna nos aguarda. A economia de energia, tempo, dinheiro ou até lágrimas talvez explique o desejo humano de antecipar o horizonte do tempo. Contudo, arrisco dizer que o autoconhecimento é a melhor ferramenta para predizer como será nosso porvir.
    Quando eu tinha quinze anos, numa manhã de mormaço à beira mar e quietinha com os dilemas daquela idade, me aparece uma cigana cheia das saias coloridas que se arrastavam pela areia, oferecendo a revelação do meu destino. Chegou de repente como uma bruxa da sorte, rosto enrugado de sol, unhas compridas e pulseiras barulhentas, uma aparição que se tornou inesquecível. Então julguei magnífico naquele momento saber sobre o meu destino. Me casaria? Teria filhos? Qual seria meu ramo de trabalho? Esperei também ouvir que eu teria vida longa, saúde perfeita e outras tantas surpresas que ela visse nas minhas mãos grudentas de bronzeador. Coisas da adolescência. Daí aquela figura errante, olhando séria bem dentro dos meus olhos, simplesmente, disse: - Haverá momentos felizes ou momentos tristes em sua vida! Pegou o dinheiro e foi embora, de forma que entendi o lance apenas pela ótica do embuste me sentindo por demais lograda. Tanta expectativa pra ouvir uma coisa dessas, pensei!
     Mulher sábia, acertou em cheio! Só fui entender a profecia muitos anos depois. Evidente, lógico .... eu mesma, por toda a minha vida, decidiria se a felicidade ou a tristeza permaneceriam em minha vida, afinal, tudo é questão de escolha e o resto, apenas consequência.

sábado, 25 de junho de 2016

DESCULPA TE FALAR ...

      O aspecto democrático da convivência induz a pensar que cada qual pode opinar à vontade sobre qualquer assunto, já que todo mundo cresce com o debate e é assim que a evolução vai acontecendo. Mas não é pra sair por aí dizendo o que as pessoas devem fazer ou não fazer. Um pouco de feeling nunca é demais. Já reparou que algumas pessoas, do alto da sua audácia, ou burrice, falam coisas na tua cara com autoridade de sabichão? São pretensiosas, donas da verdade e disparam pérolas memoráveis. Você, sem querer gastar sua preciosa energia, prefere não fazer uso do direito de resposta.
      Certa vez, levando minhas meninas ainda pequenas pra brincar na pracinha próxima de casa, lá encontrei uma mãe com sua pequena, desfrutando o mesmo espaço. Como resultado da aproximação entre nossas crianças, de imediato, estabelecemos eu e ela um diálogo superficial. Conversa vai, conversa vem, a temática baixou na mendicância que se via frequente pelo bairro e na pobreza que assola alguns de nossos semelhantes.
      Vi a oportunidade para contar-lhe que semanas antes, logo cedo em frente à padaria, uns mendigos me fizeram comprar o seu primeiro sustento do dia. Diante desses coitados, ponderei a ela, o Cristo toca no íntimo pra dizer que você está prestes a se deliciar com um pãozinho recém assado, um cafezinho fresco na sua casa quentinha e tudo o mais. Finalizei minha fala afirmando que não consigo dar um chega pra lá na compaixão.
     Lá veio a pancada daquela desconhecida: - Desculpa te falar, mas a tua atitude tá errada, decretando a mim essa máxima com firmeza de educadora. Segundo sua lógica, quanto mais dermos de graça aos desafortunados, mais ficarão mal acostumados e abusarão da nossa fraqueza. Tive vontade de rir, confesso. Não dos argumentos apresentados contra à prática da caridade, pois como eu disse, cada um tem sua opinião, mas da insolência da mulher que só me conhecia há quinze minutos, achando que já podia me dar lição de vida. 
   O que ela nunca ficou sabendo é que sua frase virou bordão familiar, pois frente às discordâncias lá em casa dizemos uns aos outros ironicamente: - Desculpa te falar, mas a tua atitude tá errada! Ah se ela imaginasse como se tornou inesquecível ...  

segunda-feira, 20 de junho de 2016

QUERIDA
      
Sinceramente, não dá pra imaginar que alguém possa agradecer por uma batidinha na traseira do carro. O episódio, na verdade, só serve pra chatear. No mínimo, leva-se um susto com o tranco nas costas. Também te obriga a descer do veículo para conferir o estrago e olhar feio pro distraído, chamando-o à responsabilidade. Ora bolas, como não perceber que o carro está deslizando e vai bater no da frente? Presta atenção, não é?
      Mas mesmo não sendo o caso dos romances que, por ironia do destino, começam entre os envolvidos, afirmo que é possível sim acontecimento como esse fazer nascer um bom sentimento. Pois numa ocasião, um certo senhor descuidado me causou um bem enorme ao esquecer de pisar no freio do seu automóvel. Devia estar envolto em seus pensamentos, tranquilão de tudo aguardando o sinal ficar verde. E aí, trunc!! Pois desci do meu carro no meio da rua, toda cheia de razão para proferir um Se esperta, cara! Qual é? Vai ter que pagar... Mas não deu nada, só encostou mesmo. Mais sorte pra mim, porque  o sujeito, imediatamente, reparou sua distração na medida do que eu precisava:
      - Desculpe, querida
     Pronto, meu espírito se desarmou no mesmo instante e minha cara feia virou sorriso. Não resisti ao vocativo. Ah, se ele soubesse como adoro ser chamada de querida... Tocou no ponto certo. Eu, que estava precisando mesmo de um afago, peguei a palavrinha, entrei de volta no carro e fui embora me sentindo indenizada pelo contratempo.



       

    

domingo, 5 de junho de 2016

ZEN AOS TREZE ANOS


      Parece inapropriado atribuir a alguém com apenas treze anos de idade uma característica própria das pessoas que já deram muitos passos na caminhada da vida: a tranquilidade. 
     Em certa ocasião, final de ano, minha família e eu nos encontrávamos na praia, sentados num banco do calçadão em frente ao mar. Eu, com minha eletricidade habitual, não absorvia as nuances daquele momento, pois estava envolta nos planos para o futuro próximo. Parece que os dezembros nos obrigam sempre a listar resoluções de ano novo. 
    Pensava nos pratos para a ceia de Natal, nos presentes para comprar, nos detalhes necessários para que tudo ficasse como planejado, também nos cinco quilos que eu queria perder depois das festas e nos propósitos que eu estabelecia para economizar mais no ano seguinte. Meu marido, por sua vez, também não assimilava a magia do instante, importando-se mais em garantir nossa segurança e bem-estar, ficando atento para evitar qualquer incidente que pudesse nos atingir. A caçula, com sua inquietação típica dos dez anos de idade, perguntava de tudo: – Como é que entra água dentro do coco? Como se formam as ondas do mar? Por que o céu é azul? E assim por diante, com outras curiosidades do gênero. A primogênita de treze anos, entrando na adolescência... bem, é sobre ela que vou divagar a partir de agora.
      Mantinha-se com as pernas e braços cruzados e olhar firme para o oceano. Nenhuma palavra ou movimento do seu corpo, a não ser o piscar dos seus olhos verdes. Acho que nem Buda conseguiria a proeza de manter-se como estátua por tanto tempo. Minha menina parecia ter sofrido o efeito da tecla pause do controle remoto. Sua quietude chamou-me tanta atenção que passei a observá-la, chegando até a me preocupar se estava triste com algum acontecimento. Mas não, estava apenas quieta, desfrutando de sua calmaria interior. 
      Fiquei pensando como é que uma adolescente, tão previsivelmente inquieta por causa das transformações da idade, era capaz de entregar-se à paz e ao silêncio?  Nada lhe desviava o olhar, mantendo o foco de sua atenção no horizonte azul do mar. Fiquei tentando entender aquele estranho sossego, afinal, a menina nem havia experimentado os inevitáveis reveses da vida! Quanta calma naquele coração pueril! Não consegui decifrar o motivo de tamanha placidez. 
      Há tempos eu vinha tentando dedicar-me a cinco minutos diários de meditação, músicas new age, controle da respiração, mas foi naquele momento que me convenci de que minha filha poderia me ensinar sobre como exercitar a serenidade. 
       Saindo dali, fui acrescentar mais um item em minha lista de intenções para o ano vindouro: ficar alerta para perceber que não é, necessariamente, a idade que conta para obter lições importantes na vida. Mais tarde agradeci minha filha pelo que aprendi com ela sem ter ouvido uma única palavra.
DESCOBRIMENTO, INDEPENDÊNCIA, REPÚBLICA ... E NÓS


      Lá pelos idos anos de 1500 o Brasil foi descoberto. Apareceu para o mundo como um bebê pelos braços dos portugueses. Cresceu, aprendeu a língua materna, foi catequizado, desenvolveu sua cultura, mas sempre obedecendo ordens dos seus governantes portugueses. Mais tarde, protagonizou revoltas até conseguir sua independência em 1822. Esta trajetória poderia ser equiparada à infância e à adolescência da nossa terra.

     Veio depois a fase adulta, querendo o jovem Brasil governar-se. Queria tomar decisões por conta própria. Foi preciso, então, opor-se à monarquia de Portugal, ao mando alheio. Lutou muito e marcou sua história de modo definitivo proclamando a república no ano de 1889, ficando, de certa forma, livre para decidir sobre seu próprio destino. Historicamente, parecem ter sido bem marcados os episódios do descobrimento, da independência e da proclamação da república por estas bandas. 

      Não há algo de similar à trajetória humana? Ou seja, não parece possível estabelecer um paralelo entre tais acontecimentos históricos e o crescimento das pessoas? Afinal, desde que nascemos também vamos aprendendo o idioma de nossos pais, assim como, em geral, somos catequizados para seguir alguma religião. Igualmente, vamos para a escola e aprendemos nossa cultura até que chega um momento em que queremos a nossa própria independência e autogoverno. Pois, quem nunca, em casa mesmo, lutou por liberdade, ou buscou estabelecer sua república individual? Quem nunca se trancou no próprio quarto para se sentir dono do seu espaço? Quem nunca afrontou os pais para que parassem de proteger seus filhos quando se julgava isso desnecessário?

      Quase tudo igual entre nós e o Brasil, a não ser por uma significativa inversão no reino pessoal: é possível que sequer tenhamos vivenciado até o momento o nosso próprio descobrimento, ainda que já dado o grito do Ipiranga e proclamada a república individual. Pois não basta ser independente e governar-se. É preciso descobrir-se primeiro.

      Quiçá o próprio Brasil não tenha se descoberto, ainda, em suas potencialidades e riquezas.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

MIGUEL


       A sala de espera no setor de cardiologia daquele hospital encontrava-se cheia de pais e mães com seus pequenos de todas as idades esperando atendimento médico. Eu, na mesma situação, e felizmente apenas para um exame de rotina em minha filha, aproveitava para observar os comportamentos de todos, algo que normalmente me desafia para, pretensiosamente, entender um pouco do ser humano. 

     Em meio àquele cenário, algo de especial me chama a atenção mais do que qualquer outra coisa: entre os presentes, encontrava-se uma simplória mãe amamentando seu bebê de quatro ou cinco meses recém-operado do coração. Fiquei comovida! Encontrava-se ela com um fino aventalzinho de trabalho e chinelo de dedo, apesar do intenso frio de julho. Por certo, pensei, estava aproveitando o horário de intervalo do seu trabalho para a consulta da criança. A cena, um tanto comum em qualquer estabelecimento de saúde, tinha algo de único e espetacular, pois aquela criatura, transbordante de ternura, no silêncio do recinto, não parava de falar um só segundo e de modo bastante afetuoso com seu pequeno. Seu nome era Miguel, o que perguntei como forma de me aproximar. O garotinho, absorvendo o amor materno, comportava-se como um anjinho, olhando diretamente nos olhos daquela mulher que lhe daria qualquer coisa para vê-lo bem. Bebia mais do que o leite da mãe, é claro! Era nutrido de um amor único, inigualável. 

     Aquela cena me preencheu e afetou-me de tal maneira que, graças a Deus, minha filha foi logo chamada pela secretária do consultório, pois eu já não conseguia mais disfarçar meus olhos encharcados de lágrima, tamanha a emoção em perceber aquela poderosa dinâmica em prol da vida. Concluí que além de sentir, a gente também consegue ver o amor em suas diversas manifestações.

        

BOLA DE CHICLETE
      

       A família resolveu reformar a casa. Pintura, assoalho, tapetes, mobília... quase tudo já vinha precisando ser modificado para que ficasse com cara de mais novo, além de outros consertos que se fizeram oportunos naquela ocasião. Não se havia contado, porém, com o caos, a poeira e o tumulto ocasionado pela recém formada multidão. Além dos usuais moradores, passaram a ocupar o mesmo espaço o pintor, o marceneiro, o encanador, o eletricista, a diarista. Foram algumas semanas de muita correria, sujeira e baderna. Tudo muito dramático para quem curte tudo em ordem, cheirosinho e aconchegante. Por todo lado se via e se sentia movimentação e barulho. De noite todos precisavam dormir empoleirados na sala. Foi preciso o milagre da multiplicação dos itens de limpeza e da resiliência. A situação se assemelhava a um acampamento sem regras, muito cansativo. Mas a perspectiva de um visual renovado era o que impulsionava o andamento da obra!

       Contudo, em meio a esse cenário caótico a vida não podia parar, sendo necessário cumprir os compromissos corriqueiros, como, por exemplo, ir ao supermercado, que nessa hora era visto como oportunidade de fuga.

       Foi numa dessas escapadas, numa fria manhã de inverno com céu azul límpido, acompanhada da saltitante caçula, à época com nove anos de idade, que ouço um grito entusiasmado me acordando para uma outra realidade: - Mãeeeee...consegui fazer uma bola de chiclete! Foi a primeira vez, lógico. Aquele estalido perfeito, após inúmeras tentativas anteriores e frustradas trouxe incomparável felicidade àqueles olhinhos brilhantes e escuros. Uma vitória, sem dúvida, para quem vinha há tempos tentando conseguir essa façanha.

       Que privilégio o meu, pensei, ser testemunha dessa ingênua conquista. Foi mais mágico pra mim do que pra ela. A criança era só alegria naquele momento. Até a costumeira vigilância a que se habitua um morador da cidade grande se enfraqueceu repentinamente.    

      Vamos ao óbvio nem sempre percebido: a beleza da vida se oferece nos efêmeros instantes e nossos filhos são fonte segura de encantamento. Num único segundo do meu dia tudo passou à categoria do secundário. Cheguei até a esquecer do estresse que a baderna da minha casa vinha me causando.

       Concluí que a verdadeira reforma que se há de fazer é no olhar e no coração. E se me perguntarem do que mais eu lembro em meio àquela confusão toda em minha casa, responderei, com toda a certeza, que é muito mais importante fazer bola de chiclete do que escolher a nova cor das paredes.