sábado, 17 de dezembro de 2022

 CRIATURA

        


        Chamar alguém de criatura pode, prematuramente, causar algum desconforto. Parece ser uma forma de provocá-lo sem dizer o seu nome, denunciando-lhe um possível deslize de sua parte. Mas para mim, não. Chamar uma pessoa de criatura revela, no meu vocabulário, o credenciamento recebido para estar no seleto grupo dos que eu amo e admiro.

        Gosto da palavra criatura, a qual convoca a reconhecer que somos isso mesmo perante o mundo, a natureza, o cosmo, o universo, o infinito, Deus. Etimologicamente, criatura quer dizer alguma coisa fruto de uma criação e, portanto, nenhuma ofensa nisso. Somos todos criaturas, dado que fomos criados. 

        Num dado momento aterrissamos nesse planeta, somos a interface entre duas épocas, a em que não existíamos e a em que passamos a existir. De um momento para outro passamos a fazer alguma diferença, mesmo que considerada apenas numericamente para fins estatísticos.

        O senso comum, contudo, de mãos dadas com a linguagem, tratou logo de colocar um viés depreciativo nessa palavra que para mim soa tão sublime, porque remete a um poder primordial e aglutina as qualidades de qualquer coisa animada de vida.

        Machado de Assis dedicou-se a escrever um poema, justamente, intitulado "Uma criatura", dizendo Pois esta criatura está em toda obra / Cresta o seio da flor corrompe-lhe o fruto / e é nesse destruir que as forças dobra (...) Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vidaQuis o gênio literário brincar com as palavras para reconhecer em tudo, uma força, que é a vida.

        Criatura é expressão de existência e movimento, prova de uma potência oculta que em tudo habita e impulsiona. Se eu te chamar de criatura, saiba, simplesmente, que te reconheço como morador em meu coração, digno de aplauso e dos meus mais verdadeiros sentimentos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

 COVID DE NOVO

       

        Fim de ano, o tempo firmou aqui na cidade depois de tantos dias nublados e chuvosos, e eu aqui, isolada, trancada de novo no quarto, porque peguei Covid pela segunda vez, ou melhor, ele que me pegou. Dessa vez veio mais fraco, amém Jesus, e isso graças à vacina e as posteriores doses de reforço a que me submeti. De todo modo, tive de obedecer ao protocolo de isolamento por dez dias na minha masmorra, determinado pelas leis sanitárias vigentes. Minha liberdade se restringiu a fazer um bom uso do tempo e foi aí que pude botar coisas em ordem.

        Meu trabalho on line, por exemplo, sempre tão volumoso, ficou em dia. Havia tempos que eu não conseguia cumprir minhas tarefas em tempo récorde e fiquei me sentindo a lebre da rapidez e do foco por ter me livrado de tudo. Contudo, eu teria trocado esse troféu para ter estado próxima de meus familiares, compartilhando as horas e os dias do período de retiro obrigatório.   

        Minhas leituras, num perpétuo acúmulo de cinco metros de altura, caso eu empilhasse livros na vertical, até que foram indo num ritmo mais rápido que o habitual, mesmo contando o tempo a mais que preciso para dar vazão à obsessão que tenho com minha canetinha I love NY para asteriscos, sublinhados, flechinhas e balõezinhos com comentários, e que acende uma luzinha quando aperto os pingos nos is. Contudo, eu também teria preferido manter meu Everest de livros uns sobre os outros em troca de poder fortalecer os vínculos afetivos, sentar à mesa com todos nas refeições ou somente tropeçar com eles pelos cômodos da casa.

        Minha playlist de músicas foi outra vertente de passatempos que engordou nos dias em que fiquei trancafiada. Bastante coisa nova e boa eu ouvi, assim como também prestei mais atenção em letras de velhas melodias para as quais nunca havia dado o devido valor quanto ao seu conteúdo poético. Contudo, ouvir vozes e risadas felizes numa roda de conversa com pessoas amáveis me parece mais enriquecedor.

        Tem os filmes. Passaram a incorporar minha rotina diária como se todos os dias fossem sábados ou domingos esparramada na cama. Recebi dos stremings ótimas sugestões de longas, curtas, documentários etc. Pegaram meu jeito ou, para usar a linguagem da internet, criaram um algoritmo, buscando me agradar com recomendações personalizadas. Contudo, há mais aconchego no sofá da sala com todos debaixo das cobertas, espremendo-se e espalhando farelos por todos os lados, demorando para a chegada a um consenso sobre o que assistir.

        Não poderia deixar de mencionar as minhas contas. Meu vermelho deu uma boa recuperada. Só mesmo um cárcere passageiro para me impedir de afundar o shopping no mês natalino. Contudo, teria sido bem melhor se eu pudesse ter gasto meus cifrões em presentes e em mesas lotadas de comida e bebida junto de boa gente.

        Há ainda o tempo em silêncio, é claro, do qual não poderia mesmo ter prescindido para fins de meditação e equilíbrio, assim como para me manter mentalmente forte caso me visse entrando pelos túneis que uma estrutura neurótica oferece. Contudo, teria sido muito melhor desfrutar o silêncio ao lado dos que amo, trocando com eles apenas linguagens corporais, olhares e sentimentos.

        Chego então à conclusão de que o isolamento forçado até que me permitiu fazer coisas produtivas, mas meras alternativas para preencher minhas 24h entre quatro paredes, um drible diante da inevitabilidade da doença, especialmente do Covid, que já havia provado ser insistente, mascarado e perigoso.

        Bom mesmo é não se descuidar jamais, para que possamos nos lançar ao mundo tão cheio de opções e riquezas que só o convívio humano oferece. A vida livre e saudável ao lado das pessoas é bem mais interessante do que qualquer upgrade.


Fonte da imagem: https://www.cruzeiros-douro.pt/pt/blog/regiao-do-douro/douro-lugar-para-convivio-entre-amigos

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

 A DIFERENÇA ENTRE FATOS E HISTÓRIAS


         Há quem diga que fatos e histórias são a mesma coisa, afinal, os fatos são os elementos das histórias, logo, quando se contam fatos, contam-se histórias. Nada disso. Fatos são fatos, nus e crus. Histórias são as narrativas construídas em torno dos fatos e, portanto, há infinitas delas, porque infinitas são as maneiras de contá-las. Fatos são estáticos, histórias são vivas. Já ouviu falar que a história é sempre parcial? Claro, pois reflete unicamente o olhar de quem a conta, o que não quer dizer que seja falsa. É tudo questão de viés, de ponto de vista, de lado, de perspectiva. 

        Pena que só nos damos conta disso já adultos, quando somos capazes de construir uma explicação do mundo sem intermediários. Em tempos primevos, na infância e adolescência, é inevitável "comprar" histórias alheias ou "embarcar" em discursos de outros.

        Isso até me faz lembrar de um brocardo jurídico em latim que aprendi logo no início da faculdade: da mihi factum dabo tibi ius. Significa dê-me o fato e eu te darei o direito, que é a orientação dada ao juiz chamado a decidir uma causa qualquer. Para ele são suficientes os fatos, independentemente da interpretação que lhes dê cada um dos litigantes por intermédio de seus advogados. Porque o juiz só precisa mesmo dos fatos, nus e crus, para entregar a sua própria versão sobre os mesmos, e que será mais uma das possíveis histórias a serem contadas, neste caso, a partir da sua análise sobre a lei aplicável à questão. Isso, inclusive, explica o dito popular de que em cada cabeça, uma sentença, pois até para diversos juízes, os mesmos fatos despertarão outras visões.

        A partir disso, é possível uma ida ao passado para tomar os acontecimentos que rechearam uma vida e dar-lhes outro olhar, ou seja, ser o seu juiz para contar uma outra história, ressignificando velhas opiniões prontas dadas pelos que, muito embora a sua boa intenção, eram os donos únicos de suas próprias verdades. Podemos então fazer para nós outros relatos sobre os velhos fatos, os relatos que quisermos, os que nos parecerem os mais verdadeiros, os que fizerem mais sentido.

        É certo que histórias importadas dos que nos antecederam são como chãos para andar, referências, pontos de partida. Mas é certo também que haverá sempre o momento a partir do qual podemos dar o nosso próprio testemunho ao mundo e ao coração, adotando versões que mais se encaixem em nossos valores, anseios, desejos e vontades.

        Imagina, com uma nova narrativa, poder inocentar os vilões que acreditávamos terem sempre existido. Dar o benefício da dúvida para a destruição de certezas tão dilacerantes. Imagina dar outro nome aos erros, e encontrar boas justificativas para terem sido cometidos. Imagina poder jogar fora o peso inútil de uma culpa não merecida. Imagina libertar monstros invisíveis na cabeça. Isso tudo, apenas contando para si uma outra história, a partir de outro ângulo ... sobre os mesmos fatos. Quanta liberdade e paz envolvidas nesse processo!

       Somos capazes disso, de reescrever histórias, reeditar o passado para expressão da nossa verdade, a partir do lugar em que ocupamos hoje, sabendo que são somente nossas essas histórias.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

 PERDER DÓI


        Estamos em dezembro de 2022, época em que se desenrola a Copa do Mundo do Catar. Há alguns dias a seleção brasileira foi eliminada nas oitavas de final pela Croácia, nos pênaltis. Doeu muito em mim, assim como em diversas pessoas com quem conversei depois, e a primeira coisa que me veio à cabeça foi sobre o porquê de eu estar sentido aquilo, já que não sou diretamente ligada ao futebol ou a campeonatos e esportes em geral. A resposta mais óbvia é a de que perder, simplesmente, dói.

        Ninguém vem para esse mundo programado para não sentir a dor das perdas, sejam elas reais ou até mesmo imaginárias, de várias ordens e magnitudes. São inevitáveis as perdas da vida, não havendo como escapar de senti-las, e doem porque nos obrigam à elaboração do desconforto que nos causam e sobre o qual dificilmente temos o controle. São lutos que experimentamos, em algum grau no espectro que cada ser humano guarda dentro de si. 

        Quaisquer perdas doem. Dói perder alguém que se ama. Dói perder um amor. Dói perder a saúde, uma amizade. Dói perder uma ilusão, uma disputa e até um objeto qualquer. Dói perder as estribeiras, o emprego, a razão, a viagem, o vigor. Dói perder tempo e também dinheiro. Dói perder uma oportunidade, a inocência, a juventude, um animal de estimação. Dói perder um ideal, um sonho. A lista é infinita. Perder dói porque tudo é impregnado de algum grau de expectativa e investimento emocional, do contrário, não doeria.

        É até possível dizer que o sofrimento humano não é pela simples perda, mas pela frustração por causa da energia despendida àquilo que se perde e do rearranjo obrigatório que isso exige, ou seja, a transformação que vem de carona nesse processo. Perder exige adaptação ao novo status quo desagradável que se impõe à frente, e adaptação exige gasto energético. Perda, frustração, transformação, assimilação...tudo junto e misturado na fila das demandas pessoais para uma ressignificação menos dolorida. 

        E tem ainda aquela categoria de perda que também dói muito, que é o abrir mão consciente daquilo que é bom, como aposta para algo melhor, tal como voos livres frente ao desconhecido, como apostas em caminhos diferentes. Esses são os casos das perdas necessárias, o que também pode significar um doloroso sentimento. A vida é assim mesmo, perdas variadas e esperança de ganhos melhores.

          

sábado, 3 de dezembro de 2022

DESEJO E QUERER


        Perante o senso comum, desejar e querer significam a mesma coisa e por isso são usados como sinônimos. No dicionário, inclusive, consta que desejar expressa o ato de querer e, por sua vez, querer expressa o ato de desejar. Não há problema algum em usar quaisquer desses vocábulos no dia a dia, pois todo mundo se entende e sabe que um ou outro indica o ato de ambicionar algo, ter uma intenção, uma vontade. Só que, indo mais a fundo, no plano psíquico, um desejo pode ser diametralmente oposto a um querer. Freud explica.

        A diferença entre ambos, muitas vezes, é desconhecida da maioria das pessoas e por isso acontece muito de alguém dizer que quer algo quando, na realidade, deseja outra coisa bem contrária, o que pode causar alguns conflitos internos. Complicado? Mais ou menos...

        É que o desejo costuma ser inconsciente, habita o território do social e moralmente proibido e por isso é que está escondido, impedido de manifestação explícita por força da cultura, da religião, dos valores sociais etc., localizando-se atrás da censura interior que todos construímos para poder viver em sociedade. Fica lá na masmorra da nossa mente, sem permissão para ser assumido, do contrário, seremos julgados, apontados, expulsos, excluídos, cancelados. Somente um processo de conscientização sobre sua existência permitirá tornar conhecido um desejo oculto e essa descoberta costuma surpreender.  

        Diversamente, o querer vem da consciência e, portanto, costuma representar algo permitido, autorizado pela moral e os bons costumes. Queremos aquilo que não choca a ninguém e que até pode ser compartilhado, mas que nem sempre guarda relação com o que de fato existe no nosso íntimo em termos de vontade genuína. É como adotar um disfarce para cabermos nas balizas da moralidade e porque não reconheceríamos alguns de nossos desejos mais profundos, maiores do que os estreitos limites das regras impostas, explícitas ou implícitas.

        O desejo é devastador, não conhece regras, força os muros interiores reivindicando satisfação plena e por isso mesmo deve ser contido, para não se chocar contra a maneira civilizada de vivermos. Já o querer é mais racional e superficial, construído com base na conveniência social, inserindo-se no campo das coisas permitidas a todos. Vamos a um único exemplo bastante simples: alguém pode desejar permanecer doente, ainda que manifeste expressamente o querer de curar o seu mal. Ou seja, no plano da consciência é evidente que qualquer criatura diz querer gozar de boa saúde para viver a vida, todavia, inconscientemente, pode desejar a doença, por causa dos benefícios ocultos que essa lhe traz, como atenção, preocupação dos demais à sua volta, isenção de certas tarefas.

        Para resumir, o querer vem do pensamento, da consciência, é fruto do processo de escolha do indivíduo. O desejo, ao contrário, nasce no inconsciente e tem relação direta com experiências passadas que continuam produzindo efeitos internos sem que o saibamos, é cego e não conhece as limitações da sociedade, querendo apenas ser satisfeito.

        Quem está de posse de algum grau de autoconhecimento, de bem com suas questões internas, até consegue admitir seus desejos, não os colocando, necessariamente, em prática, mas reconhecendo sua existência para melhor compreensão de si próprio e da natureza ambivalente do ser humano, sem culpas, medos ou punições.

       Quem dera pudéssemos identificar todos os nossos desejos para sermos psiquicamente mais saudáveis, administrando-os na mente, acolhendo-os e sabendo que são naturais em nós, ainda que não possam, muitas vezes, ganhar expressão no mundo em que vivemos.