quinta-feira, 11 de julho de 2024

 DESEJO E RECONHECIMENTO


            Um jogo com as palavras 'desejo' e 'reconhecimento' dá boas reflexões. Por si sós, elas já dariam pano pra manga. Mas a ideia aqui é colocá-las lado a lado e depois invertê-las, para mostrar os desdobramentos importantes a partir de duas situações bem opostas. Significa dizer que 'desejo de reconhecimento' é uma coisa e 'reconhecimento de desejo', outra.

            O primeiro arranjo (desejo de reconhecimento), leva à ideia de que somos todos habitados, desde o início de nossas vidas, pela vontade de que as pessoas reconheçam nosso valor, a começar pelos nossos pais ou cuidadores e depois por nossos amigos, parceiros afetivos e até por desconhecidos na rua, no trabalho, na balada. É como se recebêssemos de fora um verniz e brilhássemos mais com isso. Não está errado gostar de aplauso pelas nossas capacidades, habilidades, beleza, inteligência, pois isso faz bem para a autoestima. Ruim é quando se depende disso para ser feliz.

            Já o segundo arranjo (reconhecimento do desejo) adentra outra esfera, que é a de saber que somos recheados por desejos de todas as ordens, dos mais inocentes, que ganham passe livre para a sua satisfação, até aqueles mais obscuros que costumamos enclausurar inconscientemente no fundo de nossas mentes porque os tememos. Dos mais bobinhos, como ficar embaixo das cobertas em dia de frio, aos mais comprometedores, socialmente falando, todos os temos. E, sploiler: reconhecê-los é libertador! Mas, claro, não se trata de sair por aí atropelando tudo porque deu uma vontade louca de sentir prazer mesmo à custa de prejuízo aos outros ou até a si mesmo. O negócio é que, apenas saber dos próprios desejos, ainda que sem realizá-los por esbarrarem em impeditivos sociais, já é uma baita vantagem como medida de saúde mental para o manejo interno disso. Para viver em sociedade é preciso bom senso também.

            De todo modo, deu para notar que o melhor resultado numa eventual disputa entre ambos os arranjos seria o 1x0 para o 'reconhecimento do desejo'. A vida fica mais leve quando o like alheio não faz nem cócegas. 

            A existência humana é mais livre quando se passa do desejo do reconhecimento para o reconhecimento do desejo. Ficar na posição de dependência de alguém externo a nós aprisiona, é como entregar nossa autonomia nas mãos de terceiros. O cantor Emílio Santiago fez poesia disso alertando para o cuidado de não ficarmos dependentes da cartilha dos outros, pois isso seria como buscar um mestre para guiar nossos atos.

            O 'reconhecimento do desejo', é o que mais serve para a evolução das pessoas como entes libertos e mais felizes, pois reconhecer-se detentor de vontades e ir em busca de sua satisfação tira do cômodo lugar de não agir, não experimentar e ainda promove o upgrade de saber que não se responsabilizar pelas próprias escolhas traz um duvidoso conforto.

            Desejar é bom. Correr atrás da satisfação dos desejos é gostoso, tira-nos da zona de conforto, faz a gente agir, experimentar e, claro, assumir as rédeas da própria vida. Daí virá a deliciosa sensação de autonomia, não que isso seja fácil ou dispense algumas pelejas internas para se chegar até este ponto. 

quarta-feira, 10 de julho de 2024

 O...C...R...A


            Recentemente, decidi viajar absolutamente só. Fui para Cusco, no Peru, lugar magnífico e convidativo para uma experiência existencial no estilo de um encontro pessoal longe de tudo e de todos. Uma espécie de aventura solitária para buscar algo precioso dentro de mim. A cultura dos Incas que lá viveram há séculos me pareceu perfeita como cenário desta jornada, pois desde minha adolescência sou fascinada pelos mistérios dos povos já extintos.

            Acertei em cheio, porque lá me senti muito tocada pela forte energia das pessoas, da sua devoção religiosa, dos seus modos de vida, da sua cultura, da sua história bastante peculiar. Lá tive contato próximo com os templos sagrados, com a tecnologia misteriosa manifestada nas curvas de nível construídas nas montanhas. Minhas bases se moveram como os terremotos que castigam aquelas terras a cada trezentos anos. Para mim foi um período de grandes aprendizados, em especial, da sabedoria daquela civilização antiga com relação à natureza.

            Pairavam na atmosfera do lugar as divindades dos seus antepassados. Seus deuses ali, ao alcance fácil de quem se coloca aberto a recebê-los. O sol, a lua, a terra, a água, as montanhas, o vento, as estrelas, os animais. Cada qual com seu poder e sua influência sobre o planeta e as pessoas. Nem preciso dizer que tive arrepios de todas as ordens. O respeito dos Incas pela natureza e por suas dinâmicas de funcionamento seria algo inimaginável para os dias atuais. O sagrado presente em cada nascer do sol, em cada gota de chuva, em cada tubérculo oferecido pela terra, em cada paredão rochoso capaz de extrair um suspiro profundo por quem o reverencie. 

            Sem esquecer que eu era ali uma turista, visitei o badalado Machu Picchu, o Vale Sagrado em Ollantaytambo, além de outras atrações locais. Acariciei as alpacas e lhamas mansinhas. Tirei mil fotos. Também me entupi de chá de coca e ceviche, e me entreguei ao delicioso Chicha Morada, suco vermelho à base de um milho típico da região. 

            Mas não tenho dúvidas de que o mais impactante foi admirar aquelas ruínas dos antigos templos e imaginar como monolitos pesando toneladas foram levados montanha acima sem guindastes. Não há lógica que explique. Imensos blocos foram juntados perfeitamente uns aos outros, sem espaço para uma fina lâmina sequer, e sem qualquer coisa equivalente a parafusos para uni-los e torná-los firmes contra os chacoalhões da terra. Não havia possibilidade para o erro. Uma inteligência milimétrica estava ali.

             Foi possível ver que as faces e os vértices das construções de pedra não foram posicionados aleatoriamente, mas sim de acordo com os equinócios da primavera e do outono, e os solstícios do inverno e do verão, tudo obedecendo a prévias observações e cálculos matemáticos. Este era o seu calendário para o acompanhamento das estações do ano e, por conseguinte, das épocas de plantio de sementes e colheita dos alimentos. O controle disso estava, por exemplo, no alinhamento do nascer do sol no horizonte com a entrada do Templo Sagrado e o pico de uma  montanha numa dada época, o que permitia saber que se tratava do início das chuvas e, portanto, que era tempo de semeadura. De outro modo, o alinhamento do pôr do sol com alguma estrutura do Templo da Lua indicava a chegada da estiagem, logo, que era tempo de colher.  

            Esta complexidade, entre outras de cair o queixo, revelava o conhecimento avançado dos Incas a respeito de astronomia e agricultura, mas que tinha como fundamento uma sabedoria superior, a qual me foi apresentada e daí tudo passou a fazer muito sentido: O...C...R...A. Minha nuca já foi escolhida para uma tatuagem com estas letras. São as iniciais de quatro ações essenciais realizadas por aquele povo originário de outrora, a partir do que tudo se torna possível sem que seja preciso destruir a natureza. Envolve observá-la, conhecê-la, respeitá-la e amá-la. 

             Uma sabedoria simples que chega a assustar pela sua singeleza e elevação, mas com efeitos grandiosos. Diziam os Incas que a qualquer lugar que o ser humano chegasse pela primeira vez, haveria de praticar estas quatro ações antes de agir apressadamente.

             Aquele povo executou estas ações antes de se estabelecerem definitivamente nos Andes peruanos e o acerto de suas práticas estava, necessariamente, relacionado ao ato de observar previamente o lugar em que chegaram, para que pudessem conhecê-lo, por saberem que é somente conhecendo que se consegue respeitar e é somente respeitando que se pode amar.

            São quatro ações possíveis a qualquer ser humano. Já estão dentro de seu coração, prontas para serem realizadas por onde quer que estejam. A simplicidade desta sabedoria não demanda maiores conhecimentos ou elaborações, bastando sua intenção verdadeira. Observar para conhecer, conhecer para respeitar, respeitar para amar.

           


terça-feira, 9 de julho de 2024

 TOLERÂNCIA AO MAL ESTAR

            Qualquer mal-estar devia ser acolhido apenas para indicar que algo precisa ser alterado. Devia ser encarado como alarme para mudar desconfortos no terreno pessoal, relacional, profissional etc. Devia ser visto como a febre, que é um aviso de que algo invadiu nosso corpo, indicando a necessidade de procurar ajuda médica. Devia ser como o cheiro de gás, que faz todo mundo correr para encontrar algum vazamento e impedir uma explosão. O mal-estar devia ser como um guizo no pescoço de um animal feroz perto de nós para forçar-nos a usar as pernas para correr do perigo.

            Já deu para perceber que estas são metáforas para dizer que algo que não está bom, que nos ameaça, precisa de atenção e atitude. Se não cuidarmos da febre, se não desligarmos o gás ou não fugirmos da fera, alguma consequência desagradável nos aguarda.

            Mas a questão é que existe algo do mal-estar que nos paralisa e nos mantém na autocomiseração cansativa quando a lógica determina afastar-se dele. O ser humano, muitas vezes, permanece ou volta para o mesmo lugar onde doía, guarda em si a capacidade do auto-boicote. Tecnicamente, o nome disso é gozo, compulsão à repetição ou pulsão de morte.

            Evidente que cada um tem seu tempo, maior ou menor, de agir para desligar-se do que está ruim, porém, o não agir para a recuperação do bem-estar já é outra coisa, porque adentra o terreno do patológico. Já se começa a pensar que alguma coisa relacionada a um prazer mórbido certamente existe naquilo que chegou como alerta vermelho e acabou ficando. 

            É coisa típica do ser humano isso de sofrer e não fazer nada, de manter-se no lugar de dor e desprazer, de martirização, ao ponto de ser necessário pensar que alguma coisa nos bastidores da mente força a criatura a ficar inerte e não acionar seu mecanismo de proteção para colocar-se numa situação melhor. Uma espécie de tortura interna e que é praticada pela própria pessoa. Louco né? Ainda assim, absolutamente comum.

            Na natureza bicho não gosta de sofrer, então por que isso acontece com as pessoas? Essa é uma pergunta de milhões que se desdobra em outras. O que de pior poderia existir diante de uma tomada de atitude para livrar-se do sofrimento? Seria o medo da morte? Definitivamente, não, porque não me parece haver uma relação direta entre morrer e tentar viver melhor, quer dizer, ninguém morre por apostar numa vida melhor, pois, na pior das hipóteses, o resultado será o quê senão um desacerto onde caberão outras tentativas para ajustes e assim sucessivamente?  

            Ontem escutei um podcast que até dei risada quando alguém falou que a paralisia perante o sofrimento é igual a ficar na 'merda quentinha'. O sujeito ali até que tem algum conforto, alguém discorda? A hipótese de 'adaptação ao sofrimento' pode ser uma chave para se pensar que é uma característica humana habituar-se a tudo, até ao que está ruim. Daí ressurgem aquelas mesmas perguntas: que medo é esse de mudar? Qual seria nossa referência biológica, cultural ou histórica que desmotiva uma reviravolta? Por que será que o costume ao que está ruim é mais confortável do que uma aposta na experimentação de algo diverso?

            Os estudiosos do ser humano e da sua psiquê têm lá suas explicações, mas eu prefiro adotar aquela mais poética e filosófica da Marina Colasanti, segundo quem 'A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma'. Pretensiosamente, eu acrescento que talvez a gente se acostume a se acostumar.

            Ninguém está imune a isso, então, que tal nos forçarmos um pouquinho a pensar que o que a vida oferece de melhor é, justamente, a possibilidade de caminhos diversos? Mas não só pensar na cabeça, e sim deixar que um convencimento íntimo de que é preciso mudar tome conta de nossas células e se torne uma vontade visceral de apostar em algo diferente e, cá pra nós, ninguém vai morrer disso.


sexta-feira, 5 de julho de 2024


A MULHER E SEUS AVATARES


            Abrindo uma rede social na semana passada, a primeira postagem que apareceu me chamou a atenção por veicular um comentário ácido e depreciativo a respeito da conhecida série americana Sex and the City, passada nos anos 2000, a qual eu assisti inteirinha e, particularmente, gostei bastante. Desde então fiquei pensando a respeito e percebendo que minha bússola interna pendia para a direção que qualificava como infelizes aqueles comentários. 

            A série foi acusada de ter servido para mostrar quatro mulheres com mais de 40 ou 50 anos de idade comportando-se como adolescentes, o que era entendido como um péssimo exemplo. A primeira coisa que me ocorreu, de forma irônica, foi um 'ora, como ousam estas mulheres viver suas vidas do jeito delas!'. 

            Basicamente, o pano de fundo do que se pode classificar mais como uma comédia eram os encontros de quatro amigas (Carrie, Charlotte, Miranda e Samantha) que, em meio às suas vidas particulares, juntavam-se em cafés e restaurantes de Nova York para conversas aleatórias a respeito da vida de solteira e de suas tentativas de encontrarem amor e prazer em relacionamentos afetivos.

            Carrie, a protagonista, era a romântica inveterada que procurava o amor em cada esquina e seus constantes fracassos eram a matéria prima para o seu trabalho de escrever para uma coluna de jornal contando sobre dúvidas e dilemas femininos tão típicos das mulheres, assim como tão desconhecidos dos homens e, às vezes, até das próprias mulheres. A romântica buscadora de relacionamentos com amor como estilo de vida, vivendo-os temporariamente e desiludindo-se, mas sempre indo adiante sem desistir por acreditar que uma hora encontraria algo com maior sentido para si.

            Charlotte era a certinha, que sonhava com vestido de noiva, casamento, vida familiar estável, o maridinho chegando do trabalho ao final do dia e para quem ela preparava um jantarzinho à luz de velas. A comportadinha que casou de véu e grinalda e, acreditando que casamento é para sempre, frustrou-se porque o marido não dava conta do recado, essa mesma que mais tarde, para caber na vida de outro homem, precisou frequentar um curso de conversão ao judaísmo como pré-requisito para o novo relacionamento.

            Miranda, a única que teve um filho, não se sentia tão confortável com a maternidade, muito embora amasse a criança. Sentia-se culpada porque, afinal, a sociedade lhe impunha a crença de que toda mãe deve ser feliz neste papel e deixar de lado seus interesses pessoais.

            E Samantha, por fim, o estereótipo da mulher que não pode existir na sociedade, isto é, a depravada que goza muito, a puta vadia louca por sexo, cujos desejos e fantasias corriam soltos com homens diversos, mas que no fundo também gozava com buquês de flores, olhos no olhos e palavras doces no ouvido.

            A verdade é que Sex and the City me parece uma caricatura bem humorada que fala dos avatares que cada mulher carrega dentro de si. Assim, as quatro personagens da série representarim algumas das inúmeras nuances que serpenteiam no espírito de cada uma. Então, longe de concordar com aquela crítica infame que eu li, a série de TV é uma forma inteligente de mostrar a diversidade em uma só mulher, que, ninguém discorda, passa longe das confabulações masculinas. Talvez até a série tenha pretendido representar o percurso cronológico pelo qual passa uma mulher ao longo de sua vida, caso em que se poderia pensar em Carrie como a primeira fase da menina sonhadora dos contos de fada, passando para a fase Charlotte da mulher que casa e com o tempo se desilude, seguindo-se com Miranda que vira mãe, mas ainda conserva em si algo de um feminino não preenchido que ainda não sabe bem o que é e, finalmente, a fase Samantha como aquela cuja maturidade a faz deixar de lado as caraminholas inúteis de uma vida inteira para focar em seus desejos e em uma vida com mais prazer. 

            Assim, pensei cá comigo que quem escreveu aquele comentário não fez uma tentativa mais inteligente de captar o espírito da coisa ou de buscar uma mensagem mais consentânea com o mundo em que vive. Por certo, nunca percebeu que cada mulher é o palco de inúmeras ideias, tanto as que são impostas de fora sem consciência disso, quanto as que parecem um pecado mortal mesmo no espaço restrito de sua própria cabeça.

            A cultura patriarcal e machista que nos rodeia nunca deixou de exercer o seu poder sobre as mentes femininas. Que atire a primeira pedra quem que nunca viu na vida real ou em filme, numa festa de casamento, a mulherada solteira se acotovelando para agarrar o buquê arremessado pela noiva, ou que nunca tenha se visto uma mulher responder a alguém a pergunta sobre sua vontade de ter filhos e quando, pois é fato que o mundo inteiro cobra isso há séculos. A maternidade parece uma tatuagem na pele da mulher, o que não se vê no homem em relação à paternidade. Que outra pedra seja atirada pela mulher que não guarde em suas entranhas a loba cujos uivos sejam a expressão do seu desejo tão impedido de descarga, até mesmo em quatro paredes. E não bastasse terem de equilibrar tantos pratos na vida, as coitadas também não podem nem fazer piada ou brincar com as suas próprias aflições e nem dizer ao mundo em formato de entretenimento um pouco do que é ser mulher...

            Isso até me faz lembrar do conto infantil da pequena sereia em que Ariel apaixona-se por um homem, mas, para poder conquistá-lo, vem à superfície pedir à bruxa que transforme seu corpo em um corpo de mulher. A bruxa concorda, mas desde que Ariel pague o feitiço abrindo mão de sua própria voz, ficando muda. Questionando sobre como seria possível conquistar o homem sem voz, a bruxa então lhe responde: - Pra que voz se lhe dei quadris? Moral: calem a boca, mulheres, e sirvam de objeto aos homens!

            Não é de hoje que as mulheres não tem voz. Já foram chamadas de feiticeiras e até queimadas vivas quando revelaram um saber sobre ervas curativas e outros conhecimentos que ameaçavam o pedestal masculino. Já precisaram impedir seus desejos e vontades para encaixarem-se nos papéis sociais que lhe foram determinados pelos homens, ao preço de somatizações em seu próprio corpo, e as histéricas oitocentistas foram a prova disso. Tiveram de formar grupos com outras mulheres para ficarem mais fortes no estilo 'o todo é maior do que suas partes' para conseguirem lutar por uma posição de igualdade no mundo, isto é, as feministas com seus braços erguidos e seus gritos agudos de revolta. Já tiveram que ouvir como verdade absoluta que atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher, como se estar ao lado dele lhe fizesse sombra. A lista não para por aí.

            É por isso que rendo minhas homenagens aos inventores e inventoras da série americana que deram voz e visibilidade ao que se passa num coração e num corpo femininos, seja lá onde queiram estar e com quem. Porque talvez a ideia de mostrar um pouco de como a mulher é moldada a pensar e agir, por imposição velada e subliminar, possa trazer alguma luz sobre todos.

            Para aquela pessoa que fez o comentário infeliz dirigido à série de TV desejo nada mais do que um despertar ainda nesta vida, para que possa contribuir com um pouco mais de igualdade entre homens e mulheres, bem como com empatia para um mundo menos opressor para a metade da humanidade mais atingida com isso.


segunda-feira, 1 de julho de 2024

 ESQUECENDO A MÃE

            Há muitos anos, minha família era proprietária de um apartamento na praia no qual costumávamos passar as férias escolares. Nas janelas dos cômodos havia um espaço destinado à colocação de floreiras, que era usado por minha mãe para as suas margaridas e azaleias e cuja jardinagem era afetiva, pois envolvia conversar com elas, além de regá-las e limpá-las. Mas numa das ocasiões em que lá chegamos para passar dois meses inteiros, deparamo-nos com um cenário diferente, sem flores, porém, não vazio. O zelador havia tirado o que acabou ficando murcho e seco. No lugar, um ninho e uma pomba chocando dois ovos.

           Naquele período do nosso descanso anual, tivemos o prazer e o privilégio de ver o nascimento de duas pombinhas, assim como de ir acompanhando o envolvimento daquela ave mãe com sua prole, o aparecimento das primeiras penugens, o desenvolvimento de seus corpinhos. Pudemos testemunhar todos os dias a mãe pomba trazendo minhoquinhas em seu bico para alimentar seus bebês. Foi comovente ver este espetáculo ali tão perto de nós!

            Deu tempo ainda de presenciarmos as duas pombinhas, já mais crescidinhas como adolescentes desengonçadas, desfilarem dentro da floreira enquanto não se sentiam seguras para arriscarem seu primeiro voo. Batiam suas asinhas e davam pulinhos sem sair de perto do ninho, e daqueles pulinhos dentro da floreira onde tinham nascido, as pombinhas passaram a dar saltos em direção à floreira ao lado, já mais exibidas e confiantes. Foi a partir deste estágio do crescimento daquelas criaturinhas que não vimos mais a mãe pomba. Ela havia ido embora, esgotado o seu papel. A natureza lhe havia dado o conhecimento de que a hora de seus rebentos ganharem os céus estava próxima.

            Logo logo mesmo pudemos confirmar que os dois filhotes já podiam por em prática a sua independência e se lançar para o infinito com a suas próprias asas. Foi lindo, mas só mais tarde construí em minha cabeça um entendimento com camadas de poesia e filosofia a respeito da função materna.

            Pude ver na prática que é apenas até certo ponto que as mães darão de si em prol da sobrevivência dos seus filhotes, a quem caberá mais tarde correrem pelo mundo que os convida ao desafio de viver. Pelo seu próprio lado, as mães até que aguardam a despedida dos seus filhos desejando que a certa altura sejam esquecidas por eles, coisa que se vê como absolutamente necessária para o voo solo, num sentido simbólico, é claro...ou nem tanto.

            O episódio das pombas no apartamento da praia deu-me a dimensão de que isto  é, justamente, o significado de honrar a mãe, receber o seu legado, incorporar a sua herança que é composta por um saber especial para a continuidade da vida e que somente se completa a partir de um processo de separação imprescindível para o crescimento emocional, ainda que doloroso.

             Esquecer a mãe, no sentido de não depender mais dela, é o caminho para o crescimento psíquico, o amadurecimento, é o que permitirá aos filhos lançarem-se para a vida e para o desconhecido. É abraçar as incertezas e retirar-se de uma posição de conforto que não contribui para o encontro com o novo, para o aprendizado diverso e para outras formas de felicidade.