sexta-feira, 5 de julho de 2024


A MULHER E SEUS AVATARES


            Abrindo uma rede social na semana passada, a primeira postagem que apareceu me chamou a atenção por veicular um comentário ácido e depreciativo a respeito da conhecida série americana Sex and the City, passada nos anos 2000, a qual eu assisti inteirinha e, particularmente, gostei bastante. Desde então fiquei pensando a respeito e percebendo que minha bússola interna pendia para a direção que qualificava como infelizes aqueles comentários. 

            A série foi acusada de ter servido para mostrar quatro mulheres com mais de 40 ou 50 anos de idade comportando-se como adolescentes, o que era entendido como um péssimo exemplo. A primeira coisa que me ocorreu, de forma irônica, foi um 'ora, como ousam estas mulheres viver suas vidas do jeito delas!'. 

            Basicamente, o pano de fundo do que se pode classificar mais como uma comédia eram os encontros de quatro amigas (Carrie, Charlotte, Miranda e Samantha) que, em meio às suas vidas particulares, juntavam-se em cafés e restaurantes de Nova York para conversas aleatórias a respeito da vida de solteira e de suas tentativas de encontrarem amor e prazer em relacionamentos afetivos.

            Carrie, a protagonista, era a romântica inveterada que procurava o amor em cada esquina e seus constantes fracassos eram a matéria prima para o seu trabalho de escrever para uma coluna de jornal contando sobre dúvidas e dilemas femininos tão típicos das mulheres, assim como tão desconhecidos dos homens e, às vezes, até das próprias mulheres. A romântica buscadora de relacionamentos com amor como estilo de vida, vivendo-os temporariamente e desiludindo-se, mas sempre indo adiante sem desistir por acreditar que uma hora encontraria algo com maior sentido para si.

            Charlotte era a certinha, que sonhava com vestido de noiva, casamento, vida familiar estável, o maridinho chegando do trabalho ao final do dia e para quem ela preparava um jantarzinho à luz de velas. A comportadinha que casou de véu e grinalda e, acreditando que casamento é para sempre, frustrou-se porque o marido não dava conta do recado, essa mesma que mais tarde, para caber na vida de outro homem, precisou frequentar um curso de conversão ao judaísmo como pré-requisito para o novo relacionamento.

            Miranda, a única que teve um filho, não se sentia tão confortável com a maternidade, muito embora amasse a criança. Sentia-se culpada porque, afinal, a sociedade lhe impunha a crença de que toda mãe deve ser feliz neste papel e deixar de lado seus interesses pessoais.

            E Samantha, por fim, o estereótipo da mulher que não pode existir na sociedade, isto é, a depravada que goza muito, a puta vadia louca por sexo, cujos desejos e fantasias corriam soltos com homens diversos, mas que no fundo também gozava com buquês de flores, olhos no olhos e palavras doces no ouvido.

            A verdade é que Sex and the City me parece uma caricatura bem humorada que fala dos avatares que cada mulher carrega dentro de si. Assim, as quatro personagens da série representarim algumas das inúmeras nuances que serpenteiam no espírito de cada uma. Então, longe de concordar com aquela crítica infame que eu li, a série de TV é uma forma inteligente de mostrar a diversidade em uma só mulher, que, ninguém discorda, passa longe das confabulações masculinas. Talvez até a série tenha pretendido representar o percurso cronológico pelo qual passa uma mulher ao longo de sua vida, caso em que se poderia pensar em Carrie como a primeira fase da menina sonhadora dos contos de fada, passando para a fase Charlotte da mulher que casa e com o tempo se desilude, seguindo-se com Miranda que vira mãe, mas ainda conserva em si algo de um feminino não preenchido que ainda não sabe bem o que é e, finalmente, a fase Samantha como aquela cuja maturidade a faz deixar de lado as caraminholas inúteis de uma vida inteira para focar em seus desejos e em uma vida com mais prazer. 

            Assim, pensei cá comigo que quem escreveu aquele comentário não fez uma tentativa mais inteligente de captar o espírito da coisa ou de buscar uma mensagem mais consentânea com o mundo em que vive. Por certo, nunca percebeu que cada mulher é o palco de inúmeras ideias, tanto as que são impostas de fora sem consciência disso, quanto as que parecem um pecado mortal mesmo no espaço restrito de sua própria cabeça.

            A cultura patriarcal e machista que nos rodeia nunca deixou de exercer o seu poder sobre as mentes femininas. Que atire a primeira pedra quem que nunca viu na vida real ou em filme, numa festa de casamento, a mulherada solteira se acotovelando para agarrar o buquê arremessado pela noiva, ou que nunca tenha se visto uma mulher responder a alguém a pergunta sobre sua vontade de ter filhos e quando, pois é fato que o mundo inteiro cobra isso há séculos. A maternidade parece uma tatuagem na pele da mulher, o que não se vê no homem em relação à paternidade. Que outra pedra seja atirada pela mulher que não guarde em suas entranhas a loba cujos uivos sejam a expressão do seu desejo tão impedido de descarga, até mesmo em quatro paredes. E não bastasse terem de equilibrar tantos pratos na vida, as coitadas também não podem nem fazer piada ou brincar com as suas próprias aflições e nem dizer ao mundo em formato de entretenimento um pouco do que é ser mulher...

            Isso até me faz lembrar do conto infantil da pequena sereia em que Ariel apaixona-se por um homem, mas, para poder conquistá-lo, vem à superfície pedir à bruxa que transforme seu corpo em um corpo de mulher. A bruxa concorda, mas desde que Ariel pague o feitiço abrindo mão de sua própria voz, ficando muda. Questionando sobre como seria possível conquistar o homem sem voz, a bruxa então lhe responde: - Pra que voz se lhe dei quadris? Moral: calem a boca, mulheres, e sirvam de objeto aos homens!

            Não é de hoje que as mulheres não tem voz. Já foram chamadas de feiticeiras e até queimadas vivas quando revelaram um saber sobre ervas curativas e outros conhecimentos que ameaçavam o pedestal masculino. Já precisaram impedir seus desejos e vontades para encaixarem-se nos papéis sociais que lhe foram determinados pelos homens, ao preço de somatizações em seu próprio corpo, e as histéricas oitocentistas foram a prova disso. Tiveram de formar grupos com outras mulheres para ficarem mais fortes no estilo 'o todo é maior do que suas partes' para conseguirem lutar por uma posição de igualdade no mundo, isto é, as feministas com seus braços erguidos e seus gritos agudos de revolta. Já tiveram que ouvir como verdade absoluta que atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher, como se estar ao lado dele lhe fizesse sombra. A lista não para por aí.

            É por isso que rendo minhas homenagens aos inventores e inventoras da série americana que deram voz e visibilidade ao que se passa num coração e num corpo femininos, seja lá onde queiram estar e com quem. Porque talvez a ideia de mostrar um pouco de como a mulher é moldada a pensar e agir, por imposição velada e subliminar, possa trazer alguma luz sobre todos.

            Para aquela pessoa que fez o comentário infeliz dirigido à série de TV desejo nada mais do que um despertar ainda nesta vida, para que possa contribuir com um pouco mais de igualdade entre homens e mulheres, bem como com empatia para um mundo menos opressor para a metade da humanidade mais atingida com isso.


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