TOLERÂNCIA AO MAL ESTAR
Qualquer mal-estar devia ser acolhido apenas para indicar que algo precisa ser alterado. Devia ser encarado como alarme para mudar desconfortos no terreno pessoal, relacional, profissional etc. Devia ser visto como a febre, que é um aviso de que algo invadiu nosso corpo, indicando a necessidade de procurar ajuda médica. Devia ser como o cheiro de gás, que faz todo mundo correr para encontrar algum vazamento e impedir uma explosão. O mal-estar devia ser como um guizo no pescoço de um animal feroz perto de nós para forçar-nos a usar as pernas para correr do perigo.
Já deu para perceber que estas são metáforas para dizer que algo que não está bom, que nos ameaça, precisa de atenção e atitude. Se não cuidarmos da febre, se não desligarmos o gás ou não fugirmos da fera, alguma consequência desagradável nos aguarda.
Mas a questão é que existe algo do mal-estar que nos paralisa e nos mantém na autocomiseração cansativa quando a lógica determina afastar-se dele. O ser humano, muitas vezes, permanece ou volta para o mesmo lugar onde doía, guarda em si a capacidade do auto-boicote. Tecnicamente, o nome disso é gozo, compulsão à repetição ou pulsão de morte.
Evidente que cada um tem seu tempo, maior ou menor, de agir para desligar-se do que está ruim, porém, o não agir para a recuperação do bem-estar já é outra coisa, porque adentra o terreno do patológico. Já se começa a pensar que alguma coisa relacionada a um prazer mórbido certamente existe naquilo que chegou como alerta vermelho e acabou ficando.
É coisa típica do ser humano isso de sofrer e não fazer nada, de manter-se no lugar de dor e desprazer, de martirização, ao ponto de ser necessário pensar que alguma coisa nos bastidores da mente força a criatura a ficar inerte e não acionar seu mecanismo de proteção para colocar-se numa situação melhor. Uma espécie de tortura interna e que é praticada pela própria pessoa. Louco né? Ainda assim, absolutamente comum.
Na natureza bicho não gosta de sofrer, então por que isso acontece com as pessoas? Essa é uma pergunta de milhões que se desdobra em outras. O que de pior poderia existir diante de uma tomada de atitude para livrar-se do sofrimento? Seria o medo da morte? Definitivamente, não, porque não me parece haver uma relação direta entre morrer e tentar viver melhor, quer dizer, ninguém morre por apostar numa vida melhor, pois, na pior das hipóteses, o resultado será o quê senão um desacerto onde caberão outras tentativas para ajustes e assim sucessivamente?
Ontem escutei um podcast que até dei risada quando alguém falou que a paralisia perante o sofrimento é igual a ficar na 'merda quentinha'. O sujeito ali até que tem algum conforto, alguém discorda? A hipótese de 'adaptação ao sofrimento' pode ser uma chave para se pensar que é uma característica humana habituar-se a tudo, até ao que está ruim. Daí ressurgem aquelas mesmas perguntas: que medo é esse de mudar? Qual seria nossa referência biológica, cultural ou histórica que desmotiva uma reviravolta? Por que será que o costume ao que está ruim é mais confortável do que uma aposta na experimentação de algo diverso?
Os estudiosos do ser humano e da sua psiquê têm lá suas explicações, mas eu prefiro adotar aquela mais poética e filosófica da Marina Colasanti, segundo quem 'A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma'. Pretensiosamente, eu acrescento que talvez a gente se acostume a se acostumar.
Ninguém está imune a isso, então, que tal nos forçarmos um pouquinho a pensar que o que a vida oferece de melhor é, justamente, a possibilidade de caminhos diversos? Mas não só pensar na cabeça, e sim deixar que um convencimento íntimo de que é preciso mudar tome conta de nossas células e se torne uma vontade visceral de apostar em algo diferente e, cá pra nós, ninguém vai morrer disso.

Nenhum comentário:
Postar um comentário