domingo, 30 de janeiro de 2022

 MENOS PESO


        Ficou registrado como memória da minha infância aqueles filmes de comédia que em certo momento a única alternativa de fuga para um bando fora da lei era um enorme balão de ar quente muito colorido. Pulava para dentro do cesto uma turminha engraçada que ia se sentindo absolutamente salva à medida que o meio de transporte se distanciava do chão. Seus perseguidores nada mais podiam fazer senão ficar olhando para cima com as mãos na cintura e olhar de derrota. E então vinha aquela sensação de alívio, de liberdade e de que tudo ficou bem, até porque éramos induzidos o tempo inteiro a torcer pelo sucesso dos malvados.

        Só que, obviamente, não era tudo tão fácil como parecia, pois à certa altura da viagem o balão começava a sacudir e fazer barulho indicando que havia muito peso e o perigo de cair era evidente. Começavam todos então a jogar pelos ares tudo o que naquele instante era julgado inútil e poderia comprometer a sobrevivência. A graça da coisa vinha, justamente, daquele monte de bagagens que eram arremessadas para fora sem que tivesse sido mostrado como haviam entrado ali junto com aquelas pessoas desesperadas pra fugir. Então começavam a voar uma maleta, uma lanterna, um maçarico, uma trouxa de roupa, um cachorro pulguento, até um anãozinho mau humorado para dar maior leveza ao balão. E tudo acabava bem, todos felizes, sãos e salvos, protegidos pela estratégia que poupou suas peles.

        Em alguns momentos essa palhaçada toda me surge como inspiração para exercitar o desapego dos pesos inúteis que ameaçam minha saúde mental. Se pensar bem, são muitas as inutilidades das quais podemos prescindir e lançar para fora para ficarmos mais leves, uma espécie de limpeza para maior tranquilidade e vida sadia. Só que ao invés de bugigangas, ocorre-me de me desfazer de hábitos cansativos, medos inúteis, vontades duvidosas, planos mal formatados, fantasias irreais, sonhos que não fazem mais sentido, culpas e até pessoas.

        Tem muita coisa nesse meu balão que já vem sendo arremessada pra fora sem o menor ressentimento, mas não como fuga daquilo que preciso enfrentar, e sim como uma boa faxina que me permitirá cada vez mais apreciar melhor a paisagem do percurso.

        Pra que ficar conservando o medo de se arriscar ao novo e fincar o pé no eterno e seguro terreno já conhecido, por exemplo? Pra que fazer de tudo pra cumprir uma meta antiga que já não guarda coerência como os novos tempos? Pra que punir-se por culpas alheias? Pra que continuar convivendo com vampiros do nosso bem estar? Por que acreditar que não posso, que não devo, que isso não é pra mim? Por que não pegar na mão de quem a gente ama e fazer uma loucura inesquecível de vez em quando? Por que não jogar fora o que não já não vem servindo? Mais adiante, livrar-se desse peso todo talvez faça uma boa diferença para que se possa desfrutar de maiores alturas...

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

 

OU-OU


        Em nossa linguagem existem várias expressões que usamos para indicar situações diametralmente opostas e, penso eu, carregadas de uma justa e embutida crítica à visão limitada de que, frente aos acontecimentos, só existem duas possibilidades diferentes e excludentes entre si. É a lógica ou-ou, que considera somente os extremos, também conhecida como somente uma coisa ou outra, com desprezo das infinitas possibilidades que o mundo e a vida oferecem. Normalmente, isso está relacionado com a dificuldade de se saber, ou aceitar, que sempre existe o meio-termo na hora de tomar decisões. 

        Falar que alguém é tudo ou nada, que é oito ou oitenta, que vai do céu ao inferno é o mesmo que apontar a sua limitação para enxergar, unicamente, o bom ou ruim, a paz ou a guerra como possibilidades únicas frente à vida, sem levar em conta as nuances que há entre dois polos. São metáforas, claro, para identificar aquela pessoa que é radical e inflexível, que ama ou odeia, que vai ou fica, que cala ou grita e que, perante os impasses, só avalia dois caminhos antagônicos, sem considerar outras posições dentro desse  espaço. Graças ao bom Deus isso já não faz mais parte da minha vida há algum tempo. Hoje consigo perceber que nenhum contexto é só paraíso ou só abismo, seja na natureza, no universo, na psique humana, na história do mundo, no amor, na saúde, na economia etc.

       Num universo em constante movimento pensar em apenas duas maneiras de se posicionar perante os fatos soa um tanto limitante. O bom ou mau, o agora ou nunca e outros inúmeros contrários não podem erradicar o mais ou menos nem o talvez. 

        Equilíbrio é a chave, porque acreditar que as coisas só podem se localizar no certo ou no errado, no preto ou no branco, é restringir-se demais. Sempre haverá tons de cinza em tudo. A própria matemática já revelou que há infinitos números entre o zero e o um, assim como a física quântica mostrou que tudo o que vemos é absolutamente momentâneo. Os filósofos gregos, e Aristóteles, em especial, falavam que a virtude está no meio, dizendo que os extremos são os vícios - in medio stat virtus

        Assim, nem lá nem cá, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Não sejamos como o duro e inflexível tronco de carvalho que se quebra devido ao peso da neve que nele se acumula. Melhor ser como o bambu que verga para baixo deixando a neve cair, recuperando o seu estado original.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

 

ÚTIL ...ÀS VEZES FÚTIL


        Ninguém vive só de pensar no sexo dos anjos, de desvendar onde se esconde a profundidade do cotidiano, o sentido da vida, o rumo dos acontecimentos, os valores do mundo, quem sou eu, para onde vou...ah, que cansaço! Não pode funcionar assim. Tem horas que a frivolidade lateja e força para sair correndo. No meu caso, até que adoro um bate papo sério com meus botões, mas tudo tem limite. Ficar quieta num canto tomando chá e só meditando, por mais saudável que seja, chega num ponto que exaure. Acho necessário interromper o cronômetro das virtudes às vezes e deixar o tempo transcorrer sem resistência, fazendo qualquer coisa que dê vontade.

        Mas parece que ninguém se sente autorizado a, simplesmente, ficar parado, não fazer nada, ainda que só de vez em quando. Há sempre alguém que nos obriga a sermos cada vez melhores, a produzir algo, apresentar resultados, ser útil. Somos forçados pelo trabalho, pelo capitalismo, pela família, pelo governo...esses malditos tiranos que nos dizem para enriquecer, construir, ter insights, acumular tarefas. A culpa é deles, claro. Venho refletindo há tempos sobre uma forma de sair do estigma do politicamente correto, do perfeito, seja em atos, palavras e pensamentos, pois tudo isso é muito pesado e doloroso.

         Até que vai bem um dia da semana sem trabalhar tanto, para ir ao shopping. E vai bem entrar nesse mesmo shopping sem ir correndo a uma livraria à cata de coisas interessantes, cultura, novos conhecimentos, porque, Santa Afrodite, deusa das futilidades, tem momentos em que só dá vontade mesmo é de ver vitrines. Provar bugigangas nas orelhas e no pescoço, experimentar sapatos, imaginar-se na blusinha de frufru que se oferece atrás do vidro.

        Não é pecado permitir-se uma futilidadezinha qualquer, uma temporária vadiagem sem propósito, um olé nos deveres para se refestelar no sofá da sala com as pernas para cima e ver sessão da tarde, com pipoca de caramelo, sem pensar em dieta lowcarb ou fibrasSerá que não dá para, de vez em quando, fingir que tudo vai continuar funcionando igual se eu aceitar o que já tenho, especialmente, os dons e qualidades que já possuo? Opa! Até me deu um estalo agora ....dá sim, tudo, simplesmente, continuará funcionando - e muito bem - sem que eu precise correr atrás a todo instante de maiores atributos pessoais. Então que história é essa de sempre querer melhorar, crescer, evoluir? Decidi que minha caixinha de qualidades já está bem cheia e que posso me dar ao luxo de apreciar quem me tornei sem a obrigação de me impor lapidações frequentes.

        Relaxa, criatura, digo eu para mim mesma! Viva os pensamentos (e ações) amenas, pelo menos homeopaticamente. Esse maldito hábito de querer sempre ser bom e cada vez melhor em todos os sentidos não pode sobrepor-se à simples vontade de existir, de não fazer nada por um breve tempo. Assim sendo, abaixo a pressão sobre nossas cabeças e um sonoro sim ao dolce far niente temporário, não vai matar.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

A NOVIDADE DE ENVELHECER

   

        Venho refletindo há algum tempo sobre as novidades da vida, os acontecimentos inesperados, as notícias não previstas que chegam de repente sem aviso ou preparação, sobre aquilo que nos pega desprevenidos. Mas tem coisas que, ainda que saibamos que irão acontecer, chegam como susto, pegando-nos desprevenidos do mesmo jeito e a ponto de nos obrigar a adaptações.

    Envelhecer, por exemplo, já é anunciado desde o dia em que nascemos, mas quando chega de verdade, parece tudo uma grande notícia. Talvez por isso é que entrar na meia idade dá aquela estremecida e faz parecer tudo como muito inédito. Ao menos pra mim, tudo vem parecendo um grande acontecimento e meu combo mente-corpo vem gritando a necessidade de falar a respeito.

     A ideia da passagem do tempo, na realidade, sempre fez parte das minhas elucubrações, só que na forma de simulações em torno do que eu achava ser um futuro longínquo que demoraria uma eternidade pra chegar. Caramba, eu estou ficando velha!

        É tudo muito novo pra mim que, por ser a filha caçula da família, sempre me senti no playground das coisas lá em casa, a última a começar a namorar, a trabalhar, a casar, a ter filhos. Pela lógica, então, meu encontro com o famoso balanço geral da vida também demoraria muito ainda, apesar de eu ter sido constantemente avisada pela minha mãe, que, estalando os dedos, costumeiramente sentenciava ... "quando você abre o olho, já está com cinquenta anos". Ela mal sabe o tamanho do eco que essa frase produzia em meus ouvidos. Aquilo parecia um exagero dela, mas o engraçado é que num dado momento, não mais que de repente, aqui cheguei eu, na casa dos cinquenta anos. Nossa...passou tudo muito rápido mesmo.

        Parece que de uma hora pra outra, passei a experimentar na própria pele, em sentido literal inclusive, tudo o que eu ouvi a vida toda a respeito de envelhecer. Levantar do sofá com rapidez trouxe tontura, a visão vem ficando mais embaçada e já não posso mais ceder a quaisquer gulodices. Pernas menos ligeiras, articulações disparando uma dorzinha aqui, outra ali e chazinho pra dormir também vêm fazendo parte do quadro. E tem as filhas, ainda, pra mostrar que minha função materna não é perene. Elas já saem para o mundo sozinhas como quem vai ali, só passar um fim de semana na praia e já voltam.

       A ficha vem despencando, e não apenas por causa dos cabelos brancos, das ruguinhas ou do colágeno em baixa, até porque, pra isso, há truques estéticos cada vez mais modernos, vitamina D em cápsula, suplementos disso e daquilo, mil disfarces e auxílios artificiais pra esticar a juventude. Difícil mesmo está sendo encarar a desconstrução dos castelos ou, em bom português, das ilusões. Estas vêm caindo pra mim feito bastão em jogo de boliche e mostrando que luto não é apenas sobre a morte de alguém que a gente ama.

        Enfim, quero dizer que, mesmo depois de ter ouvido tantos testemunhos e conselhos ao longo da vida a respeito de ficar mais velha, pra mim, a chegada do crepúsculo estava longe de ser algo palpável. Perceber que já não se está mais no alvorecer da vida vem sendo "a" novidade.

        Tem coisas que vemos e ouvimos inúmeras vezes, mas quando acontece com a gente adquire cor de originalidade. Quem sabe este seja o grande truque do tempo, justamente, fazer com que tudo sempre pareça novo para gente nunca sentir que está no rumo da meia noite.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

 


FEBRE E AMOR

        Acabei escutando dias atrás aquela música da cantora Marina Lima, lançada nos anos oitenta...Charme do Mundo. Por ter uma melodia pra lá de gostosa, eu nunca havia prestado atenção na letra, mas desta vez resolvi fixar minha atenção nos seus versos. Hoje em dia, mais madura e sensível procuro ver mais poesia e mensagem em tudo que passa por mim e já na primeira estrofe me reconheci: "Eu tenho febre, eu sei / É um fogo leve / Que eu peguei / Do mar ou de amar, não sei / Mas deve ser da idade".

        Então, Marina Lima, somos duas! Eu também tenho essa febre, aliás, um baita calorão interno no meu caso, que me torna intensa no corpo e na alma, que me incendeia, me explode, me eleva pra cima como um balão. A verdade é que nada é morno comigo, feliz ou infelizmente. E como diz a música, eu também devo ter pego essa febre do mar ou de amar, só não sei de qual dos dois. 

        Analisando esse dilema poético, comecei pensando que da natureza eu adoro tudo, mas o mar é o meu favorito, porque é possível compará-lo ao amor, pela sua imensidão, seus mistérios, sua força, seu movimento, sua transitoriedade, sua ambivalência. É de onde nasce a vida e também de onde saem monstros. É do mar que eu retiro a energia que levo pra casa quando a ebulição atinge níveis altos. Super encaixa comigo esse jeito de pensar. Por outro lado, é possível também que essa febre tenha vindo de amar, como verbo, ação, pois uma pessoa do meu naipe jamais teria se transformado nessa panela de pressão, amando e tendo amado do modo raso, pequeno ou fraco. Tudo sempre foi muito agudo comigo nesse terreno.

        Seja de onde for, do mar ou de amar, o que também posso afirmar tal como a cantora, é que esse calor aqui dentro só pode ser da idade, tendo ligação direta com os anos que já se passaram. Tem razão Marina Lima. Eu concordo contigo que é abençoada a passagem do tempo, porque funciona como um foguinho que vai nos esquentando, nos apurando, nos deixando no ponto. Se for possível a comparação, aprendi com minha mãe que comida boa se faz em fogo baixo, porque pega mais o tempero, não fica aguada, é mais gostosa, atiça a fome, satisfaz mais. E assim, penso que encontrei a explicação: esse meu fogo leve, que eu também peguei do mar ou de amar, deve ser da idade. E precisei ficar mais velha pra conseguir ver e sentir que essa febre consiste no amor que há em absolutamente tudo.

        Mais pro final da música, Marina canta É febre, amor / E eu quero mais / Hum, tudo o que eu quero, sério / É todo esse mistério. Sim, é mesmo do amor que ela fala, esse grande mistério que nos aquece, nos propulsiona pra frente, nos erotiza...não tenho dúvidas de que eu também o quero mais, cada vez mais.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

 


TRISTEZA AMIGA

        Ninguém costuma ser visitado por pensamentos profundos quando em euforia, diversão e felicidade. Talvez, porque esses estados pereçam ser tão passageiros e daí tudo se ajeita para que se viva intensamente o momento. De minha parte, deixo para outro momento a tarefa de me concentrar em temas mais difíceis, pois é sempre no escuro da tristeza que minha mente trabalha. É quando avalio situações, medito, tento ressignificar fatos, enfim, é quando desço no poço da minha cabeça. Meu espírito precisa estar mais para a sombra do que para a luz para que eu possa sentir e perceber o que está abaixo da superfície.

        Há poucos dias eu estava de recesso do trabalho, na praia, casa cheia, família amontoada, sem qualquer compromisso com a ordem. Vieram quase todos. Rotina zero, excessos permitidos e mais a vontade de desfrutar de companhias tão amadas. Piadas, risos, barulhos, histórias, tudo regado a bebida e comida boa, sem tempo para me aquietar num canto e, simplesmente, pensar. Deixei rolar solto o riso e agendei pra mais tarde um momento isolada. Não há condição melhor para um encontro do que a solidão, o silêncio, e talvez uma chuvinha e um cafezinho recém passado.

        E, como tudo é tão efêmero tal qual foram os fogos de artifício no réveillon, chegou aquele momento no início do novo ano em que todos precisaram ir embora de volta para suas casas para cumprir seus afazeres, viver suas vidas, retomar seus rituais. E, de um minuto para outro, cá fiquei eu, prestes a fazer o que de melhor eu consigo quando estou sozinha...pensando.

        Então veio ela a galope...a tristeza, aproveitando-se! É assídua, não falha nunca esse meu estranho combustível. Estaria eu apenas sentindo saudade daquela algazarra toda? Ou talvez sentindo a reverberação das memórias afetivas passadas, tão concretamente presentes naquelas pessoas que mais amo nesta vida e com as quais pude conviver de perto por alguns dias no fim do ano que passou? Ou quem sabe apenas uma sobra de tempo que estava ali, escondida, fazendo-se de oportunidade para impor a quietude e atentar minhas ideias, cutucar meu coração. O fato é que me vi num dado instante em absoluto silêncio. Aquela chuvinha também deu as caras e fui então passar o cafezinho, cumprindo o script da coisa. Pronto! Estava montado o cenário, estava montada a cama para a melancolia se deitar, que, como âncora implacável, me sugou para um tempo ou um subsolo a ninguém acessível. Aquele lugar em que sofremos na carne o peso das lembranças e o receio dos finais.

        Na realidade, até agradeço a esta força que, de certa maneira, dirige meu olhar para o que tem importância real na vida. Porque, sinceramente, não nasci pra ficar no raso, não consigo ter olhar rápido para as coisas, a vida, as pessoas, o amor, ainda que isso me consuma de algum jeito. Sair saltitando por aí o tempo inteiro sem, de vez em quando, avaliar questões importantes da minha vida é coisa que ninguém nunca verá. Desse jeito, que bom que a tristeza, apesar da sua má fama, consegue dar sua contribuição, me guiando para um mergulho profundo e solitário e me impulsionando de volta para cima, de onde eu emerjo abastecida de novos olhares, sentimentos, promessas, claridade, planos, vida, alegria. Sim, aquela tristeza passou, sempre passa, e foi como a noite que depois vira dia. Dá pra dizer que o saldo foi positivo, pois me senti mais um pouquinho crescida, evoluída, transformada.

        Já disse o poeta que "...tristeza não tem fim, felicidade sim". A bem da verdade, a tristeza também tem seu fim, porque ela vive de mãos dadas com a felicidade, é o contraponto desta. Então, que seja muito bem vinda essa força, espécie de farol que nos clarifica a visão e desobstrui os caminhos para o acesso às alegrias.