sexta-feira, 17 de dezembro de 2021


 
UM OLHAR MAIS LEVE

        Neste fim de ano resolvi me dar de presente um olhar menos acusatório e punitivo sobre minha própria pessoa. Para o ano que se inicia, minha ideia é recomeçar tudo de forma mais leve e condescendente comigo mesma. Vai ser assim: se deu, deu...se não deu, paciência! Cheguei ao fim deste ano avaliando que só há uma coisa que dói mais do que ser julgado pelos outros, que é ser julgado (e ainda punido) por si mesmo. É dilacerante. Abrigar no coração um carrasco aplicador de penas demanda muito gasto de energia e - cá pra nós - não ajuda em nada, é pesado e a injustiça é certa, porque não há direito de defesa e, no mais das vezes, a sentença costuma ser desfavorável. 

        Acostumada ao ofício jurídico, posso afirmar com a maior segurança que passar por cima do direito de defesa de alguém torna o processo absolutamente nulo. Lá na frente, quando detectada a irregularidade, tudo terá que retornar ao começo para conceder oportunidade ao acusado para falar. É um direito, eu diria, sagrado, sem o qual não se faz justiça. Então, se é assim, usar a chibata em si próprio e sem um mínimo de ponderação íntima deveria, igualmente, "anular o processo". Só que não. A autopunição está aí, correndo solta e prejudicando as pessoas. É, no mínimo, uma aberração reunir num só pobre indivíduo as figuras de acusado, acusador, juiz e aplicador da pena, pois não resolve coisa alguma, ao contrário, causa-se um dano ao próprio eu.

       Ora, todo mundo faz algumas besteiras nesta vida. Quem já não pôs os pés pelas mãos, magoou pessoas, exagerou sem necessidade em situações diversas, andou por caminhos indevidos, falou o que não devia? E por que tanta autorrecriminação? Faz parte da vida tentar, errar, aprender. Não bastaria o arrependimento e a mudança de rumo, aceitando o erro como aprendizado para o futuro? Ainda que toda essa dinâmica punitiva se processe no plano inconsciente, meu decreto pessoal para este fim de ano será: Chega! Daqui pra frente serei mais light comigo, assumindo os estragos e seguindo adiante. E se meu erro for daqueles no estilo da repetição mortífera, daí é que vou dar mais colo à minha pessoa e tentar descobrir a armadilha por detrás do meu comportamento, sem chicotadas! Castigos pessoais não servem pra nada. No fundo, quem se pune o tempo todo não larga mão de querer ser perfeito sempre, adequar-se às regras, cumprir padrões.

        Então, abaixo a perfeição, a grande prisão construída em nossas cabeças! Ser perfeito é ilusório e nos coloca num cárcere que não combina com a vida. Ano novo está aí para exercitarmos a imperfeição, os equívocos, os deslizes ...e tudo bem!





domingo, 28 de novembro de 2021


                                 


                                                            MORTE E VIDA

       Ter medo da morte é, quiçá, a coisa que mais equaliza todos os seres humanos, incluídos aí aqueles que propalam, ingenuamente, o seu desprendimento em relação a este inevitável destino. É o tipo de temor bem democrático, por atingir a todos, indistintamente. Chamava-se Tânatos o deus grego da morte, e Mors o seu equivalente romano, a quem era atribuída a dimensão cruel da vida, bem como o seu doce poder libertador, num outro sentido. Seu nome aparece encoberto na etimologia de vários termos de nossa linguagem, como eutanásia, tanatologia, tanatose, tanatofobia, entre outros, todos eles ligados ao tema da morte. Não por acaso Freud deu o nome de Tânatos à nossa pulsão de morte, que faz par com nossa pulsão de vida, inconscientes, claro.

        A morte é natural, difícil é aceitá-la. E de tão natural, provoca-nos certo fascínio. Talvez por ser a baliza da vida, já que vivo é quem não está morto. Aliás, há quem já esteja morto em vida e há quem esteja até mais vivo do nunca, mesmo depois de morto, como Vadinho, um dos dois maridos de Dona Flor. Há quem viva eternamente também devido ao importante legado que deixou, permanecendo na memória de muita gente. A morte é tema da ciência, da religião, das artes, da filosofia e toda esta ênfase destina-se a uma só coisa: a imortalidade. O certo é que ninguém passa incólume pela vida sem um dia, ao menos, ter pensado no fim e, talvez seja todo esse poder que faça da morte o verdadeiro sentido da vida, servindo-nos de parâmetro pra avaliar a qualidade do nosso tempo neste mundo.

        Assim, ao invés de protestarmos contra a morte, que tal aproveitarmos para, enquanto vivos, tomá-la como uma força encorajadora da expressão dos nossos desejos, evitando sermos uns vivos-mortos, quero dizer, vivos no corpo e mortos na satisfação? Que tal ter na ponta da língua a diferença entre existir e viver? Os animais existem, porque não sabem que morrerão; nós, não, vivemos porque temos consciência do fim. Por isso nosso intervalo de vida aqui neste planeta há de ser o mais intenso, alegre, compensador possível. Negar a morte, fingir que ela não existe, é não viver extraordinariamente, é equiparar nossos dias à linha reta do eletrocardiograma. Por isso sou adepta de um bate-papo sobre esta grande mestra, deixá-la rondar nossa mente pra lembrar o quanto desperdiçamos preciosas oportunidades.

          Mas sou mais adepta mesmo é de gritar aos céus, para que escutem todas as pessoas que já se foram deste mundo, que, infeliz e inutilmente, se preocuparam demais com o que nós, os vivos desconhecidos de hoje, pensaríamos a respeito de suas vontades tolhidas, caso tivessem sido loucamente satisfeitas, e de seus ímpetos de vida, tristemente recolhidos. Agora estão lá, não sei onde, sequer sabendo que nós aqui aplaudiríamos sua coragem de viver intensamente!


quarta-feira, 24 de novembro de 2021

 

                                                        ZONA DE CONFORTO


         Dias atrás fui ao shopping pra resolver pequenas coisinhas. Pra mim é o tipo de lugar perfeito, pois num só endereço podemos dar uma incrementada no guarda roupa, renovar os utensílios da cozinha, dar uma chegada na farmácia, fazer um lanche e ainda ganhar relaxamento. Como eu sabia que ficaria umas três horas perambulando por lá, saí de casa com meu par de sapatos mais confortável, de salto baixo e acolchoado por dentro. Já tinha ido a vários lugares com ele em outras ocasiões, e o bendito fora sempre fiel aos propósitos que me fizeram comprá-lo.

        O triste é que não consegui ficar lá pelo tempo a que me propus e meu divertimento foi por água abaixo. À certa altura meus pés logo começaram a reclamar formando bolhas bem doloridas, tal qual um alarme me dizendo pra ir embora urgentemente. Sem conseguir fazer metade do planejado, só deu mesmo pra ir mancando até o estacionamento, pegar o carro e dirigir descalça de volta pra casa e, depois disso, encarei uma semana inteira só andando de Havaianas pra não piorar o quadro.

        Em minha cabeça veio a dúvida óbvia: será que andei demais? Pior que não, foram apenas umas poucas voltas e, paralelamente, sequer cogitei ter escolhido o sapato errado, afinal julguei-o o mais bem cotado para aquela missão.  Então, se não havia exagerado na quantidade de passos que dei, só uma coisa poderia ter acontecido: fui infeliz na escolha daquele par azul marinho de verniz, e aquelas bolhas doídas me sinalizavam o ponto final da antiga parceria.

       Foi imediata minha conclusão, pelo método de tentar enxergar adiante do que o cotidiano nos permite: nem tudo o que é confortável é sinônimo de agradável, bom ou merece ser mantido, necessariamente. Muitas vezes é tudo uma questão de costume ou de uma falsa percepção de que estamos protegidos sem percebermos os machucados escondidos. É a tão famosa zona de conforto que, ao mesmo tempo, nos atrai, mas também nos engana, pois impede voos mais ousados em direção a mundos e situações diversas. O agradável conjunto de ações, pensamentos e comportamentos a que estamos habituados e que nos blindam contra medos, riscos, ansiedades e angústias são como trilhas bem conhecidas pelas quais andamos e já sabemos onde dará, mesmo sabendo que nosso encontro será com dores. Que tal experimentar algo novo dentro dos limites da ética que cada qual adota para sua vida? Que tal descer em outras estações? Que tal sair da caverna? Que tal?

        Penso que a ideia de bem-estar e comodidade acaba sendo um tanto relativa, já que até sofrimentos a que estamos acostumados nos dão a falsa sensação de conforto. Atentar-se para outras formas de olhar a vida, atrever-se a andar por caminhos desconhecidos ou arriscar o novo nem sempre é prenúncio de bolhas doloridas, ao contrário, poderá nos tornar mais adaptáveis e hábeis na tarefa de solucionar outras dificuldades. Nosso leque de habilidades se amplia e talvez nossa biografia ou nosso livro de histórias possam ficar mais gordinhos.

       

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

 

                                                          

                             ESPELHO DA ALMA

            Não é de hoje que adoro metáforas. Elas condensam sentidos. Expressam muito significado com poucos recursos linguísticos. Dizem com outras palavras aquilo que com as palavras certas, às vezes, não conseguimos exprimir. Encurtam caminhos. Deixam as coisas subentendidas. É também a linguagem do inconsciente, porque expressa conteúdos latentes, como Freud teorizou. Usar metáforas me parece um bom exercício de retórica, com a vantagem de poder ser também uma ferramenta de reflexão.

        Hoje mesmo não pude deixar de exercitar meu talento para construir paralelos me aproveitando da cirurgia para retirada de catarata do olho da minha mãe, que vinha, há um bom tempo, enxergando tudo borrado. Pra começar, fiquei pensando naquela máxima popular de que os olhos são o espelho da alma e no porquê de esse problema de visão ser conhecido com o nome de catarata. Pra quê!!! Minha cabeça voou. Comecei pensando que catarata, pra mim, é uma água que não tem fim, que escorre em forma de avalanche, que faz barulho e respinga em quem está por perto. As mais de dez viagens que já fiz a Foz do Iguaçu não me deixam mentir. 

        Será que quem tem catarata nos olhos sofre do acúmulo de lágrima? Eis aqui uma comparação que acabei de inventar como desculpa pra filosofar.Teria minha mãe enfrentado as barras da vida tentando ser forte e, por dentro, segurando uma baita vontade de chorar? E daí chega um dia em que a alma dela endereça ao corpo (olho) um sintoma, na verdade um recado, que há tempos vinha tentando entregá-la dizendo algo como: - Que tal ver tudo de uma forma diferente? Então, será a catarata uma espécie de metáfora ou linguagem do distúrbio ocular? Terá sido uma forma de convite para enxergar tudo mais nitidamente, num sentido mais metafísico? 

        Quem sabe as perturbações que nos impedem de enxergar com os olhos do corpo revelem, simbolicamente, a dificuldade de vermos um outro lado da vida. Ou talvez tudo não passe mesmo de mera vontade minha de transformar em filosofia o que a vida traz.

        Alguém diria que sim, que tudo não passa de um romantismo bobo meu, pois todo mundo tem ou vai ter catarata um dia na vida e, portanto, nada a ver minhas analogias usando os males do corpo. Mas daí pergunto: todos nós não teríamos bons motivos para que uma catarata nos olhos nos servisse de convite a enxergar tudo com clareza com respeito à nossa jornada nesse mundo? Pra mim isso é cristalino, aliás, é o cristalino dos olhos a estrutura afetada na catarata...portanto, tudo se encaixa nessa minha lógica de sabedoria recém inventada! Dá pra afirmar que nem Freud enxergava tão bem seu próprio umbigo, sendo ele próprio quem defendeu a ideia dos sintomas físicos como recados do inconsciente.

        De qualquer modo, seja ou não a alma da minha mãe trazendo-lhe a catarata como linguagem para sugerir uma nova visão de mundo, a verdade é que sempre é bom tirar as vendas de nossos olhos internos e ver com mais nitidez as cores da nossa caminhada.

       

         

sexta-feira, 15 de outubro de 2021


         

 VERDADES POPULARES


        O senso comum é muito rico de 'verdades equivocadas', que vem da lenta passagem do tempo e acaba legitimando orientações genéricas que, no fundo, são rasas ou de pouca validade. Refiro-me aos ditos populares nascidos do caldeirão social e que funcionam como atalhos de pensamento, prontos para serem aplicados nas situações do cotidiano. Talvez a natural preguiça do cérebro humano explique a razão da existência de tais ideias automáticas. Mas, ao contrário de segui-los cegamente, prefiro refletir a respeito dos seus conteúdos, sem medo de que isso possa representar um ato de ir contra a maré. Detesto me sentir condicionada a agir ou pensar com base em comandos sociais vigentes sem ao menos questioná-los.

   Veja, por exemplo, a própria ideia de que o tempo é o senhor da razão e tudo cura. Na minha modesta opinião, isso é uma grande falácia, pois o tempo está longe de curar tudo. No máximo, acalma e suaviza, porque feridas antigas não deixam de existir só porque anos e anos já se passaram. Elas continuam ali, quietinhas no subsolo da mente, produzindo efeitos no inconsciente das pessoas e podem ser colocadas sob o holofote da consciência, e todo o seu potencial angustiante renasce de um minuto para outro. Portanto, acreditar que o tempo atua como lenitivo para dores não me parece a melhor saída. Bom mesmo é apostar em nossa capacidade de ressignificar os fatos.

    Outra mentira social com a qual não concordo é aquela melhor um pássaro na mão do que dois voando. Isso me traz a duvidosa ideia de que é possível ter garantias na vida, o que está em desacordo com a sua impermanência. Também me instiga a pensar que a ordem é nos contentarmos com pouco, só porque é mais palpável. Pois olha, às vezes o pássaro na mão pode ter garras afiadas e bico muito pontudo e daí nem é tão bom assim, sendo melhor que voe pra bem longe mesmo. Há inúmeros exemplos de que ter nada na mão é mais interessante, como um emprego ruim, um relacionamento ruim.

    E pra quem acha que Deus ajuda a quem cedo madruga, lamento informar que as coisas não são desse jeito. O que fica claro com essa frase é que, para prosperar, o ser humano precisa ralar, dar muito duro e que ninguém jamais será bem sucedido se não se sacrificar na corrida pelos sonhos. Definitivamente, não concordo que o sofrimento seja pré-requisito para a prosperidade. A gente tem mania de valorizar o que é difícil de conseguir, como se o merecimento só pudesse vir de sangue, suor e lágrimas. Além do mais, quanta gente rala de sol a sol e não sai do lugar? Assim como sempre temos notícia de gente que chega ao topo valendo-se de visões estratégicas e decisões acertadas, tal como uma jogada de mestre.

    Tem outra: minha mãe adora dizer que mente vazia é oficina do diabo. Nada a ver. Se esse decreto popular tivesse algum fundo de verdade não existiriam músicas new age, técnicas de mindfullness, aulas de meditação entre outros tantos caminhos para se chegar ao Nirvana. Mente vazia é a coisa mais deliciosa que existe. Não tem ansiedades, nem preocupações ou outras coisas que possam se transformar em somatizações. Queira Deus que eu consiga ficar mais vezes com a cabeça vazia e garanto que não existirá diabinho algum a se aproveitar da paz e do silêncio pra plantar maluquices na minha cabeça.

    Uma verdade que também é bem popular é essa: onde há fumaça, há fogo, mas sem chance de colar em mim. Se isso fosse certo, não existiria detetive e investigador. Bastava desconfiar de algum fato pra tomá-lo como verdade. No mínimo, tomar como fogo o que é apenas fumaça significa leviandade, porque estaria autorizado apontar o dedo sem provas. Pra mim, esse ditado demonstra como o povo é desconfiado e enxerga o mundo a partir daquilo que tem dentro de si mesmo. Além do mais, é a porta aberta para a imposição de rótulos indevidos e criação de injustiças.

    O antes tarde do que nunca é outra balela do cotidiano cultural, porque tem muita coisa que é bem melhor que nunca aconteça mesmo. Não casar nunca é bem melhor do que casar tarde com alguém que só trará dissabor e tristeza. Mudar-se para outra cidade é outro exemplo de um nunca melhor do que um tarde; eu mesma conheço um caso nesse sentido e olha que se tratava de uma sonhada mudança para uma praia do Nordeste, mas que só trouxe aborrecimento.

    Tem também o não deixe para amanhã aquilo que você pode fazer hoje. Não acredito nisso e que ninguém perca seu tempo tentando me convencer quanto à suposta verdade embutida nessa frase. É muito bom deixar pra amanhã aquilo que mesmo hoje se pode fazer. Talvez até esse seja o diferencial para fazer algo de melhor qualidade. Amanhã poderemos ter mais cabeça fria do que hoje, assim como maior tempo para reflexão sobre o problema. Amanhã também nossa ansiedade talvez possa dar uma trégua, nosso corpo esteja mais disposto ou de noite nosso inconsciente nos presenteie com um sonho revelador de um melhor caminho a tomar. Assim, procrastinar não é tão mal quanto parece e há vários estudos indicando que empurrar a tarefa pra mais tarde pode significar uma solução  mais criativa e um resultado mais positivo para uma questão.

    E quem acha que para bom entendedor, meia palavra basta, aí vai uma pergunta: quem é o bom entendedor? Ora, ninguém. Ninguém é capaz de avocar para si esse título, pois no dia a dia é muito comum ouvirmos uma coisa e entendermos outra bem diferente e isso independe de ser bom, inteligente ou atento. E se a comunicação for virtual, ainda, daí é que o problema potencializa. Tudo depende de como nossas referências internas costumam nos guiar para o entendimento do mundo. A percepção individual é como um molde prévio, uma janela, por meio da qual vemos tudo de uma maneira muito particular. Ninguém foge disso. Então, por favor, meu singelo conselho é: não dispensemos uma palavra inteira, porque ninguém é bom entendedor o bastante pra se comunicar pela metade!

    Pra terminar, mas sem esgotar essa brincadeira de desafiar as verdades populares, aquela que diz que cavalo dado não se olha os dentes também me parece uma grande mentira. Não há ninguém que em seu íntimo acredite ter tido alguma vantagem ao receber de graça um presente de grego ou um elefante branco sem utilidade. Sejamos sinceros e verdadeiros conosco e esta é, pra mim, a verdade das verdades.

 

 

domingo, 10 de outubro de 2021

 


 MULTIDÃO

        Mês passado consegui me dar de presente uma pequena aventurinha solo. Viajei. Fui pra praia. Nada demais, apenas uma experiência simbólica para que eu pudesse dizer que estava sozinha em alguma coordenada geográfica do mundo. Aqui pertinho. Pouca bagagem e só um dinheirinho para alguns deleites. Meu plano era não conversar com absolutamente ninguém, exceto o básico para sobreviver. Era tudo o que eu vinha querendo há tempos, estar só em qualquer lugar para desfrutar da minha própria companhia por uma semaninha.  O que de abundante eu levei foi a expectativa sobre como eu me sentiria. 

        Minha felicidade era tanta que, ao chegar no hotel, falei em voz alta dentro do aposento no décimo quarto andar de frente para o mar...Enfim, só! A hospedagem em grande estilo foi o único luxo do qual não prescindi.

        Tudo transcorreu bem naquele período. Passei dias maravilhosos. Me virei direitinho cumprindo meus planejamentos prévios. Almocei e jantei em silêncio, fui a lugares bacanas, tirei selfies. Também fiz bolha nos pés de tanto que andei de um lado pra outro. Que delícia foi depender só de mim. Descia para o café da manhã quando bem me aprouvesse. Negociava comigo mesma aonde ir e a que horas voltar. Tomava banho de madrugada com luz acesa e música alta. Até acordei várias noites às quatro, cinco da matina pra ficar um tempo na sacada olhando o oceano e escutando o barulho das ondas por um bom tempo. Foram inúmeras coisas que fiz sem a menor obrigação de avisar alguém ou explicar o motivo. A tal solitude é mesmo abençoada quando nos damos esse direito por opção.

        A ideia que eu tinha era me isolar de tudo e de todos, pra fazer uma espécie de balanço, o que até consegui. Mas... Rá!!! Quem disse que isso aconteceu durante todo o tempo? Num dos dias do meu retiro me vi andando descalça de manhã cedo na praia, focalizando na mente cada pessoa importante pra mim nessa vida. Para cada uma delas eu fazia uma descrição de como eu a sentia e o que eu planejava daqui para frente em sua companhia. Também firmei com cada qual o compromisso de tornar nosso relacionamento sempre melhor. Não escapou ninguém do meu monólogo interno. Foi como se eu tivesse convocado a presença de todos ali comigo. Aquela silenciosa dinâmica de grupo foi a prova de que ficar absolutamente só parece ser algo da ordem da ilusão.

    Num outro dia da viagem me peguei fazendo vídeo chamada pra casa, pra ver como tudo andava sem a minha presença, e em outro dia olhei vitrines escolhendo lembrancinhas pra levar, e em outro dia tirei fotos e compartilhei o que de bonito eu estava enxergando. Ficar sozinha é bom, mas gostoso mesmo é viver em matilha, em manada. Foi engraçado estar só e me perceber amarrada aos meus amores. A gente se afasta de todos mas leva cada um dentro do peito.

       Cheguei à conclusão de que pra onde eu for, haverá sempre lugar na bagagem pra levar a gentarada toda, porque simplesmente não consigo abdicar, nem em pensamento, dessas joias que vivem em mim e com quem compartilho histórias.




sexta-feira, 8 de outubro de 2021

 

 REMÉDIOS JURÍDICOS

        Normalmente, as doenças do corpo são tratadas pelos médicos, os profissionais habituados a indicar cloridratos, fumaratos, propionatos disso e daquilo. São inúmeros os medicamentos à disposição das pessoas para a cura dos mais diversos males e o que é mais bonito, na minha opinião, é saber indicar corretamente a fórmula adequada para eliminar as enfermidades.

        Todos os profissionais, de certa forma, atuam como médicos de problemas específicos. Simploriamente falando, o sapateiro é o médico dos sapatos. Está habilitado para a cura das marcas das caminhadas, usando fios mais resistentes e cola, sabendo devolver-lhes o vigor e a resistência, assim como lhes dar maior longevidade. Por sua vez, os cozinheiros são os médicos dos famintos. Tratam diretamente o órgão afetado, o estômago. Sabem elaborar o remédio bem temperadinho para o mal estar da fome. Uma boa dose de arroz com feijão, bife e batata frita é muito eficaz contra a sensação de buraco na barriga, lembrando que comidinha feita com amor potencializa o efeito dando muito resultado, porque vai direto ao coração, fazendo-o bater com mais alegria. Os psicólogos são os médicos da alma e sabem administrar muito bem as poções de amparo e empatia para a cura das angústias. E os costureiros são os médicos das roupas e os cabeleireiros são os médicos dos cabelos e a lista é quase infinita.

        Com os advogados a coisa não é diferente e é o meu dia a dia que me autoriza a pensar que somos nós, os causídicos, os médicos para a cura de uma gama variada de conflitos, as enfermidades que afetam a paz e o equilíbrio social. Por exemplo, uma Ação Civil Pública faz muito bem contra danos morais e patrimoniais causados ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio histórico e cultural, entre outros direitos difusos e coletivos. Está escrito na bula, digo, na lei, sendo uma boa alternativa para proteger a saúde de todos e, às vezes, com ação profilática.

        Já para cobrar dívidas com maior rapidez, nada melhor do que a Ação Monitória, uma espécie de atalho judicial que costuma ser bem tolerado. É tiro e queda, tal como uma injeção bastante eficaz contra essa dor de cabeça que é não nos pagarem o que nos devem. Tem ainda a Ação de Dano Infecto, como o próprio nome já diz, um fármaco jurídico recomendado para impedir infecções indevidas na nossa residência, como barulhos excessivos, desordens, criação de animais, armazenamento de produtos perigosos, por exemplo.

        Muito comuns são também aquelas ações judiciais que a própria lei dá o nome de "remédios constitucionais", como o mandado de segurança e o habeas corpus, pra citar apenas os dois casos mais comuns no dia a dia dos hospitais, digo, tribunais. São bem potentes e servem para a cura urgente de enfermidades importantes, como violação a direitos por autoridades que deveriam cuidar de nós, ou violação ao nosso precioso direito à liberdade, respectivamente. O efeito costuma ser rápido e indolor, com bons prognósticos quanto ao restabelecimento do estado do paciente. Sim, a própria lei também denomina "pacientes" os autores dessas ações judiciais.

        E quando alguém quiser tirar algo do nós para pagar uma dívida que não nos pertence, existe uma medicação específica chamada embargos de terceiro. Ajuda muito para impedir o ataque aos nossos bens, quadro, aliás, que é muito frequente. Agora, para o caso de um empregado, que se cansou trabalhando e não recebeu a devida remuneração do seu empregador, nada melhor do que uma reclamatória trabalhista, com boas chances de reversão dos sintomas de injustiça. Só é preciso saber enfrentar certo grau de aperto no peito como efeito colateral. 

        Enfim, são inúmeras as doenças nascidas no corpo social, assim como são muitos os tratamentos que visam ao seu restabelecimento. E são os advogados os profissionais treinados para socorrer e curar as feridas criadas pelos desvios que as relações sociais impõem ao nosso cotidiano. A lista é longa, talvez infinita, tanto quanto possa chegar a nossa imaginação.


quarta-feira, 29 de setembro de 2021

 
 QUEBRADA AO MEIO

       

        Quando eu tinha uns vinte anos de idade, época em que cursava Geologia na universidade, tive de fazer uma visita numa mina de extração de basalto, rocha vulcânica, principal constituinte da crosta oceânica, muito usada para a fabricação de asfalto. O basalto é o produto da lenta fusão parcial do manto superior terrestre que, depois de milênios, quando totalmente resfriado, torna-se muito duro e compacto. Só dinamite mesmo para extraí-lo do morro.


        Na ocasião dessa aula prática, presenciei uma situação bastante curiosa, ao menos até aquele momento da minha vida: um peão martelava uma cunha pontiaguda bem no centro de um bloco rochoso retangular de cerca de dois metros cúbicos de tamanho, bastante pesado e coeso. Ficou um bom tempo executando esse movimento repetitivo sob os olhares curiosos da turma, para ver o que iria acontecer. A intenção era partir ao meio o fragmento, o que, num primeiro momento, parecia impossível, já que nem era empregada tanta força assim, mas logo me veio uma coisa ensinada pelo meu pai: para o êxito de algumas tarefas, é o jeito que conta mais. Ao final de uns quinze minutos de marteladas ininterruptas, aquela porção de rocha, que até então só havia permitido a formação de um pequeno furo no seu centro, partiu-se perfeitamente ao meio, tal como um ato de rendição frente à insistência das batidas. 


        O espanto foi geral. Como era possível dividir perfeitamente ao meio um bloco tão duro e compacto como quem divide um pedaço de bolo ou uma laranja? E ainda por cima com apenas duas pequenas ferramentas manejadas pela mão de um único homem? O aprendizado ali se destinava a demonstrar a possibilidade de uma unidade rochosa, aparentemente resistente a tudo, ceder frente a movimentos corretos e insistentes, bem como mostrar que em apenas um quarto de hora fora possível desfazer o que a natureza levou milhares de anos para formar. Mas minha cabeça foi mais longe, pois havia algo de filosófico embutido naquela cena, ainda que eu não conseguisse vislumbrar naquela altura da minha vida.


    Anos mais tarde é que me vi fazendo um paralelo entre aquela batalha perdida pelo basalto e algumas más ideias que nos visitam repetidamente ao longo da vida e que são como uma cunha pontuda martelando a mente. Não raras vezes damos permissão para reiterados medos, aflições, crenças e pensamentos nefastos que nos afetam e comprometem nossa integridade mental, sem que tenhamos consciência deles. Daí não será por acaso que em um dado momento iremos sucumbir, tal como rocha partida ao meio e num segundo, após a milésima martelada sofrida. Se uma coisa inorgânica, bem formada, compacta, durável, aparentemente eterna como aquele basalto parte-se ao meio, imagino o que constantes ideias fixas podem causar à nossa inteireza. Claro que tal comparação pode até parecer meio infeliz ou nada a ver, mas serve como ponto de partida para pensar que podemos evitar dissociações ou rupturas internas motivadas por cismas ou obstinações sem sentido, tipo culpas inúteis, melancolias sem sentido, raivas, angústias desnecessárias.


        Aquela experiência acadêmica me valeu como metáfora para tentar domar meus pensamentos, de forma que a uso para priorizar aqueles de maior qualidade e que possibilitem me manter íntegra e incólume e impeçam uma fissura interna de um instante para outro.



sexta-feira, 24 de setembro de 2021

 


 

BAILE DE DEBUTANTE


Eis que chega o dia dela, doce e bela Cinderela

Moça nova e tão vibrante, nossa amada debutante

Tem um cheiro delicado como sopro de lavanda

Muito linda e amorosa, nossa amada filha Amanda

 

Era noite num agosto a surgir seu lindo rosto

Frio de inverno na varanda e, que surpresa, veio Amanda

Brilho quente em teu olhar e delicada como a flor

Filha linda e adorada, como é grande o nosso amor

 

Então cresce a menininha, nossa amada Amadinha

Com um brilho diferente e uma alma independente

Mesmo forte e decidida, também age com doçura

Responsável, firme e justa, mas sua força é a ternura

 

Movimento e euforia nessa festa de alegria

Muito som nessa ciranda, vem dançar, ó doce Amanda

Nessa data de glamour, muito brilho e cantoria

Nossa moça é a primeira do desfile da magia

 

Quanto amor no coração quanta luz no teu olhar

Amanda é ela: a que veio pra encantar

Te agradeço por tua vida, filha amada sorridente

Só Deus mesmo pra acertar na escolha do presente

 

Nessa noite especial, hoje é ela a que manda

Nossa linda e meiga moça

Nossa amada filha Amanda

    



terça-feira, 21 de setembro de 2021

 
       

TEMPO PRESENTE

            Se tem duas coisas que brigam (ou brigavam) dentro de mim, dois titãs que não se conciliam, são meu passado e meu futuro. Querem me dominar. Velhas histórias ruins, feridas, memórias dolorosas, banzos e ressentimentos vindos do meu ontem costumam rondar a minha cabeça. Todo esse acervo íntimo, cuja importância devia se limitar à construção da pessoa que eu me tornei, costuma me visitar com uma frequência indesejada, eu diria, me atrapalhando e não obedecendo às minhas ordens pra voltar ao arquivo de onde saiu. Como é atrevido esse meu pretérito não tão perfeito! Parece ter vida própria. Vem quando quer, faz estrago e promete que sempre vai voltar. Ou sou eu mesma quem esquece de impedir a sua passagem lá das catacumbas da minha mente. 

            Do outro lado, e com a mesma fúria, aparece o meu amanhã, isto é, fantasias tão reais quanto incertas, mas com um poder danado de assombrar meus pensamentos. Parecem querer antecipar um script já definido, ainda que absolutamente irreal, me ameaçando sempre com a imposição de um cenário de vida perturbador. Pulula, em minha cabeça barulhenta, essa briga de espadas. Meu presente, atônico frente a tais invasões, e meio sem ação, acaba ficando de testemunha desse embate nada profícuo.

            Mas isso vem mudando! Esses dois braçudos estão perdendo força para a capacidade que descobri que tenho de fazer do presente o comandante do meu hoje. Se pensamentos vindos de lá detrás quiserem me importunar, ou vindos de lá adiante só pra me assustar...então, fora daqui os dois, passado e futuro! Aliás, vocês nem existem! Vocês não passam de uns fantasminhas sem poder! Parem de querer que eu os veja como concretos e fortes o bastante para me desequilibrar! Comportem-se! Voltem aos seus devidos lugares, vocês não têm mais permissão pra aterrorizar minha paz. Só venham quando convocados, ok? E neste caso, coloquem nas suas bagagens somente coisas boas: lembranças felizes que me façam sorrir e planos construídos em parceria com o bem estar. Do contrário, ausentem-se, porque não serão bem vindos.

              Quanto ao meu presente, esse sim é que merece cuidado e atenção. É ele quem atesta minha condição de pessoa viva e me permite extrair do mundo tudo que é bom, a exemplo de me colocar em retiro geral para um profundo estado de recolhimento e introspecção num lugar qualquer do mundo. Sim, neste momento estou fora do campo de visão de todos. Me ausento momentaneamente de tudo, do trabalho, das obrigações, da casa, da rotina, da família. Minha vida de todo dia está em stand by. Estamos aqui, só eu e o meu agora, em meio a outras paisagens e barulhos, dialogando sem pressa ou interrupções. O passado já passou, o futuro nem chegou...o meu tempo está aí... só meu presente é bem vindo.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

                           AMOR



     A vida sempre nos presenteia com acontecimentos inesperados, como encontros envolvendo pessoas especiais, da mesma forma como viagens a lugares marcantes e leitura de livros inspiradores. 

    Quanto às viagens, algumas delas nos abastecem com tanta alegria que por algum tempo desejamos voltar àquele destino ou até morar lá para sempre, o que, na verdade, indica a ideia de repetir cada segundo dos momentos vividos fora de casa. Esse é o caso da última viagem que fiz para Roma, pra citar apenas um entre alguns exemplos.

     Em relação aos livros, muitos deles parecem um bálsamo depois que os lemos, por nos despertarem ricas reflexões e mudarem nosso olhar para alguma questão, às vezes mesmo que o enredo não passe de um açucarado romance, como foi o caso pra mim de "O amor nos tempos do cólera", de Gabriel García Márquez, também pra citar um entre vários exemplos. 

    Mas é das pessoas especiais que eu pretendo falar um pouco mais. A todo momento elas cruzam nosso caminho e funcionam como um portal nos convidando a viver situações jamais imaginadas e a aprender coisas que nunca suspeitávamos a respeito de nós mesmos, ainda que não o façam de modo explícito ou consciente. O saldo positivo de tais encontros é uma parte do nosso desconhecido Eu se apresentando a nós e nos guiando o olhar para diferentes caminhos ou indicando que há muitas janelas para apreciar.

    Pode ser que estas pessoas que atravessam nossa estrada só o sejam especiais durante algum tempo, como na adolescência, e porque assim as qualificamos, pois elas podem vir até nós portando a chave certa para abrir alguma porta emperrada do nosso íntimo. Dizendo de outro jeito, é possível que a nossa lente é que as constitua de alguma capacidade em virtude de nossas carências, ou seja, nós é que damos importância a elas, sem olvidar que a mesma coisa acontece para elas em relação a nós. Faz parte da vida de qualquer ser humano estes obséquios mútuos, ao que damos o nome de "histórias de amor", aquilo que os poetas chamam de mensageiros a refrescar nosso peito. Pra mim, é importante que cada qual dos envolvidos na trama romântica jamais esqueça de cultivar o legado em seu coração.

    Como viagens e livros, é fato que algumas pessoas passam por nós apenas e tão somente para abrir portas secretas mesmo ou destravar cadeados, fazer ventanias, desmanchar nosso cabelo, alagar nossos olhos, levantar poeira...estas, assim como vêm, se vão sem esquentar lugar!! Há outras, no entanto, que vêm e permanecem, mantendo sempre sólido o chão por onde damos passos seguros e construímos castelos firmes...são como terras férteis para o plantio de sementes ou páginas em branco onde escrevemos a vida a quatro mãos. Estas não são meros encontros...são o amor em sua plenitude e, no meu caso, só há um exemplo a citar.



domingo, 27 de junho de 2021

 POUCO OU MUITO


            
             "Pouco" é uma palavra que significa insuficiência, é um advérbio de intensidade com o qual se pode brincar e dizer muito. Aliás, o "muito" é justamente o seu contrário, também é um advérbio e quer dizer bastante.

            Misturando isso tudo, dá pra usar o "pouco" e o "muito" e estabelecer vários graus de quantidade de qualquer coisa, algo como uma espécie de gradação ou de nuances. Vejamos:

             "Não pouco" remete ao "muito", da mesma forma que o "não muito" remete ao "pouco". Por exemplo, se digo que sinto "não pouco" amor por alguém, acabo expressando melhor que amo muito essa pessoa, talvez uma forma de manobrar a língua para tornar mais claro o conteúdo da mensagem. Parece até que falar do sentimento de um modo direto não exprime tão bem o que se quer dizer. Ao contrário, se eu digo que amo "não muito" certa pessoa, acabo dizendo que a amo pouco, e daí o eufemismo serve para amaciar a dureza do recado. De qualquer forma, é interessante observar estes artifícios linguísticos para modular o que se passa no coração.

             Tem também o "muito pouco", que usamos quando queremos enfatizar o pouco, assim como o "pouco muito", quando pretendemos dar ênfase ao muito. Olha só: se digo que estou "muito pouco" satisfeita com alguma coisa é porque estou pouco satisfeita; agora, se entendo que uma pessoa é um "pouco muito" insistente é porque entendo que ela devia dar uma folga pra mim. Nestes casos, o uso dos contrários ao mesmo tempo não se excluem, mas sim traduzem melhor a intenção que se quer demonstrar. Complicado ou nem tanto? Confuso, talvez, mas na prática dá pra ter uma boa ideia de tudo isso. Eu só não queria ter que explicar isso para um estrangeiro!

       Tem mais. É o caso do "pois sim", que quer dizer "não" e do "pois não", que quer dizer "sim". Fazer um pedido a alguém e receber como resposta um "pois não", significa aceitação, abertura, possibilidade. Ao contrário, receber como resposta de alguém um "pois sim",  significa um sonoro não, meio irônico até, na minha opinião. Millôr Fernandes foi quem destacou essa dualidade divertida.

       É tudo uma questão de saber quando e como usar cada uma das expressões, lembrando que o sentido literal delas é o que menos importa. Aliás, não há quase nada literal neste mundo, pois tudo é questão de interpretação e significado. Na dúvida, pra não errar, falemos pouco de muitas coisas e muito de poucas.

terça-feira, 22 de junho de 2021

 


JUSTIÇA SEJA FEITA


    Advogada há quase trinta anos, meu universo diário envolve uma montanha de processos, por meio dos quais são levados ao Judiciário conflitos, debates, razões, contrarrazões etc., além de audiências todos os dias. Já me acostumei com a seriedade da coisa e com as caras sisudas dos que participam deste ato, como juízes, advogados, partes e testemunhas.

     Eu mesma fico séria e faço meu trabalho sem pretensão alguma de agradar a ninguém, exceto àquele cujos interesses estão em minhas mãos, obviamente. O ambiente jurídico é sério porque precisa haver concentração pra não se perder de vista os trilhos da lei e seus inúmeros parágrafos, incisos, alíneas etc., que são a baliza da atuação de todos, tal como um mecanismo de proteção invisível contra excessos e abusos.

    Mas, dias atrás, numa audiência, inicio minha participação no ato encaixada no usual estilo cara séria. Esperava também aquele olhar carrancudo do juiz, junto com olheiras e mal humor. Que nada! Era simpático e estava feliz da vida com sua cuia de chimarrão fumegando, recostado em sua poltrona e com espírito leve e cheio dos chistes, o que não lhe impediu de conduzir de forma impecável o ato. Puxa, que beleza! Pensei. Uma abertura muito bem vinda nesse meio tão cinzento.

   Só que o máximo daquele juiz ainda viria e, melhor, dirigido à minha pessoa. Fez-me uma "acusação" que, no mínimo, me agradou. De forma respeitosa disse: - A senhora é recém formada ou está enganando bem? Tem cara de menina, completou. Nossa! Um pouco atrevido, eu achei, mas no fundo eu gostei. 

   - Ahhh...ganhei a causa, digo, o dia!!! Respondi. Afinal, quem, na minha condição, não gostaria de ser confundido com alguém na casa dos vinte e poucos anos?

    A conclusão óbvia parece ser a de que o único veredito cabível nesse caso é o de que ninguém está protegido contra um elogio.

terça-feira, 1 de junho de 2021

 


VIVENDO E PONTUANDO


        Desde os meus primeiros tempos de escola sempre fui muito boa em Língua Portuguesa e talvez por isso é que meu ouvido costuma estalar sempre que ouço uma agressão ao nosso vernáculo. Também acho que é por isso que, mais do que falar e escrever corretamente, gosto de brincar com a linguagem, o que faço dando passagem às minhas ideias. Pois então, se viver é uma arte, penso que usar bem a pontuação nessa experiência pode ser muito útil para os rumos que tomamos. Vamos lá, então, fazer um jogo de paralelos entre o viver e o pontuar:

        Começando pelas vírgulas, como são importantes estes sinais! Parece que, como pedrinhas, colocam-se no chão, bem na nossa frente, nos forçando a caminhar mais devagar e pensar no próximo passo ou na próxima palavra a dizer. Elas impõem uma pausa para o respiro, no sentido literal e metafórico mesmo. É graças às vírgulas que ganhamos um tempinho pra repensar e mudar de ideia quanto à continuidade do nosso discurso, assim evitando que venha pra fora aquele pensamento prestes a irromper boca afora com potencial de causar estragos irreversíveis. É com a ajuda das vírgulas que podemos dominar um pouco nossa ansiedade e assim nos fazer coerentes. Poderia dizer então que vírgulas e impulsividade tenham tudo a ver.

        Aparentado delas, tem o combo ponto e vírgula, essa duplinha que indica uma pausa um pouco mais longa nos nossos dias. Mais do que um respiro, o ponto e vírgula indica a necessidade de um fôlego, um “break” maior do que a vírgula e menor do que o ponto final, uma espécie de parada no trajeto pra dar aquela esticada nas pernas antes de seguir viagem; é bem o caso daquelas situações em que a gente precisa de um intervalo maior pra repensar ou recarregar as energias, sem lançar mão do ponto final, mais drástico e definitivo. Daí a gente continua na mesma rota, só que prestando mais atenção. Ninguém, na realidade, consegue viver intensamente sem pausas mais demoradas pra oxigenar relações já consolidadas ou rever hábitos cristalizados e pensamentos automáticos, reformular pactos ou até entabular novos e melhores planos de vida.

         Os pontos de exclamação também têm sua importância. São eles os representantes da nossa capacidade de nos surpreender com o belo, o sensível, a surpresa, o suspiro, o prazer. Eles estão nos nossos queixos caídos frente a injustiças, perversidades, intolerâncias. Porém, precisam ser bem utilizados para que não sejam manejados como indicadores de avaliações superficiais. Basta! O mundo já está cheio de olhares e outros gestos julgadores, de modo que não precisamos abrir mais uma via de acesso a repreensões rasas e impensadas. Usemos os pontos de exclamação para elevação da beleza que há em todos os lugares.

E pra quem pensa que pontos de interrogação são inúteis vai aí uma avaliação pretensiosa: eles são a própria dúvida pairando em nosso linguajar. Já até ouvi que o que move o mundo são as perguntas e não as respostas. De fato, o que faz a roda girar não é o “status quo” e sim os porquês tão positivamente enxeridos. Tenho lá minhas dúvidas quanto a quem vive imerso em certezas. Provavelmente, está morto em vida. A própria ciência avançou muito a partir da dúvida a ponto de dar base ao paradigma ocidental de pensamento com as interrogações nos recônditos do cérebro do filósofo Descartes. Perguntar e questionar levam a novas descobertas.

   Tem também o travessão, que serve pra indicar a fala de alguém em um diálogo. Como é importante dialogar, expor o pensamento, mostrar a opinião que se tem sobre o que quer que seja. Como é bom ser ouvido em qualquer contexto ou circunstância. Eu vejo o travessão como o dedo levantado indicando passagem à ideia, ali quietinha, só esperando o momento certo pra aparecer no discurso. O travessão é – ou deveria ser – o silêncio a todos imposto para aquele que pede a palavra. É o puro símbolo do respeito e até da coragem de dizer o que se pensa.

E que tal os dois pontos? Estes são como os demonstradores que trazem numa bandeja a prova dos fatos. São como um portão que se abre para mostrar o que acabou de ser mencionado. Eles são o “quer ver só?” ou o “tá sentado?” ou qualquer outra expressão que anuncie uma explicação complementar que vem depois do discurso recém-feito. Os dois pontos podem, igualmente, indicar a iminência de uma tentativa de convencimento do interlocutor a respeito de algo e é por isso que devem ser usados com responsabilidade. São, pra mim, como um aviso de que algo de impacto será dito, talvez até um “quer mesmo saber?”. Recomendo, pois, o uso dos dois pontos somente quando houver muita certeza quanto ao conteúdo do que será dito, pois tem coisas que não tem como  consertar, como as palavras lançadas.

   E as aspas? Muito apropriadas na linguagem e na convivência. Elas nos resguardam da autoria de uma besteira, pois indicam que estamos apenas reproduzindo o que alguém falou antes. Ao mesmo tempo são o puro respeito às ideias dos outros. As aspas são aquelas duas asinhas no início e no fim da frase que não nos compromete quanto ao conteúdo do que dizemos. São elas também que nos impõem o respeito aos insights alheios e mostram como é elegante dar o crédito de uma boa ideia ao seu verdadeiro dono. Algumas vezes são usadas para indicar a existência de ironia no falatório, algo que fica bem claro quando mexemos os dedinhos ao mesmo tempo em que falamos e aí cumprem uma função de dito pelo não dito. Desse modo, as aspas, pra mim, parecem dois anjinhos colocando em bolhas o que sai de nossas bocas.

Quase ia esquecendo das reticências, aqueles três pontinhos em fila indiana que servem para sugerir uma ideia sem dizê-la de modo expresso, mas embutindo-a na frase e tornando-a subentendida. As reticências ocupam o lugar de um não dito e é bem por isso que, às vezes, são empregadas com a má intenção de aplicar venenos. Sim, há quem se esconda por detrás de insinuações, mas nesse caso acaba se revelando um covarde sem peito pra completar seu pensamento. Acho bem melhor usar as três simpáticas bolinhas como convite para dar um sentido positivo a interpretações. Pra que plantar discórdias né? Mas se detectarmos tais maldades não fiquemos chateados, afinal, enquanto a caravana passa...

E pra finalizar, óbvio, tem o ponto final, indispensável em nossas vidas. Acho até que merecia um texto único em sua homenagem. O ponto final é “a” pontuação por excelência. É com o uso dele que impedimos a continuidade do ruim e permitimos a chegada do novo. Sem o ponto final, dores se perpetuam sem necessidade. O ponto final é o representante maior da atitude, da decisão num formatinho pequeno, mas com poder gigantesco. Engraçada a insignificância desse símbolo, um mero pontinho quase imperceptível no final da frase e aí me pego pensando que a questão mais importante talvez seja mesmo a sua função relacionada à aceitação de um fim, quem sabe mais fácil do que possa parecer.

sábado, 23 de janeiro de 2021

    

 ILUSÕES


    Todo mundo já acreditou em Papai Noel, coelhinho da Páscoa, príncipes e princesas e foi bem feliz com tudo isso. São mesmo ilusões deliciosas porque nos conectam à felicidade, já tão cedo ameaçada pela angústia tipicamente humana. A
contece com todo mundo, mas ninguém pira ao saber que tudo não passa de fantasia.

    Quero dizer que a gente sobrevive ao descobrir truque artificiais para fortalecimento da ideologia do dinheiro e acúmulo de riquezas por capitalistas convictos e comerciantes ávidos de lucro. Céus, eram meus pais que compravam bonecas, panelinhas e chocolates pra me fazer feliz. Quanto aos contos de fadas, o príncipe era só uma projeção do meu ideal de felicidade eterna. Jamais apareceria o cavaleiro de cabelo bem cortado, ajoelhado e com flor entre os dentes, bonito e cheiroso, vindo de um castelo num reino distante para me desposar e me amar para todo o sempre.

    A questão é que outras tantas ilusões de peso ao longo da vida também costumam desabar. No meu caso, por exemplo, já acreditei que o sim do casamento perante o padre era eterno e que a aliança no dedo simbolizava fidelidade e respeito de um para o outro. Sequer cogitava que essas promessas devessem ser realizadas individualmente em primeiríssimo lugar, algo como "prometo ser fiel aos meus desejos e me respeitar por todos os dias da minha vida". Essa desilusão até que tem seu lado positivo, pois me permitiu saber que o amor a si próprio que é o primeiro passo para tudo.

    Também acreditei que meus pais eram perfeitos e até sábios sobre todas as coisas da vida, pensando, inclusive, que eu preenchia o seu mundo e era absolutamente tudo pra eles. Não percebia que tinham suas demandas pessoais e eram apenas humanos, imperfeitos e em busca de amor ou de algo que nem eles mesmos sabiam. Desiludi-me quando os vi tão frágeis e imaturos quanto eu ou quando vi que experimentavam dificuldades na superação de seus sofrimentos e dúvidas. Chegou a doer meu coração quando deixaram de me servir de modelos. Mas tudo bem...eles nunca esconderam de mim suas fragilidades, eu é que fracassei na tentativa de vestir-lhes a capa de super heróis.

    Acreditei que o ser humano só pode ser bom e que seu lado perverso não existia, sem jamais ter imaginado que este é inerente à condição humana e por isso deve ser incorporado e... sem problemas. Assumir o lado sombrio da personalidade nos capacita para inúmeras batalhas, porque nos torna inteiros.

    Já tive a crença de que tinha o controle de tudo, especialmente, de mim mesma, afinal eu havia aprendido na escola que a razão me diferenciava dos animais e me habilitava a tomar decisões. O "penso, logo existo" era a explicação. Descubro então que não controlo coisa alguma, ao contrário, eu é que sou controlada por forças internas da minha própria psique. Saldo positivo aqui também, pois é libertador saber que a impermanência da vida não se sujeita à racionalidade humana, tão fraca frente às nossas pulsões naturais. O ser humano não é nem senhor de si mesmo, como já disse um tal de Freud.

    Já acreditei que Deus existe como guia para apontar os erros e punir o ser humano, tão pretensamente perfeito, sempre que ultrapassasse a linha delimitada pela moral, pela cultura. Quanta ingenuidade! Venho descobrindo outro Deus, mais cósmico e universal, que não manda pragas para a humanidade, porque ela própria é quem causa os desequilíbrios sofridos no mundo e na natureza. Passei a ver tudo como a energia equilibradora do universo, a força geral dos movimentos, a homeostase dos sistemas. Esta foi "a" desilusão pra mim! Posso dizer que todas essas ilusões morreram e outras tantas vêm agonizando nessa minha cabecinha de ser pensante.

    Enfim, cheguei até aqui com inúmeras crenças abaladas e até destruídas. Lógico, foram todas importantes, fundamentais eu diria. Serviram pra me construir e me dar um chão para que eu pudesse tomar impulso para voos mais altos ou mudança de rotas. Hoje consigo lidar bem com todas elas.

       Ora, mas por que desfazer-se de tantas ilusões, se isso dói tanto? Porque acima de tudo a desilusão faz a gente crescer. Simples assim.