sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

 COMPRA-SE UMA ILUSÃO

            Eu era pequena, mas lembro vividamente de um livro comprado pelos meus pais. Chamava-se "A roupa nova do rei", de Hans Christian Andersen. Resumidamente, o conto falava de um rei ludibriado por dois vigaristas que se passaram por tecelões, vendendo a ele uma roupa especial. Eles enganaram o rei afirmando que somente pessoas inteligentes poderiam enxergar a peça.

            Na verdade, não havia roupa alguma. Os trapaceiros inventaram a farsa, encenando com mímicas como se estivessem vestindo a autoridade, usando gestos e movimentos, mas na verdade não havia nada. O rei acreditou em tudo e saiu em procissão pela cidade exibindo sua nova e suposta aquisição. Na verdade estava nu, mas caminhava todo orgulhoso.

            Acreditar em algo é mesmo coisa muito forte. É fazer da ilusão uma verdade. Quem acredita em algo constrói uma realidade concreta dentro da própria cabeça e a fé está aí para confirmar esta afirmação. A mentira também é uma prova de que realidades podem ser fabricadas, porém, neste caso, mediante manipulação de mentes inocentes. É por isso que quem diz que a realidade é uma só nem sabe que está cometendo o maior equívoco. 

            Como na estória do conto do rei, toda vez que eu compro uma roupa, um sapato ou qualquer coisa, tenho a mais absoluta convicção de que o que estou comprando é uma ilusão. A ilusão de parecer mais elegante, bonita, alta, feliz, magra, ou qualquer outra coisa. Daí uma rápida olhada em meu armário abarrotado até me assusta, uma vez que revela quanta ilusão eu já comprei.

            Na verdade, o que compramos não é uma calça, uma camiseta ou um sapato novos, mas uma nova versão de nós mesmos. A renovação do guarda-roupa parece ser um caminho ingênuo a ajudar no surgimento de um novo "eu", ainda que temporário.

            Pequenas ilusões de vez em quando não fazem mal; são até terapêuticas, porque promovem uma sensação leve de mudança no sex appeal. No entanto, é crucial reconhecer que se trata de um autoengano inofensivo. Caso contrário, a criatura pode começar a viver em um mundo paralelo de fantasias, perdendo sua essência e saindo do seu próprio eixo.

            Tudo isso serve, na verdade, para dizer que vivemos todos imersos num universo de ilusões, seja sobre nós mesmos, nossas relações, vivências, medos e outros tantos aspectos. Ainda bem que somos seres dotados desta potencialidade, pois a vida não seria possível sem ilusões e fantasias, dado que a realidade nua e crua é insuportável.


quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

 PESSOAS DECENTES


            Dei-me de presente, dias atrás, uma tarde na cafeteira dentro da livraria que fica num shopping da cidade. Pedi meu Masala Chai pelando, apesar do bafo de calor infernal lá fora. Muito embora eu tenha esquecido meus óculos em casa, ainda assim tentei ler algo. Escolhi um livro com letras grandes para facilitar. Mas não deu, não consegui lera nada, mesmo apertando os olhos e esticando os braços. Isso me lembra o meu pai que dizia sofrer de braços curtos. O negócio é que, daqui para frente não há mais a possibilidade de eu dispensar lentes para minhas leitura!

            Entrei definitivamente na fase em que os óculos são tão indispensáveis quanto a carteira de dinheiro, o celular e os analgésicos para aquelas dores de cabeça inoportunas. Só o que me restou foi ficar olhando para aquelas prateleiras recheadas de livros colados uns aos outros, do chão ao teto, em frente à mesa em que eu havia me colocado. Era um paredão de livro que até me ocorreu de pensar que a era dos e-books talvez não tenha vingado tanto, mas não, eu é que continuo no time dos que gostam de cheirar livros, rabiscá-los, sublinhá-los.

            Nessa de focar o olhar para aquela infinidade de obras, uma em especial me chamou a atenção. Seu título era 'Pessoas Decentes', do cubano Leonardo Padura, dando o start para a minha imaginação trabalhar em busca do que ele trataria. Teria um cunho filosófico, histórico, policial? Falaria de política indecente, sociedade indecente, moral indecente? Independentemente disso, o que é ser decente, para começar?

            A obviedade me dizia que o autor buscava questionar ironicamente o conceito de decência, mas sob qual ângulo de análise? Uma rápida pesquisa na internet indicou uma trama fictícia, mas com um pano de fundo real, que é a prostituição como ganha-pão da vida, sob o viés de que se pode ser decente ou indecente de várias maneiras, sem que se precise adotar a moral vigente como farol de conduta. Para o autor, indecente é a condição de vida que obriga à prostituição e não esta por si só.

            Eu pensava que era decente por pagar meus impostos em dia, não fazer mal a ninguém, cumprir minhas obrigações e promessas, não explorar ninguém, não ofender a ninguém, não cutucar ninguém. Sob este prisma sou decente. Resolvi ir ao dicionário, que me prestou o seguinte esclarecimento sobre o significado de decência: "que está em conformidade com os padrões morais e éticos da sociedade; digno, correto, decoroso, honesto". Ora, defina digno, correto, decoroso, honesto...diria alguém de mente mais aberta. Isso já mostra que o significado patina.

            A concepção sobre dignidade, honradez, decoro e honestidade é móvel, porque ligada a referências sociais que, por sua vez, são transitórias ou bem particulares. Começo então a desconfiar que não sou decente, pois não quero me conformar com padrões morais sufocantes formulados em épocas remotas. Não quero replicar de forma automática comandos gerais só porque ainda vigentes, mas sem correspondência com o espírito crítico que paira sobre o meu momento histórico. 

            Também não quero me encaixar em regras obsoletas e sem sentido sem ao menos questioná-las. Não quero seguir o que um dia outros, antes de mim, entenderam como correto ou decoroso na época deles, em que a sociedade era diferente. Não quero permanecer fixada em estatutos e diretrizes sociais ultrapassadas com potencial gerador de segregação num tempo em que tudo já se tornou diferente do que passou.

            Partindo desse pensamento, ouso afirmar que quero albergar uma alma indecente, revolucionária e transgressora, pois para mim os padrões morais são como gaiolas mentais, verdadeiras cordas ocultas amarradas em nós e forjadora de culpa e sentimento de inferioridade. 

            Culpa, porque se você, supostamente, está fora do padrão, acaba até achando que merece alguma punição, inconscientemente. Basta um olhar de desdém de alguém que se gaba por seu comportamento dito decente para que a culpa crie raízes em nossa cabeça. E sentimento de inferioridade porque, de algum modo, você será induzido pela massa a se sentir aquém do ideal de comportamento social e cultural em vigor.

            Parando de exercitar a minha imaginação sobre o conteúdo do livro, resolvi dar os quatro passos que me separavam do lugar onde ele fora colocado para acabar com a minha divagação. Bom, como estava sem óculos meus olhos doeram e não deram conta daquelas letrinhas miúdas. Só pude verificar que se tratava de um romance policial com fundo histórico real, recentemente escrito e que, provavelmente, põe o dedo em algumas feridas abertas pela hipocrisia do mundo.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

PEDINDO FAVOR A QUEM NÃO TEM TEMPO

            Todo mundo já experimentou épocas em que a rotina é preenchida por uma maior quantidade de tarefas e compromissos. São aqueles períodos em que seria luxo dispensar uma mãozinha emergencial para alívio da agenda e, consequentemente, economia da energia física. Mal nenhum há em pedir ajuda a alguma alma generosa para estas ocasiões em que os afazeres não cabem nas limitadas horas que temos no dia ou na semana.

            Mas a dica não é solicitar auxílio apenas a quem conserva a bondade no coração e se dispõe a abdicar do seu próprio tempo para, empaticamente, servir ao outro. O jogo mesmo é pedir um obséquio a quem está atolado de coisas a fazer e essa eu aprendi com meu sogro, que há muitos anos me disse: - quando você precisar de um favor, peça-o para uma pessoa bem ocupada e ela dará conta.

            Assim que ouvi tal orientação um tanto paradoxal, escapou-me o entendimento de sua lógica, afinal, não é matemático que quem tem menos coisas a fazer é, justamente, quem mais pode ajudar? Não. Aliás, é um ledo engano achar que quem está de papo para o ar é, justamente, quem oferecerá ajutório. 

            A explicação é que quem tem mais tempo livre é quem terá maior dificuldade de executar favores aos outros, porque está imerso em um vazio temporal desorganizado e capaz de bolar mil desculpas para se esquivar de obrigações para si ou para qualquer pessoa. Já quem quem tem zilhões de compromissos sempre conserva o talento para arrumar estratégias voltadas a dar conta do que lhe foi pedido, pois consegue visualizar melhor seus afazeres, estabelecer metas para o seu cumprimento e dinamizar seu tempo, adotando ainda aquela máxima da 'promessa é dívida'.

            Os fins de ano estão aí para comprovar o acerto dessa coerência reversa. Além das exigências pessoais, do trabalho e da casa, há toda a sorte de coisas que parecem brotar do até então tranquilo poço das incumbências. É a hora em que o espírito entra em ebulição como resposta nervosa para o receio de não conseguir cumprir tudo o que aparece.

            A pet fica doentinha bem nessa ocasião e dá-lhe três idas ao veterinário em menos de uma semana. Os armários da despensa na cozinha se esvaziam misteriosamente, faltando diversos produtos, o que para mim significa um evidente conluio deles com o supermercado nada vazio. Começa também a caça ao eletricista - para a entrega do abajur decorativo exigido pelo layout da sala -, e à lavanderia - para cobrar sua promessa de entregar as cortinas que desde julho não viam água.

            Chego a elucubrar sobre como ganhariam um bom dinheiro as companhias seguradoras caso tivessem como produto um seguro contra o não cumprimento de encargos por falta de tempo! Eu seria uma cliente a ser recusada, certamente. 

            Baseado naquela recomendação do meu sogro, neste fim de ano desejei encontrar alguém bem atarefado que pudesse servir para confirmar esta teoria e me ajudar de alguma forma. Mas, na verdade, a constatação do acerto de tal conjectura veio por outro lado, porque era eu a pessoa ocupada que conseguiu fazer todo o planejado e ainda ajudou a quem havia me pedido uma força para alívio de sua agenda.

            

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

 BIRUTA


            Para quem desconhece esse instrumento, a biruta serve para medir o sentido do vento e é muito usada em aeroportos para orientar os pilotos de aeronaves. Trata-se de um tubo cilíndrico feito de tecido, com suas extremidades abertas, sendo maior de um lado do que do outro. O vento entra pela extremidade maior e sai pela menor e com isso mostra se está soprando daqui para lá ou de lá pra cá.

            É lógico que meu lado Platão, que não me deixa um só instante, aparece para filosofar a qualquer hora, de modo que acabo usando até esta engenhoca da inteligência humana como gatilho para divagar e pensar o quanto um ser humano sem senso crítico pode ser infeliz.  Se pararmos para pensar, somos todos como birutas, não como doidos ou loucos varridos, ainda que eu acredite que também somos isso em algum grau de vez em quando.

            Somos parecidos com as birutas porque, biologicamente falando, a natureza nos construiu como um tubo com dois buracos por onde entram e saem alimentos. Não há como fugir disso. Contudo, no sentido psicológico é que a comparação fica mais interessante, pois também podemos ser como birutas se deixarmos que tudo apenas passe por nossas cabeças, sem o exercício da reflexão e do senso crítico, capacidades das quais somos equipados evolutivamente. 

            Quem apenas recebe do mundo em que vive estímulos e informações, sem exercitar o pensamento, sem refletir, sem questionar o status quo, acaba se tornando como uma biruta, em que tudo apenas sai do mesmo jeito que entrou, ou seja, passa sem que se use a caixa de ressonância que temos acima do nosso pescoço para pensar.

            A analogia entre a biruta e a pessoa que não reflete criticamente sobre sua vida, seu mundo, suas relações, sua história, enfim, sobre o que lhe circunda, parece-me perfeita para dizer o quanto é oco e perdido o indivíduo que não usa sua capacidade de exame e avaliação das coisas para uma existência com mais sentido.

            O uso da reflexão e do senso crítico são imprescindíveis para a felicidade de cada ser, pois permite atribuir significados diferentes para situações difíceis que costumam despertar reações automáticas a todos, assim como conferir outras narrativas pessoais a fatos do passado que atormentam o presente. 

            Pensar criticamente sobre a vida, o mundo, os acontecimentos, não significa se enclausurar nas balizas da razão e dela não se desapegar, assim como reverenciar o sol que ilumina não é esquecer que ele também queima e seca. Usar a razão é estabelecer com ela uma parceria para tornar o coração mais alegre e satisfeito, é conseguir dar um sentido maior para a vida com todas as suas dificuldades.

            Quem encontra um sentido maior para as coisas é mais feliz, sorri mais, pula da cama de manhã cedo com mais vontade e não se parece com um simples tubo oco por onde as coisas somente passam e não modificam o ser.

            



terça-feira, 28 de novembro de 2023

 

O BENEFÍCIO DA DÚVIDA


        A dúvida, mais conhecida como a falta de certeza, é uma constante na vida de qualquer pessoa. Existe em qualquer alma humana que habita ou já habitou este planeta, assim como já está à espera das que ainda virão. A dúvida está em todos os lugares e em todos os tempos. É mesmo uma grande questão, como expressou Hamlet com o 'ser ou não ser' nascido da pena de Shakespeare nos idos anos do século XVII.

        Mas não é de todo ruim a dúvida. Chego ao ponto de pensar que devíamos acolhê-la como parte indissociável de nós e reverenciá-la em vista da sua utilidade muitas vezes ignorada. No fundo a dúvida é nossa amiga, protege-nos em muitas situações. O seu oposto sim é que é nefasto: a certeza. 

        Primeiro, porque funciona como uma espécie de vírus psíquico que passeia pelo nosso cérebro atingindo o coração e gerando outros estragos secundários. Tem muita gente doente dessa fraqueza. Engana-se quem acredita que a certeza é valiosa, algo para ser almejado.

        Segundo, porque a certeza sequer existe, posto que é efeito de uma distorção do pensamento de quem diz possuí-la. É uma fantasia maléfica que promove julgamentos rasos, tem efeito redutor de tudo, interrompe progressos em vários campos, enfim, a certeza é péssima. A certeza é tão maléfica que a sua ausência chega a provocar uma necessidade de inventá-la para dar sustentação a crenças cristalizadas.

        A expressão 'benefício da dúvida', como popularmente se diz, confirma que a dúvida é mesmo benéfica, pena que ninguém presta muita atenção na sua utilidade. Precisa-se ser acusado de algum comportamento indevido para o indivíduo lançar mão da dúvida como escudo de proteção na hora de um empurrão contra o muro das cobranças. 

        Basta também ser destinatário da denúncia de uma transgressão qualquer para que se peça socorro ao 'benefício da dúvida' para escapar da condenação. Daí sim a dúvida é maravilhosa e todo mundo tira ela da manga para se ver absolvido. No mais das vezes, todo mundo quer é ser visto como o grande porto onde a certeza aterrissa.

       Dúvida, meu povo, é prima irmã da liberdade! É o 'só sei que nada sei' de Sócrates, o puro reconhecimento da falibilidade humana. A dúvida é o portal das mil e uma possibilidades. A certeza que é a vilã, porque reside no bueiro onde convivem a cegueira e a estupidez.

        Ninguém é menos porque tem dúvida. Fazer as pazes com a dúvida é como sair da vala comum das infalibilidades humanas, este lugar tão sem luz, onde nada é maleável e tudo é endurecido e provisório, o esconderijo onde as certezas brigam entre si para se sobressaírem. 


Fonte da imagem: https://tomgreentree.com/when-doubts-assail-how-faith-can-grow-when-doubts-come-knocking/

sábado, 11 de novembro de 2023

 ERROS QUE EU AMEI


    
        Quando minha filha mais velha era pequena, eu podia contar com uma pessoa muito amorosa para cuidar dela no meu horário de trabalho. Francisca dava-lhe comida, cuidados, companhia, afeto. Ensinava-lhe brincadeiras, cuidava de sua roupinha, dava-lhe o lanchinho sadio, fazia-a dormir o soninho da tarde. Foram bons anos zelando pelo meu maior tesouro.

            Mas uma vez, Francisca acertou mais do que talvez pudesse perceber. Ela resolveu cantar para minha filha a musiquinha da igreja. A letra da primeira estrofe era assim: "Mãezinha do céu, eu não sei rezar, só sei lhe dizer, que eu quero te amar". Minha pequena aprendeu, porém, repetia trocando as letras desta forma: "...só dei delizer, que eu quero te amar...". Já na primeira vez em que escutei, notei que cantava errado. Não corrigi, porque achei bonitinho. 

            Ela estava na fase de aprendizado da linguagem e eu sabia que no futuro saberia cantar corretamente a cançãozinha. Eu também sabia que o mais importante era o contexto da musiquinha e que a troca de letras não implicaria em nada. A menina ficou adulta e até hoje peço-lhe para cantar "errado" para mim.

            Agradeço à Francisca por nunca tê-la corrigido também, deixando a criança cantar daquele jeitinho, porque, no fundo, nos divertíamos escutando aquela voz fina e pueril expressando o que vinha de seu coraçãozinho aprendiz de emoções.

            Mais velha um pouco, e já dominando mais as palavras, ensinei minha menina a rezar o Santo Anjo: "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, ...a piedade divina sempre me rege, me guarde, me governe ...". Ela dizia "me gorrernerepetindo, simplesmente, o que lhe parecia o correto. Da mesma forma como na canção da igreja ensinada pela Francisca, eu não corrigi a oração, pois no futuro ela também aprenderia. Enquanto isso, suas falas truncadas eram o meu gatilho seguro para amassá-la e beijá-la tantas vezes quantas fossem as que eu pedia para ela cantar ou rezar.

            Até hoje, reunidos em família, recordamos seus pequenos tropeços fonéticos e sentimos muita saudade daquela fase que, sem percebermos, aprendíamos a célula da coexistência entre erro e amor. Perfeição é a derrota, como li há alguns dias. Que bom se pudéssemos sempre sentir que podemos ser amados independentemente dos erros que cometemos, sejam eles pequenos ou grandes!

            Quando adultos, esquecemos que somos falíveis e pobres de entendimento, porque também estamos num oceano de aprendizados, de todas as linguagens humanas, das expressadas pelo nosso corpo, da que sai do nosso olhar, da que grita para dizer dos nossos desejos e até mesmo daquela linguagem que nos sai pela boca, porque nem sempre somos hábeis em dizer o que sentimos.

           Errar é humano, como o amor. É uma pena que algumas vezes perseguimos a medalha do acerto como moeda de troca de sentimentos, especialmente, daqueles que já nos amam ao jeito deles. No máximo, aquilo que entendemos como erros, deveriam ser vistos nossos melhores professores, veículos de um conhecimento especial sobre a vida e as relações. 

            Agradeço muito à Francisca, que não corrigiu minha filha, pois, sem querer, ela me ensinou sobre o amor na sua maior amplitude. Lá do céu, este texto está também assinado por ela.

 O COFRE DE CADA UM 


        Veio-me à cabeça, como metáfora, que todos guardamos no recanto do nosso ser uma espécie de cofre peculiar. Não é feito de aço, mas forjado pelo nosso inconsciente escuro, enigmático e fechado, cuja abertura - exclusivamente por vontade própria - condiciona-se ao emprenho de tempo, sensibilidade, persistência e, principalmente, coragem para ali encontrar o que no passado guardamos e hoje nos é desconhecido. É como um santuário de experiências.

       Neste cofre que ocupa algum lugar dentro de nós, encontram-se as nossas penumbras de memórias pouco tangíveis, além dos aromas da infância, dos sabores doces e amargos das relações que mantivemos com pessoas. Também as emoções pueris ali cristalizadas com o tempo e que se transformaram em ecos incômodos a reverberar em nossa vida adulta, porque não as compreendemos. 

       Neste espaço secreto também estão as nossas interpretações sobre as palavras e olhares dirigidos a nós pelas pessoas que nos moldaram. Neste cofre de difícil acesso está colocado tudo o que a nossa consciência, em uma época remota, não tinha capacidade para entender, pois não passava de uma sementinha em desenvolvimento.

      Porém, já adultos, precisamos abri-lo se desejarmos uma vivência mais autêntica, leve e feliz e menos cheia de dúvidas, hesitações e cegueira. Mas somente chaves emocionais conseguem abrir este depositário de sombras que costumamos não compreender. São os nossos fantasmas e dragões, muitas vezes frutos de nossa própria criação, como projeções de nossas inseguranças e vulnerabilidades, por trás das quais há uma lição a ser aprendida. A busca por maior autoconhecimento é fundamental. 

      Para isso é que eu conto com a minha analista Sherlock Holmes de almas, que há algum tempo vem me auxiliando a virar de pouco em pouco a peça giratória secreta do meu cofre para que eu consiga defrontar-me com meus mapas, códigos e narrativas ali existentes para reescrevê-los, daí sim, transformá-los em tesouros para minha vida. 

        Relembre ser necessário o emprenho de tempo, sensibilidade, persistência e, principalmente, coragem, pois ressignificar o passado requer dedicação e esforço, assim como uma boa dose de humildade.

        O resultado dessa jornada será o encontro com uma luz interior irreversível, a verdadeira fortuna de uma existência e um portal para um futuro melhor.

domingo, 29 de outubro de 2023

  SIMPLESMENTE EXISTIR

        Fala-se tanto em viver intensamente, experimentar a vida em todos os seus matizes, conhecer de tudo, agitar dias e noites, pular de alturas absurdas e mergulhar em profundidades insondáveis, real ou simbolicamente falando. A adrenalina tornou-se quase obrigatória para poder se dizer que uma vida é plena e com significado, como se tudo só ganhasse graça com a ebulição do sangue em nossas veias. Mas, às vezes, o "simplesmente existir", mesmo que por breves instantes, não é algo a ser subestimado.

        Valorizar o ato de "simplesmente existir", redefinindo-o sem associá-lo a ideias de estagnação, melancolia, vida vegetativa ou depressão, pode ser uma maneira de se perceber verdadeiramente vivo. Ficar um tempo parado, apenas existindo, não é virar planta, mas sim possibilitar maior conscientização do funcionamento dos órgãos do corpo, prestar atenção aos nossos sentidos e suas operações sofisticadas de captação do mundo.

        Por conseguinte, sentir-se vivo pode estar mais próximo da passividade do que se imagina. A experimentação de uma rajada de vento no rosto, sem a preocupação de por o cabelo de volta no lugar, ou a absorção de algum som da natureza é capaz de ser a plenitude de uma vivência, um reforço à percepção de que fazemos parte de um todo circundante. 

        Focar na riqueza dos aromas ao nosso redor também é uma forma de viver intensamente, ou alguém duvida de que há vida pura no cheiro da chuva, do café recém passado, da água do mar, da pipoca estourada há pouco, do perfume da mão de quem se ama? Numa dessas, a busca incessante por um viver repleto de estrepolias arriscadas seja o que, justamente, encubra uma existência mais feliz.

        Pode ser que o "simplesmente existir", mesmo que por poucos momentos do dia, fingir-se de arbusto de vez em quando, ficar parado sentindo o mundo se movimentar à volta de si sem que se precise fazer nada, possa ser a experiência da paz por excelência e até o agradecimento dos neurônios cerebrais, tão requisitados o tempo todo, mas, principalmente, uma trégua das exigências e conflitos que alimentamos sem necessidade.

        Ficar um tempo easy like sunday morning é necessário, essencial, é o antídoto certo contra o modo frenético de viver, porque ficar só na busca de aventuras chega uma hora que cansa e as coisas precisam ir num crescente cada vez maior para dar sentido ao jogo da vida.

        Cheguei num ponto em que minha grande estratégia para viver intensamente está diretamente relacionada a um modo de vida silencioso, pacato e meditativo.

domingo, 24 de setembro de 2023

 COMO UM DRAGÃO QUIETO


            Todos os dias os meios de comunicação divulgam o conteúdo de decisões proferidas em todos os lugares do país e por todas as instâncias da Justiça. Às vezes dá até a impressão de que os juízes que decidem a respeito de conflitos fazem-no por iniciativa própria.

        O que uma boa parte das pessoas não sabe, porque não acostumada ao ofício jurídico, é que a Justiça é inerte, parada, não se movimenta sozinha, não age espontaneamente. É como táxi parado no ponto esperando alguém chegar e solicitar uma corrida até um dado endereço, metáfora que acabo de inventar para dizer o que está estabelecido no artigo segundo do nosso Código de Processo Civil brasileiro: "nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer". Este é um dos pilares do processo judicial e uma das primeiras lições a quem se prepara para a labuta com as leis. Chama-se princípio da inércia da jurisdição.

            Na época da faculdade de Direito, há uns trinta anos, tive um professor dessa matéria que dizia que a jurisdição é como um dragão quieto em seu canto, que só se mexe quando provocado. Diga-se de passagem, a palavra provocação é usada no âmbito jurídico, justamente, para se referir ao pedido que alguém faz à Justiça. Se ninguém cutuca aquele dragão, ele nada faz, permanece inerte, do mesmo modo que a Justiça, que não fornece nenhum pronunciamento sem que alguém a procure para a resolução de um conflito. Fica lá, à disposição, estática, esperando ser chamada.

            Mas, assim que provocada a Justiça, o que se dá a partir de um pedido formal, inicia-se o processo judicial cujo ato final é o julgamento. Este somente ocorre após ser dada às partes a oportunidade para a produção de todo tipo de prova prevista na lei, como a testemunhal, documental, pericial, vistorias, entre outras, que são imprescindíveis, porque somente depois da sua análise é virá o veredito que afetará de várias formas a vida dos envolvidos.

            Pensando nisso, bem que poderíamos adotar o princípio da inércia na vida diária porque, cá entre nós, não estamos imunes a meter o bedelho na vida dos outros. Para qualquer notícia da vida alheia que adentra nossos ouvidos, vamos logo dando um juízo de valor, uma opinião, sem que isso tenha sido pedido. Às vezes é por ingenuidade, outras vezes é por maldade mesmo. Se Fulana foi demitida do emprego é porque deve ter aprontado alguma. Se Beltrano estava acompanhado da prima do seu amigo é porque seu casamento vai mal e assim por diante.

            No dia a dia de todo mundo, dar opinião sem que se tenha sido chamado a tanto, é coisa muito comum de se ver. É entrar em um transporte público ou recinto qualquer, assim como na rua, na escola, no ambiente de trabalho e tem lá gente falando de alguém, seja condenando ou absolvendo, dando suas versões ignorantes sobre os fatos apenas porque não aguentam segurar dentro de suas bocas seus pontos de vista. Devemos é nos esforçar para entender os motivos alheios, as circunstâncias determinantes de um comportamento tal, enfim, não palpitar sobre coisas que não nos digam respeito, recolhendo-nos ao lugar do silêncio, deixando que o poder da toga seja exercido por quem o deva.

            Dar opinião sem critério é fácil demais quando a vida dos outros é que está no centro do debate. Difícil mesmo é entender os motivos de cada um, os porquês dos atos que cometeram, a história toda que os levou a fazer isso ou aquilo. Então, quando ninguém pedir a nossa opinião, o lugar onde devemos ficar é o mesmo daquele dragão dorminhoco representante da Justiça, que só se move quando alguém o provoca. No mais, a inércia é a melhor posição para todos.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

GRANDES INVENÇÕES


            É próprio do ser humano inventar, quando alguma dificuldade lhe aparece à frente ou apenas em razão da sua inerente veia criativa. Desde a época das cavernas, inventou ferramentas para caçar e poder alimentar-se, como também meios para abrigar-se das tempestades, do frio e do calor, e vestimentas para a proteção da sua pele.

            Em parceria com a terra, inventou maneiras e sistemas para o plantio de sementes e a multiplicação dos frutos, dividindo-os com os seus semelhantes. Inventou sons simbólicos para comunicar-se, bem como a escrita, para tornar comum suas ideias, divulgar novidades, contar histórias. Para não se sentir assombrado com os fenômenos incontroláveis e desconhecidos da natureza, o homem inventou os mitos, antes que ele próprio inventasse a ciência para entender melhor o mundo em que vivia. 

           O homem inventou alquimias contra suas dores físicas ou, simplesmente, para deslumbrar-se diante de reações químicas coloridas e fumacentas. Seu brilhantismo permitiu a invenção da indústria e do comércio para a produção e distribuição de suas descobertas. De sua cabeça saiu todo tipo de engenhoca para o seu deslocamento de um continente a outro ou do chão para as alturas e até para outros planetas.             

            Essa criatura inteligente inventou um jeito de verticalizar moradias para resolver o problema da falta de espaço. Inventou a arte como linguagem de expressão de sua essência e também a religião para diminuir o seu desamparo, também a política, para organizar sua vida comunitária, e a lei, para impedir os excessos de uns contra os outros, disciplinando os seus impulsos. Inventou a filosofia para dar conta de seus dilemas internos e a medicina, para a cura dos males do seu corpo e até de sua mente.

            Há bem pouco tempo, essa figura inteligente inventou um jeito de falar com outra, e até vê-la a quilômetros de distância, sem precisar sair da poltrona onde, confortavelmente, descansa, inventando também inteligências artificiais, foguetes, vacinas, drones, robôs, entre tantas outras criações benéficas.

            Mas há algo que o espírito humano ainda não inventou, que é a produção do antídoto contra os fantasmas psíquicos que lhe desafiam. O ser humano foi capaz de inventar todo tipo de teoria para explicar os medos e temores, aliás, que ele mesmo também inventou, mas ainda não inventou nenhuma maneira de impedir para sempre o surgimento deles.

            Somos peritos em inventar do nada neuroses e uma infinidade de outros sofrimentos, contudo, ainda não conseguimos inventar um jeito de enxergar que a simplicidade, a autenticidade, o enfrentamento das dores e a empatia com os demais são as melhores invenções para uma vida feliz, e que, na verdade, já existem para todos, bastando incorporá-los.

       

domingo, 10 de setembro de 2023

TERAPIA DO ARMÁRIO


            Uma sobra de energia num domingo à noite foi capaz de me levar para a frente do meu armário e um rápido olhar por tudo me fez perceber que não há espaço para mais nada. Quanta bolsa grande impedindo a entrada de outra mais atual, menor e mais prática...quanta roupa entupindo as prateleiras e amassando aquelas com potencial de uso ainda. Dei-me ao trabalho de por tudo abaixo para uma seleção criteriosa e objetiva, sem que sentimentalismos tomassem conta da minha faxina.

            Comecei pelas calças, provando uma a uma e quando vi estava formada a pilha das que não me serviam mais. Eram de um tempo em que eu andava por outras bandas e me satisfazia com outras situações. Percebi que o passar dos anos me deixou mais pesada e com mais medidas. Contudo, para não dizer que engordei, prefiro acreditar que minhas pernas cresceram porque deram maiores e mais audaciosos passos, arriscando caminhos nunca antes imaginados ou por mim autorizados. Nesse caso, então, minhas calças é que não quiseram acompanhar em tamanho as experiências que eu incorporei com o tempo e ficaram só entupindo as prateleiras. De um tempo para cá, serviram apenas como testemunho da pessoa que eu me tornei.

            Com as blusas a dinâmica foi a mesma e então outra pilha foi formada, especialmente por aquelas cujos botões não consegui mais fechar. Sem dúvida, ganhei mais corpo com os anos, mas é melhor afirmar que ganhei mais presença e fôlego. Minha caixa torácica deve ter ficado maior porque exercitei o pulmão respirando mais fundo diante do que antigamente, por mero impulso insano, me fazia reagir sem pensar. Atualmente, sou mais calma e serena. Outra hipótese é a de que talvez meu peito tenha crescido por conta de mais amor ocupando meu coração.

            A prateleira dos sapatos também ficou menos entulhada depois do meu olhar crítico sobre aquele acervo. Tirei aqueles de salto muito alto que já não uso mais, bem como os que estavam com a sola gasta. Já foi o tempo de eu querer aparentar uma altura maior do que a que eu tenho e não digo isso no sentido apenas da estatura. Passei a preferir ficar mais perto do chão mesmo, praticando o ato simbólico de andar com equilíbrio e mais próxima da realidade. Resolvi que os pares tirados do meu armário já cumpriram a sua missão de me elevar e de me levar para lugares onde antes eu me sentia feliz. Hoje sou mais adepta do conforto, mesmo que sacrificando a elegância.

            Não escaparam do meu escrutínio as bolsas. Várias delas retirei do closet. Já foram úteis para mim, especialmente, as grandes, que eu usava para levar um monte de coisas que atualmente julgo desnecessárias. Tornei-me minimalista, por gostar e precisar de pouco, tanto no sentido material quanto figurado. Acho perfeita a analogia entre os itens que levamos na bolsa e a bagagem de vida, que num dado momento já pode ser reduzida para o essencial. Talvez isso tenha a ver com a leveza que os perrengues da vida ensinam. 

            Finalmente, dei também uma aliviada na gaveta das maquiagens, dos penduricalhos e dos enfeites, como brincos, colares, lenços etc. Um monte deles já não eram usados há muito tempo, o que prova a sua pouca importância comparada ao que me levou um dia a comprá-los. Deve ser porque já não venho mais sentindo vontade de sair de casa como um pavão, dado o sentido da autenticidade que está batendo cada vez mais forte em mim. Sou o que sou, não preciso agradar os olhos de ninguém.

            A gente impregna os objetos de memórias afetivas ou os transforma em lembranças concretas de épocas e de pessoas a eles relacionados. Bobagem, pois desfazer-se deles não significa desfazer-se do que vivemos, nem daqueles que nos presentearam.

            Arrumar o armário, tirando aquilo que não me servia mais ou que eu não precisava chegou a ser terapêutico, porque ao mesmo tempo em que exercitei o desapego, refleti sobre o que já passou e imaginei novas vivências, o que deu uma boa viagem ao passado e ao futuro sem ter saído do lugar.

             

            


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

 A VIDA É CHEIA DE 'ÕES'


            Prestando certa atenção, podemos ver que, no corre-corre de todo dia, estamos envoltos de muitos 'ões', isto é, um tipo de ditongo que faz parte da linguagem corrente que usamos em nossas comunicações. Olha um deles aí! São muitos, vou usá-los aqui de um jeito diferente, fazendo reflexõesOlha outro aí!

            Começo dizendo que ninguém passa pela vida sem levar tombos e escorregões, tampouco escapa de certas dores e decepções ou do medo diante de experiências desconhecidas, poeticamente denominadas escuridõesDesconheço ainda quem, tipicamente moderno, não se canse das tensões, daquelas que nos fazem matar leões para chegarmos ao ponto onde queremos. Porém, somos de carne e osso, não fomos programados para explodirmos como vulcões. Somos frágeis em certa medida, vítimas de nossas próprias ilusões das quais ninguém se safa, tão gostosas quanto perigosas, mas aí entram outras questões.

            Até aqui, só falei de atribulações difíceis de dar conta, mas graças ao bom Deus somos uma espécie dotada da magnífica capacidade de desenvolver bons sentimentos em nossos corações que, como correntes marítimas, esquentam a alma permitindo vivenciar a alegria, a felicidade e os bons ventos das emoções. São como mágicas poções, ajudam a nos empurrar para o alto em dias de céu limpo e azul, como balõesQuem, por exemplo, nunca se sentiu voando, momentaneamente, pelo arrebatamento das paixões?  Ou nunca sentiu friozinhos gelados e cobrinhas na barriga mais conhecidas como excitações?

            Viver é mesmo assim, é experimentar um pouco de tudo (ou muito, até), é como subir e descer escadas, porém, sem contar com corrimões. O jeito então é aprender a se equilibrar, para ganhar mais tranquilidade, livrar-se dos cansaços, experimentar menos pressões.           

            Somos todos muito tomados por compromissos, temos caminhões de coisas que demandam nossa dedicação. É necessário que em certas horas paremos, nem que seja para conversarmos com nossos botões, para conseguirmos ressignificar coisas, transformar as dificuldades em aprendizados e os erros, em profissões. Algo como fazer limonadas a partir dos limões, para tornarmos menos sofridos os reveses da vida e sentirmos menos aflições. Todo cuidado é pouco para, encarando nossas atribuições, não consumirmos horas preciosas, comprometendo nosso tempo ao ponto de necessitarmos drásticas mudanças e retificações.

            É importante viver com leveza, acolhendo mais as nossas intuições, despertando novos olhares para o mundo e, perante a vida, novas visões. Diversas razões nos orientam para mudarmos o foco para outras direções, buscando encontrar outros propósitos em tudo. É igualmente importante rever sonhos, tomar decisões, concentrar energia para outras ações, alterar velhas rotas, neutralizar antigas preocupações.

            Da nossa existência, somos nossos próprios guardiões, não deixemos que os dias de inverno estraguem nossos verões. Olhemos tudo com cores novas para termos outras impressões. Para administrar esses tantos 'ões' que perpassam por nossa vida, tenhamos fé e inspirações.


           

            

            

sexta-feira, 23 de junho de 2023

 

O OCULTO NA LINGUAGEM


            As palavras guardam significados ocultos que, na rotina do dia a dia, nem percebemos. É muita coisa saltando de nossas bocas sem detectarmos que podemos estar dizendo mais do que, simplesmente, pensamos dizer. 

            Contudo, nenhum mistério existe nisso e um mergulho raso nessas águas da linguagem pode mostrar que basta prestar atenção nas palavras que usamos para extrair delas mais do que elas parecem referir. Numa dessas será possível até refinar nosso olhar para as coisas, as pessoas e o mundo, simplesmente, observando melhor o que falamos.

            Não se costuma perceber, por exemplo, que respirar contém um pirar. É porque respirar é estar vivo, é movimentar-se e, inexoravelmente, é enlouquecer, seja no sentido bom ou ruim. Quem aqui veio respirar se colocará, de modo obrigatório, em alguma condição de pirar, em marcha para alguma loucura existente no mundo. Pira é coisa de gente viva, de gente que respira. O movimento automático da respiração é o pré-requisito básico para enlouquecer e que seja, de preferência, por causa da loucura boa.

            Já pressentir traz consigo o sentir, o sentir antes, que é, de algum modo, aceitar que a intuição tome o comando, é largar o leme da razão, tão importante quanto duvidosa para certos momentos e situações. Pressentir é deixar-se guiar por uma força invisível do coração, é saber que não enxergamos tudo e que nossos cálculos internos, tão frequentemente concretos, não se aplicam em alguns terrenos. O amor é testemunha para confirmar como podem ser inoperantes as nossas forças racionais.

            Conseguir contém um ir, um ir em busca de algo, um seguir com, com vontade e persistência e, portanto, um não desistir. Contempla um seguir o que se deseja, o que se almeja ou aquela voz interna que comanda a direção para um objetivo determinado. É parecido com o dormir, que também esconde um ir, porém, um ir para o mundo dos sonhos, para o lugar dos delírios seguros e das fantasias inofensivas. É ir da noite para o dia ou do dia para a noite ou desta para a madrugada, transitar pelo tempo sem sair do lugar.

            O cuidar alberga em si um dar, revela o ato de ceder de si para o bem de um outro. Tem embutida a ideia de se desprender de algo que nos é próprio e inerente em benefício de alguém. Não há como cuidar sem dar. Cuidar é dar tempo e energia em prol de quem precisa, é dar afeto e amor, desapegar-se. É o verbo primo da compaixão e do desprendimento.

            São variados os sentidos ocultos nas palavras e o falar é um ato veloz demais para que se possa desvendar tão rapidamente o que nelas se esconde. Pode ser que escrever, por trazer em si um ver, seja uma estratégia para descobrir novos formas de comunicação e por isso tudo parece ficar mais claro. Aliás, descobrir contém o seu oposto que é o cobrir, indicador de que interpretações se justapõem no que dizemos, as quais permitem novas percepções sobre tudo.

            

terça-feira, 30 de maio de 2023

 UM UNIVERSO EM DUAS LETRAS

        Duas letrinhas vogais juntas e está formado um código simbólico para designar um universo particular acessível apenas a uma única pessoa: o Eu. Como um buraco negro descrito pela astronomia, somos uma espécie de lugar único para onde tudo pode fluir e convergir, inclusive a luz. Universo, ou 'uno' mais 'versus', que, em latim significa 'tornado um'.            

        Cada Eu é um universo restrito onde o tempo não impera. Contém passado, presente e futuro, bem como desejos, medos, planos, sentimentos, potencialidades, ilusões, emoções, raivas, agressividades. Nele tudo existe, desde o que já fizemos em nossas vidas (e o que não fizemos) até tudo o que fizeram (e o que não fizeram) conosco também. Nele tudo é real e fictício ao mesmo tempo. Nele é registrado o que de concreto vivemos e também o que encenamos como uma realidade acessível apenas a nós mesmos. 

        Nosso Eu é tal qual mônada, aquela que o filósofo alemão Leibniz mencionou como substância simples, porém, sujeita a transformações, evoluções e desenvolvimento. Por isso a vastidão do nosso ser é inalcançável e tudo cabe em nós. Somos tudo o que somos e também o que não somos e até o que imaginamos que somos. Somos o que sabemos e até o que não sabemos. Somos tudo então, somos multi. Multifacetados, multitarefas, multiplicados, multiversos.

        Somos a simplicidade e a complexidade juntas, somos todos os opostos unidos em um, o bem e o mal, a alegria e a tristeza, a cara e a coroa, o dito e o não-dito, o erro e o acerto, o solo fértil e o arenoso, a glória e a derrota, a criação e a destruição, o nobre e o vil. Estava certo o poeta austríaco Rilke ao afirmar "Se meus demônios me abandonarem, temo que meus anjos desapareçam também".

        Temos o todo em nós e somos o todo também. O Eu só é pequeno no plano da letra simbólica, porque grande em essência. No Eu reside a possibilidade de conhecer tudo o que existe e também o que ainda nem foi inventado. Guardamos em nós um cosmo infinito, somos bem maiores do que podemos imaginar.

        

        

        

domingo, 28 de maio de 2023

 A PAZ COMO PONTO DE PARTIDA


        Desejos de possuir saúde, família, trabalho, bem estar e coração tranquilo costumam integrar as wish lists das pessoas, fazendo-as gritar 'isso sim é que é estar em paz'. Todos perseguem a paz, como ideal a ser alcançado para uma existência feliz.

        Eu prefiro entender a paz, contudo, não como um ideal - posto que essa ótica me faz pensar na ausência dela - mas como ponto de partida, isto é, prefiro considerar-me já abastecida daquelas dádivas que fazem qualquer ser humano feliz, ainda que eu também as persiga para me dizer em paz.

        Pensar que já estou de posse da paz é, em meu entendimento, um exercício de gratidão pelas boas coisas que a vida me deu, por isso gosto de tomá-la como base para outros saltos e experimentações menos óbvias, como também para a tomadas de decisões mais destemidas. Ocorre-me que quem se sente em paz tem mais coragem e acaba vivendo mais intensamente.

        Colocar-se em movimentação, arriscar o insólito, expor-se a alturas não habituais, perseguir objetivos arrojados dá uma boa dose de material para uma biografia de vida, e algo me diz que se sentir em paz deveria ser como estar abastecido de um combustível muito especial para afastar os temores que possam surgir. Por isso é que gosto de pensar a paz como o pacote básico e de fábrica para o start em direção à ousadia, à valentia, à loucura.

        A paz, como a entendo, funciona como pista de decolagem para o infinito da vida, um trampolim para os pulos cegos e menos triviais, o pré-requisito para o risco. Sentir-se em paz faz o leque da vida se ampliar e abre chance aos bons estardalhaços relacionados à alegria e felicidade. Evidente que viver sem paz é doloroso, mas achar que a paz é o objetivo final para ser feliz me parece um pouco triste também, porque a paz deveria ser só o começo de uma vida plena, o pano de fundo branco esperando pela invasão das cores.

        Dizer que a paz deveria ser o básico para uma vida inteira e feliz, todavia, não é reduzi-la e sim atribui-la o selo de imprescindibilidade, sinônimo de patamar obrigatório para, a partir dela, nos ocuparmos de outros objetivos. Pois a paz, como meta única para uma existência feliz, me causa monotonia. Contentar-se com a paz não faz ninguém inteiramente feliz.

        E se os paradoxos existem para comprovação das possibilidades opostas, posso afirmar que um coração em paz só está em paz porque também experimenta o contraponto do desvario, do arroubo, do devaneio, do arrebatamento. É preciso um pouco de risco, barulho e loucura. Está morto em vida quem se satisfaz apenas com a paz.


domingo, 23 de abril de 2023

 COISAS GRANDES QUE SÃO PEQUENAS


        Como são grandes as coisas quando somos pequenos! 

        Quando eu era bem criancinha, nos dias em que eu ficava na casa de meus avós maternos, lembro-me muito bem do caminhão do Seu Gumercindo, que passava na rua em dias certos da semana, oferecendo à vizinhança frutas, verduras e legumes. Era um veículo verde escuro, com um degrau perto do pneu, por onde eu tinha de subir para ver tudo o que havia ali naquela caçamba gigantesca. Minha avó sempre comprava alguma coisa, de forma que registrei para sempre em minha memória afetiva essa lembrança.

        De acordo com a minha percepção, o caminhão do Seu Gumercindo era enorme e largo a ponto de ocupar toda a rua quando parava em frente às casas para as pessoas fazerem suas compras. O interessante é que, há poucos dias, vi um desses caminhões trafegando na rua, perto de onde eu moro, uma relíquia pouco vista nos dias de hoje. Coincidentemente, era verde escuro também, igualzinho ao do Seu Gumercindo, porém, não era nem enorme nem tão largo como eu o havia registrado internamente. Era apenas um caminhãozinho pequeno, com um espaçozinho atrás para amontoar coisas, bem menor do que outros tantos que vemos por aí todos os dias.

        É certo que isso me fez pensar que quando somos crianças, tudo parece bem maior do que realmente é. Aumentamos o tamanho de tudo, dos lugares, das coisas e das pessoas que nos cercam, muito provavelmente, devido às nossas pequenas dimensões, tanto físicas quanto perceptivas. Por certo, nossa casa devia ser bem menor do que a que conservamos na memória, assim como também nossos pais já foram gigantes, tanto de tamanho quanto de influência. 

        Comecei então a lembrar de outras grandes coisas daquela época, como de um trator amarelo que também passava em frente à casa dos meus avós, na ocasião em que a rua estava sendo asfaltada. Era muito assustador e barulhento, o que me fazia correr para dentro sempre que eu avistava aquele monstro, prestes a me capturar. 

        O apito da fábrica de malas que ficava ali nas redondezas era outra coisa que me amedrontava muito. Brincando no quintal, eu costumava correr ao encontro de minha avó, pedindo proteção contra aquele ruído vindo, repentinamente, de não sei onde. Lembro-me até hoje de quando ela me explicou que se tratava apenas do sinal sonoro para os funcionários da fábrica usufruírem de seus intervalos de trabalho. Aliás, o gramado dos fundos da casa de meus avós, onde eu passei boa parte da minha infância, também me parecia muito grande, contudo, não passava de um terreno modesto em termos de largura e profundidade.

        Fiquei pensando que, se quando somos pequenos tudo nos parece grande e assustador, talvez o que hoje nos pareça grande e assustador possa ser, da mesma forma, o mero efeito de sermos pequenos, em algum grau, naquilo em que ainda não crescemos. Pequenos, por exemplo, em nossa capacidade de tolerar dores e daí, logicamente, elas nos ameaçarão mais do que o fariam se tivéssemos maior repertório emocional para acolhê-las. Numa dessa, nossos fantasmas também sequer existissem, caso fôssemos um pouco mais crescidos no que diz respeito à coragem para enfrentá-los.

        Os campeões em tamanho dentro de nós, isto é, os nossos medos, muito possivelmente não existiriam caso tivéssemos maior compreensão para diferenciar a realidade externa daquela que conservamos no interior de nossas cabeças imaturas e iludidas. Portanto, nem tudo o que nos pareceu ou ainda parece grande o seja de verdade, e de posse dessa constatação, quem sabe até possamos adotar uma posição melhor frente a tudo o que nos atormenta.

        Se a vida, o mundo, as pessoas são o que são, podemos concluir que nós é que os superdimensionamos, dando-lhes maior importância do que a necessária, atribuindo-lhes maior valor do que o que lhes é devido, potencializando os seus efeitos e, consequentemente, também sofrendo mais do que o inevitável. 

        Calibrar nossas balanças e fitas métricas internas, decerto pode nos servir para aquilatarmos nossa própria grandeza e força perante coisas pequenas, dignas somente de nossa lembrança.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

 SOBE E DESCE

        Por um bom tempo eu me ressenti com as minhas gangorras emocionais. Era bem difícil, talvez trágico para mim, estar muito bem e feliz em um dia e encolher-me de tristeza no outro por causa de um desconhecido sentimento de falta de algo inominável. As palavras, de maneira pobre e limitada, indicavam tratar-se de um sobe e desce, de um vai e vem, como se eu tivesse um motor dentro de mim girando e me deixando tonta.

        Em vários momentos, para minimizar esse desconforto, romantizei-o, pintei-o com cores poéticas descrevendo-me como a pessoa intensa que, genuinamente, ou como diva estereotipada de cinema, conseguia ir do céu ao inferno em segundos e transitar pelos extremos da paleta dos sentimentos. Isso me fazia sofrer..

        Minha perspectiva hoje já é outra, graças à luta que eu me propus a travar para desbravar o desconhecido que habita em mim. Por causa disso, o que um dia fez eu me sentir acorrentada no script da insana bipolar hoje serve para me libertar, pelo só fato de que reconheci minha natureza dual, porque sou ao mesmo tempo a calmaria da maré baixa e o maremoto que tudo arrasa. Acolhi essa oscilação de humores como própria de minha pessoa, conseguindo localizar meu equilíbrio dentro dessa dança maluca.

        Assim, se num dia vivenciei o cume erótico de um encontro com alguém, tudo bem que no outro dia eu só queria ficar quieta no meu canto. Se em outro dia eu queria gritar aos quatro ventos 'eu te amo' tudo bem também se no dia seguinte eu só queria me mandar sozinha para um local distante. Já não me cabe mais a pergunta 'por que isso acontece comigo?' Aceitei meus opostos, transo com eles, sou eles.

        Foi uma aceitação que mandou para longe a necessidade de autenticar minhas decisões com base em opiniões alheias. Nem o espelho me barra mais para sair de casa, pois se não estou lá em dia com minha aparência, segundo meu próprio julgamento, que se dane, pois minha paz interior vale mais do que um eventual elogio externo.

        Meus modelos vem ruindo dia a dia, como construções em areia de praia destruídas pela onda que as alcança. Entrei, definitivamente, por uma trilha de descobertas, por um mundo em que as satisfações constantes não passam de mera ilusão. Não há mais volta nesse caminho.

        O mundo é isso mesmo, o ser é isso mesmo, funcionam em sistema de opostos, binários, antagonismos. O segredo é equilibrar-se, adaptar-se, entregar-se. A gente constrói padrões na mente e tenta segui-los, por isso é que ficamos endurecidos. A velha mania de querer que tudo seja sempre do jeito que planejamos. Pura imaginação. Deixei estar, deixei ser. Estou feliz assim.

        

        

quarta-feira, 29 de março de 2023

 VIRANDO A CHAVE


        Merece premiação quem inventou a famosa expressão virando a chave. Sem dúvida, é uma metáfora que condensa um significado tão amplo quanto profundo. Literalmente, a virada de chave é o que nos permite sair de um lugar e entrar em outro, da mesma forma que representa trancar portas que já não servem mais. Também indica a possibilidade de nos colocar em movimento a partir da inércia, como no caso da condução de um veículo qualquer, por exemplo. A virada de chave envolve um ato de vontade, de mudança no status quo, de consciência desperta.

        A alegoria tem muito a dizer sobre nós, uma vez que precisamos muito virar chaves como ato de reforma no campo de nossos comportamentos, pensamentos, sentimentos. É necessário virar chaves quando algo não vai bem ou mesmo quando até vai bem, mas pode ir melhor. Virar a chave é retificar-se, adequar-se ao diferente, adaptar-se, enxergar-se, responsabilizar-se.

        Especialmente no dia de hoje, viro algumas chaves na cabeça, porque venho batalhando para isso, por acreditar que as mudanças, externas ou internas, dependem de certo grau de esforço pessoal. Esperar que as coisas caiam do céu como chuva refrescante de verão me parece bastante ilusório, e é por isso que trabalho, e trabalho muito para conseguir detectar quando é necessário virar chaves.

        O nome disso é retificação subjetiva e consiste em uma mudança de posição, mas não uma mera mudança aleatória envolvendo tentativa e erro só para ver no que dá, como uma brincadeira qualquer. Trata-se de algo que passa a ser sentido nas células do nosso corpo, tal qual uma claridade que se abre, amplia o entendimento de si próprio e deságua em reformas pessoais, decisões, novos caminhos e compreensão da própria responsabilidade naquilo do que nos queixamos. Quem se retifica subjetivamente dá adeus ao ó vida, ó céus, coitada de mim, arregaça a manga e segue em frente com outro olhar.

        Qualquer dia é propício para um remanejo pessoal no cenário geral da vida que levamos, porém, fazer isso no dia em que sopramos velhinhas parece ter um significado diferente, pois soa como convocação íntima para dar atenção ao que não vem funcionando bem e também continuar investindo naquilo que está dando certo. 

        Viro novas chaves hoje, aproveitando que é meu aniversário, e também porque já venho treinando cada vez mais esse negócio que a maturidade traz, que é ter nas mãos um grande molho de chaves para o autogerenciamento. Virar a chave tem muito a ver com assumir os próprios desejos, ter autonomia, construir a própria narrativa, andar pelas próprias pernas.