sexta-feira, 22 de novembro de 2024

 ZERAR O CRONÔMETRO

            Adoro metáforas. Elas permitem fazer um uso alternativo das palavras para darmos a elas novos sentidos, diferentes daqueles que lhes são usuais. Zerar o cronômetro, por exemplo, é uma expressão que pode ir além da sua literalidade relacionada ao reinício da contagem do tempo por um instrumento qualquer. Serve igualmente para indicar recomeços, como o perdão entre pessoas que se feriram, para dali nascer uma nova forma de relação entre elas. Pode indicar ainda um novo caminho no trabalho, numa atividade e até numa forma de pensar a respeito de algo.

            Zerar o cronômetro, como metáfora, é perfeito para denotar a revisão de velhos padrões e todo tipo de desapego. Pode referir-se à reformulação de atitudes e resoluções para a vida fresca que nos aguarda logo ali, aonde costumamos dar o nome de futuro. Começar de novo. Isso já foi letra de música popular brasileira. 

            É o mesmo que dar um reset na vida, adotar outras posições subjetivas, mudar o costumeiro lugar interno de onde se enxerga as coisas sempre pelo mesmo prisma. Mudar as lentes pessoais emperradas, por meio da qual tudo é sempre quadrado, estreito e distorcido.

            Diz também da construção de novos propósitos pessoais e investimento em comportamentos mais adequados ao objetivo de ser mais feliz. Focar em novas habilidades para a obtenção de resultados diversos. Quem quer zerar o cronômetro está tentando melhorar, mudar de perspectiva, apropriar-se de uma outra condição de vida.

            Zerar o cronômetro significa recomeçar, rever determinado ponto, o que guarda estreita relação com a energia tipicamente humana de reorganização interior para uma outra vivência no mundo. É buscar outras frequências em qualquer terreno, tomar decisões, dar novo start em algum ponto.

            Fazer diferente. Colocar um ponto final no que já não faz mais sentido e refazer de outro jeito. Reescrever a história, pessoal, familiar ou coletiva. É dar chance a muitos "re": rever, reiniciar, reformular, recomeçar...

            Ser grato ao que passou é importante, porque, certamente, promoveu aprendizados valiosos, mas nada impede que se possa voltar ao início para fazer diferente. Metáforas...como são boas!!

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

 VOCÊ É COMO UMA ÁRVORE 

                Para começar, imagine você no começo da sua vida como a semente de uma árvore sendo colocada na terra para germinar, crescer e se transformar em um lindo representante do reino vegetal. Neste início você será sutil, leve e frágil, mas carregado do maravilhoso potencial de, simplesmente, ser e se transformar. Você será regado, alimentado e, da mesma forma que as plantas, poderá desenvolver alguns espinhos para a sua defesa e até uma casca dura contra socos e pontapés. Você florescerá e frutificará. 

                Como a semente, você é lotado de informações genéticas, bem como um portador da incrível capacidade de viver e estar no mundo. Você crescerá entre os seus, fará parte de uma comunidade, da mesma forma que a árvore é parte da floresta. Ao longo do seu crescimento, ela será recoberta com várias camadas para adaptação ao seu meio, assim como você. No seu caso, todavia, estas camadas serão as crenças e histórias familiares que te passarão.

                Você e a árvore enrijecerão suas estruturas para se manterem firmes, ao mesmo tempo em que oferecerão sua delicadeza ao universo. E como para a árvore, também chegará para você o momento de realizar algumas podas para um renascimento parcial, instante em que, tal qual a seiva escorrendo após o movimento do facão, dos seus olhos escorrerão lágrimas diante dos cortes que a vida lhe fará sofrer, ou os cortes que você mesmo decidirá como necessários.

                Este é o tempo em que mais luz chegará até você, e então sentirá que muitas vezes é preciso se desapegar dos galhos e folhas que já não lhe servem mais, assim como o são as velhas idealizações e medos que nos mantêm na escuridão. Você precisará descascar um pouco o seu tronco rijo para que ele, ao invés de te proteger, não acabe te impedindo de crescer mais. Feito tudo isso, você gostará de olhar para cima e ver o céu ilimitado. Estará aberto para o novo em sua vida. Você conseguirá viver melhor com menos folhas, galhos e pedaços de tronco seco, ficará ficará mais oxigenado.

               Tal qual a árvore, você passará por inúmeros ciclos e dependerá sempre da natureza para viver e, mesmo que não saiba, você representará proteção para os muitos que te procurarão para um descanso encostado em você. Você se sentirá importante para outros seres e saberá oferecer os seus doces frutos, que serão suas lições às outras pessoas. Você será capaz de reconhecer as suas qualidades, assim como as árvores mostram a beleza das suas flores.

                Na sua maturidade, você conseguirá reconhecer que a união dos princípios masculino e feminino é que deram viabilidade à sua existência, assim como a terra e a água juntas deram a oportunidade de vida para a árvore. Você será capaz de sentir gratidão por isso.

                É neste momento que você será visitado por um desejo especial que brotará do seu próprio coração e então você se verá empenhado na tarefa de resgatar aquela sua essência primeira, o seu potencial criativo, a sua própria unidade e irá se perguntar... quem sou eu nesta selva? Porque todos os seres têm uma essência e você não é diferente. Você se conectará com o seu próprio interior e descobrirá que a maneira como você se identificou até hoje não é outra coisa senão as palavras e os discursos que os outros, antes de você, lhe vestiram como roupas. Você entenderá que a macieira é um ser em essência, independente do nome que alguém lhe dera e irá querer sentir a vida como ela. 

                Você, assim, entenderá que aquelas camadas que lhe deram consistência subjetiva até hoje, forram necessárias somente até certo momento em sua vida, pois se tornarão absolutamente dispensáveis a partir de quando essa reforma em você tiver se iniciado. É nesta fase que você perceberá o quanto esteve sempre preso às suas origens e sentirá que as suas raízes, que um dia foram tão importantes para que você pudesse se desenvolver, é justamente o que te paralisa perante o futuro e te impede de estar em outros lugares.

                Você irá perceber que, como a árvore, sofrerá com algumas pragas que tentarão sugar sua energia e também será vítima de alguns que aparecerão para te derrubar. Mas você estará mais do que vivo sempre que souber que sua essência interior está preservada e que ninguém poderá tirá-la de você. Você, em essência, poderá viver para sempre neste mundo.

                Assim, procure sua semente dentro de você, vá deixando que algumas folhas velhas caiam para que a luz lhe chegue de forma mais abundante. Faça algumas podas em seus galhos para ficar mais renovado. Não deixe que pedaços do seu natural tronco duro te sufoquem e te enrijeçam. Seja grato ao seu pai e à sua mãe que, como a terra e a água, permitiram que você viesse a este mundo.

                Ofereça a sua estrutura frondosa como quem oferece um colo para aquele que te procura para um descanso na alma, como o andarilho que se encosta na árvore para um momento de sombra num dia de sol escaldante. Quanto àquelas camadas que o envolveram a vida toda e que te permitiram chegar até aqui, reconheça a sua importância, mas saiba que elas podem ser modificadas, assim como nossas crenças. Talvez esta seja a única diferença entre você e a árvore.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

 FALHEI COMO PESSOA

                Que bom chegar numa altura da vida e conseguir dizer em voz alta e para qualquer um ouvir: Falhei como pessoa! Porque cansa elaborar explicações para justificar um erro. Cansa procurar as melhores palavras que sirvam de atenuantes para as pisadas de bola. Melhor e mais simples reconhecer. Minha geração cresceu sendo impedida de errar e sendo punida quando não se fazia o que era o tido como certo. Assumir uma falha era doloroso e anunciava expiação.

                Sou do tempo em que o ensino vinha a partir do castigo, da ameaça, do dedo levantado em sinal de aviso. Quem viveu na época da minha infância aprendeu a se controlar para que o comportamento saísse de acordo com as expectativas e normas vigentes. Como resultado, ficou na alma uma espécie de cicatriz disso, o medo do desacerto, esse fantasma alojado no fundo da cabeça. Parece um ente com vida própria, um parasita, um inquilino folgado ditando ordens.

                Aos dez anos roubei o jornal que o zelador do meu prédio estava guardando para a hora do seu café. Não lembro porque fiz aquilo, mas jamais esqueci da bronca que levei dele ao ter sido descoberta. Meu Deus, ele iria contar tudo para os meus pais! Nem precisou, eu mesma me antecipei e confessei a eles meu grave crime, chorando como se tivesse matado alguém. Aos onze, fiquei de conversinha e risadinha com uma amiga no auditório do colégio enquanto alguém palestrava sobre educação sexual. Também fui pega e, óbvio, punida em casa. Minha mãe me obrigou a fazer uma redação sobre o assunto, com pesquisa na Barsa e tudo. 

                Aos treze, tive de ficar trancada no quarto até esgotar o conteúdo da prova de ensino religioso marcada para o dia seguinte, para compensar a péssima nota do bimestre anterior. Já mais crescida, aos vinte e um, dei um empurrão no meu namorado no meio da rua por ele ter olhado a bunda de uma mulher que havia passado perto de nós com uma calça bem justa. O figura não me perdoou e fez da minha insegurança um motivo para me passar o maior sermão e ainda me jogar na cara que eu o havia agredido. Engoli aquilo como justo.

                Lembrando dessas e de outras passagens da minha vida, quando fui posta (e permaneci) no lugar da mais terrível infratora, lamento não ter tido serenidade e autocompaixão suficientes para, simplesmente, ter dito com generosidade para comigo: - Sinto muito, falhei como pessoa! Falhei, porque sou humana e erro, porque não sou perfeita. Não preciso ser jogada do precipício ou ser açoitada por causa disso. Falhei porque tive meus motivos, porque me equivoquei, porque senti medo, raiva, preguiça, porque fiz o que me foi possível, porque ninguém anda com os meus pés para saber das minhas aflições e dificuldades.

                A gente falha mesmo, por coragem ou covardia e também porque às vezes a melhor das nossas intenções acaba, sem querer, prejudicando os outros ou porque a gente, de vez em quando, se sente perdido, insatisfeito, deprimido. A gente falha a toda hora e isso não devia regular o nosso valor nem limitar nossos atos e tentativas futuras para uma vida mais feliz.

                'Falhar como pessoa' devia ser como uma espécie de slogan carregado de incentivo do tipo 'seja você mesmo' ou 'aparência não é essência'. Falhar é até bom, pois ensina, mas reconhecer que se pode falhar é libertador. Um peso que sai das costas e um ótimo exercício de autopiedade e aceitação.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

 O MELHOR PORQUE EU MEREÇO

            Ontem pela manhã, logo após ter acordado, como sempre faço, fui à cozinha preparar meu café com leite de todo dia. Mas ao adoçá-lo, sem querer pinguei umas gotinhas a mais de adoçante e o negócio ficou enjoado, doce demais. Fui logo construindo discursos internos como desculpa para me forçar a tomá-lo, afinal, custou dinheiro, o desperdício não combina comigo e eu não iria morrer daquilo.

           Ainda bem que me veio o estalo: por que não fazer outro café com menos adoçante e daí tomá-lo com prazer? Eu teria mesmo que pagar o preço de me sentir enjoada por causa do meu erro? Despejei a xícara inteira na pia. Fiz um mais gostoso, porque me dei conta de que eu não precisava me punir nem praticar a economia em casa tão ao pé da letra e contra mim.

            Este episódio é para lá de banal, mas talvez seja a raiz de um comportamento que, levado a outros contextos mais importantes da vida, demonstra um grau de bondade para conosco. Se é para comer, que seja uma comida gostosa, caprichada, bem temperada. Se é para se vestir, que seja com uma roupa limpa, confortável e bonita. Se é para tomar banho, que seja bem quentinho e com sabonete cheiroso. Se é para dormir, que seja numa cama macia. Se é para passar o tempo em frente à televisão, que seja para assistir a algo que acrescente. Merecemos o melhor, sempre. Vale para tudo.

              Se é para nos relacionarmos, que seja com pessoas amáveis, que nos tratem bem, com respeito, educação e amor. Não há razão para autoimposições desconfortáveis sem sentido à custa do próprio bem estar. Provei, não gostei, lixo. Seja o que for. Não fomos feitos para aturar coisas ruins que nos desagradam, que invalidam o nosso poder de dizer não, apenas por razões, muitas vezes, desconhecidas ou porque imaginamos que não somos merecedores de que é bom. 

                Conversa chata, desculpe, preciso ir embora. Convite enfadonho, obrigada, não vou. Conselho que não pedi, agradeço, mas recuso. Não é crime sair do cinema no meio daquele filme que não diz nada e também não é pecado alertar o garçom de que o ponto da carne não está como foi pedido. Se somos o centro de alguma coisa, é do nosso próprio mundo e neste lugar há de imperar a benevolência para conosco. Não são nada razoáveis os prejuízos autoimpostos em nome do que for, seja do costume ou do famigerado receio de desagradar.

                Se a gente se esforça em fazer o bem para tantas pessoas que amamos, não há sentido em não fazer o mesmo por nós. Também merecemos amor, carinho e respeito de nós próprios.     

quinta-feira, 11 de julho de 2024

 DESEJO E RECONHECIMENTO


            Um jogo com as palavras 'desejo' e 'reconhecimento' dá boas reflexões. Por si sós, elas já dariam pano pra manga. Mas a ideia aqui é colocá-las lado a lado e depois invertê-las, para mostrar os desdobramentos importantes a partir de duas situações bem opostas. Significa dizer que 'desejo de reconhecimento' é uma coisa e 'reconhecimento de desejo', outra.

            O primeiro arranjo (desejo de reconhecimento), leva à ideia de que somos todos habitados, desde o início de nossas vidas, pela vontade de que as pessoas reconheçam nosso valor, a começar pelos nossos pais ou cuidadores e depois por nossos amigos, parceiros afetivos e até por desconhecidos na rua, no trabalho, na balada. É como se recebêssemos de fora um verniz e brilhássemos mais com isso. Não está errado gostar de aplauso pelas nossas capacidades, habilidades, beleza, inteligência, pois isso faz bem para a autoestima. Ruim é quando se depende disso para ser feliz.

            Já o segundo arranjo (reconhecimento do desejo) adentra outra esfera, que é a de saber que somos recheados por desejos de todas as ordens, dos mais inocentes, que ganham passe livre para a sua satisfação, até aqueles mais obscuros que costumamos enclausurar inconscientemente no fundo de nossas mentes porque os tememos. Dos mais bobinhos, como ficar embaixo das cobertas em dia de frio, aos mais comprometedores, socialmente falando, todos os temos. E, sploiler: reconhecê-los é libertador! Mas, claro, não se trata de sair por aí atropelando tudo porque deu uma vontade louca de sentir prazer mesmo à custa de prejuízo aos outros ou até a si mesmo. O negócio é que, apenas saber dos próprios desejos, ainda que sem realizá-los por esbarrarem em impeditivos sociais, já é uma baita vantagem como medida de saúde mental para o manejo interno disso. Para viver em sociedade é preciso bom senso também.

            De todo modo, deu para notar que o melhor resultado numa eventual disputa entre ambos os arranjos seria o 1x0 para o 'reconhecimento do desejo'. A vida fica mais leve quando o like alheio não faz nem cócegas. 

            A existência humana é mais livre quando se passa do desejo do reconhecimento para o reconhecimento do desejo. Ficar na posição de dependência de alguém externo a nós aprisiona, é como entregar nossa autonomia nas mãos de terceiros. O cantor Emílio Santiago fez poesia disso alertando para o cuidado de não ficarmos dependentes da cartilha dos outros, pois isso seria como buscar um mestre para guiar nossos atos.

            O 'reconhecimento do desejo', é o que mais serve para a evolução das pessoas como entes libertos e mais felizes, pois reconhecer-se detentor de vontades e ir em busca de sua satisfação tira do cômodo lugar de não agir, não experimentar e ainda promove o upgrade de saber que não se responsabilizar pelas próprias escolhas traz um duvidoso conforto.

            Desejar é bom. Correr atrás da satisfação dos desejos é gostoso, tira-nos da zona de conforto, faz a gente agir, experimentar e, claro, assumir as rédeas da própria vida. Daí virá a deliciosa sensação de autonomia, não que isso seja fácil ou dispense algumas pelejas internas para se chegar até este ponto. 

quarta-feira, 10 de julho de 2024

 O...C...R...A


            Recentemente, decidi viajar absolutamente só. Fui para Cusco, no Peru, lugar magnífico e convidativo para uma experiência existencial no estilo de um encontro pessoal longe de tudo e de todos. Uma espécie de aventura solitária para buscar algo precioso dentro de mim. A cultura dos Incas que lá viveram há séculos me pareceu perfeita como cenário desta jornada, pois desde minha adolescência sou fascinada pelos mistérios dos povos já extintos.

            Acertei em cheio, porque lá me senti muito tocada pela forte energia das pessoas, da sua devoção religiosa, dos seus modos de vida, da sua cultura, da sua história bastante peculiar. Lá tive contato próximo com os templos sagrados, com a tecnologia misteriosa manifestada nas curvas de nível construídas nas montanhas. Minhas bases se moveram como os terremotos que castigam aquelas terras a cada trezentos anos. Para mim foi um período de grandes aprendizados, em especial, da sabedoria daquela civilização antiga com relação à natureza.

            Pairavam na atmosfera do lugar as divindades dos seus antepassados. Seus deuses ali, ao alcance fácil de quem se coloca aberto a recebê-los. O sol, a lua, a terra, a água, as montanhas, o vento, as estrelas, os animais. Cada qual com seu poder e sua influência sobre o planeta e as pessoas. Nem preciso dizer que tive arrepios de todas as ordens. O respeito dos Incas pela natureza e por suas dinâmicas de funcionamento seria algo inimaginável para os dias atuais. O sagrado presente em cada nascer do sol, em cada gota de chuva, em cada tubérculo oferecido pela terra, em cada paredão rochoso capaz de extrair um suspiro profundo por quem o reverencie. 

            Sem esquecer que eu era ali uma turista, visitei o badalado Machu Picchu, o Vale Sagrado em Ollantaytambo, além de outras atrações locais. Acariciei as alpacas e lhamas mansinhas. Tirei mil fotos. Também me entupi de chá de coca e ceviche, e me entreguei ao delicioso Chicha Morada, suco vermelho à base de um milho típico da região. 

            Mas não tenho dúvidas de que o mais impactante foi admirar aquelas ruínas dos antigos templos e imaginar como monolitos pesando toneladas foram levados montanha acima sem guindastes. Não há lógica que explique. Imensos blocos foram juntados perfeitamente uns aos outros, sem espaço para uma fina lâmina sequer, e sem qualquer coisa equivalente a parafusos para uni-los e torná-los firmes contra os chacoalhões da terra. Não havia possibilidade para o erro. Uma inteligência milimétrica estava ali.

             Foi possível ver que as faces e os vértices das construções de pedra não foram posicionados aleatoriamente, mas sim de acordo com os equinócios da primavera e do outono, e os solstícios do inverno e do verão, tudo obedecendo a prévias observações e cálculos matemáticos. Este era o seu calendário para o acompanhamento das estações do ano e, por conseguinte, das épocas de plantio de sementes e colheita dos alimentos. O controle disso estava, por exemplo, no alinhamento do nascer do sol no horizonte com a entrada do Templo Sagrado e o pico de uma  montanha numa dada época, o que permitia saber que se tratava do início das chuvas e, portanto, que era tempo de semeadura. De outro modo, o alinhamento do pôr do sol com alguma estrutura do Templo da Lua indicava a chegada da estiagem, logo, que era tempo de colher.  

            Esta complexidade, entre outras de cair o queixo, revelava o conhecimento avançado dos Incas a respeito de astronomia e agricultura, mas que tinha como fundamento uma sabedoria superior, a qual me foi apresentada e daí tudo passou a fazer muito sentido: O...C...R...A. Minha nuca já foi escolhida para uma tatuagem com estas letras. São as iniciais de quatro ações essenciais realizadas por aquele povo originário de outrora, a partir do que tudo se torna possível sem que seja preciso destruir a natureza. Envolve observá-la, conhecê-la, respeitá-la e amá-la. 

             Uma sabedoria simples que chega a assustar pela sua singeleza e elevação, mas com efeitos grandiosos. Diziam os Incas que a qualquer lugar que o ser humano chegasse pela primeira vez, haveria de praticar estas quatro ações antes de agir apressadamente.

             Aquele povo executou estas ações antes de se estabelecerem definitivamente nos Andes peruanos e o acerto de suas práticas estava, necessariamente, relacionado ao ato de observar previamente o lugar em que chegaram, para que pudessem conhecê-lo, por saberem que é somente conhecendo que se consegue respeitar e é somente respeitando que se pode amar.

            São quatro ações possíveis a qualquer ser humano. Já estão dentro de seu coração, prontas para serem realizadas por onde quer que estejam. A simplicidade desta sabedoria não demanda maiores conhecimentos ou elaborações, bastando sua intenção verdadeira. Observar para conhecer, conhecer para respeitar, respeitar para amar.

           


terça-feira, 9 de julho de 2024

 TOLERÂNCIA AO MAL ESTAR

            Qualquer mal-estar devia ser acolhido apenas para indicar que algo precisa ser alterado. Devia ser encarado como alarme para mudar desconfortos no terreno pessoal, relacional, profissional etc. Devia ser visto como a febre, que é um aviso de que algo invadiu nosso corpo, indicando a necessidade de procurar ajuda médica. Devia ser como o cheiro de gás, que faz todo mundo correr para encontrar algum vazamento e impedir uma explosão. O mal-estar devia ser como um guizo no pescoço de um animal feroz perto de nós para forçar-nos a usar as pernas para correr do perigo.

            Já deu para perceber que estas são metáforas para dizer que algo que não está bom, que nos ameaça, precisa de atenção e atitude. Se não cuidarmos da febre, se não desligarmos o gás ou não fugirmos da fera, alguma consequência desagradável nos aguarda.

            Mas a questão é que existe algo do mal-estar que nos paralisa e nos mantém na autocomiseração cansativa quando a lógica determina afastar-se dele. O ser humano, muitas vezes, permanece ou volta para o mesmo lugar onde doía, guarda em si a capacidade do auto-boicote. Tecnicamente, o nome disso é gozo, compulsão à repetição ou pulsão de morte.

            Evidente que cada um tem seu tempo, maior ou menor, de agir para desligar-se do que está ruim, porém, o não agir para a recuperação do bem-estar já é outra coisa, porque adentra o terreno do patológico. Já se começa a pensar que alguma coisa relacionada a um prazer mórbido certamente existe naquilo que chegou como alerta vermelho e acabou ficando. 

            É coisa típica do ser humano isso de sofrer e não fazer nada, de manter-se no lugar de dor e desprazer, de martirização, ao ponto de ser necessário pensar que alguma coisa nos bastidores da mente força a criatura a ficar inerte e não acionar seu mecanismo de proteção para colocar-se numa situação melhor. Uma espécie de tortura interna e que é praticada pela própria pessoa. Louco né? Ainda assim, absolutamente comum.

            Na natureza bicho não gosta de sofrer, então por que isso acontece com as pessoas? Essa é uma pergunta de milhões que se desdobra em outras. O que de pior poderia existir diante de uma tomada de atitude para livrar-se do sofrimento? Seria o medo da morte? Definitivamente, não, porque não me parece haver uma relação direta entre morrer e tentar viver melhor, quer dizer, ninguém morre por apostar numa vida melhor, pois, na pior das hipóteses, o resultado será o quê senão um desacerto onde caberão outras tentativas para ajustes e assim sucessivamente?  

            Ontem escutei um podcast que até dei risada quando alguém falou que a paralisia perante o sofrimento é igual a ficar na 'merda quentinha'. O sujeito ali até que tem algum conforto, alguém discorda? A hipótese de 'adaptação ao sofrimento' pode ser uma chave para se pensar que é uma característica humana habituar-se a tudo, até ao que está ruim. Daí ressurgem aquelas mesmas perguntas: que medo é esse de mudar? Qual seria nossa referência biológica, cultural ou histórica que desmotiva uma reviravolta? Por que será que o costume ao que está ruim é mais confortável do que uma aposta na experimentação de algo diverso?

            Os estudiosos do ser humano e da sua psiquê têm lá suas explicações, mas eu prefiro adotar aquela mais poética e filosófica da Marina Colasanti, segundo quem 'A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde de si mesma'. Pretensiosamente, eu acrescento que talvez a gente se acostume a se acostumar.

            Ninguém está imune a isso, então, que tal nos forçarmos um pouquinho a pensar que o que a vida oferece de melhor é, justamente, a possibilidade de caminhos diversos? Mas não só pensar na cabeça, e sim deixar que um convencimento íntimo de que é preciso mudar tome conta de nossas células e se torne uma vontade visceral de apostar em algo diferente e, cá pra nós, ninguém vai morrer disso.


sexta-feira, 5 de julho de 2024


A MULHER E SEUS AVATARES


            Abrindo uma rede social na semana passada, a primeira postagem que apareceu me chamou a atenção por veicular um comentário ácido e depreciativo a respeito da conhecida série americana Sex and the City, passada nos anos 2000, a qual eu assisti inteirinha e, particularmente, gostei bastante. Desde então fiquei pensando a respeito e percebendo que minha bússola interna pendia para a direção que qualificava como infelizes aqueles comentários. 

            A série foi acusada de ter servido para mostrar quatro mulheres com mais de 40 ou 50 anos de idade comportando-se como adolescentes, o que era entendido como um péssimo exemplo. A primeira coisa que me ocorreu, de forma irônica, foi um 'ora, como ousam estas mulheres viver suas vidas do jeito delas!'. 

            Basicamente, o pano de fundo do que se pode classificar mais como uma comédia eram os encontros de quatro amigas (Carrie, Charlotte, Miranda e Samantha) que, em meio às suas vidas particulares, juntavam-se em cafés e restaurantes de Nova York para conversas aleatórias a respeito da vida de solteira e de suas tentativas de encontrarem amor e prazer em relacionamentos afetivos.

            Carrie, a protagonista, era a romântica inveterada que procurava o amor em cada esquina e seus constantes fracassos eram a matéria prima para o seu trabalho de escrever para uma coluna de jornal contando sobre dúvidas e dilemas femininos tão típicos das mulheres, assim como tão desconhecidos dos homens e, às vezes, até das próprias mulheres. A romântica buscadora de relacionamentos com amor como estilo de vida, vivendo-os temporariamente e desiludindo-se, mas sempre indo adiante sem desistir por acreditar que uma hora encontraria algo com maior sentido para si.

            Charlotte era a certinha, que sonhava com vestido de noiva, casamento, vida familiar estável, o maridinho chegando do trabalho ao final do dia e para quem ela preparava um jantarzinho à luz de velas. A comportadinha que casou de véu e grinalda e, acreditando que casamento é para sempre, frustrou-se porque o marido não dava conta do recado, essa mesma que mais tarde, para caber na vida de outro homem, precisou frequentar um curso de conversão ao judaísmo como pré-requisito para o novo relacionamento.

            Miranda, a única que teve um filho, não se sentia tão confortável com a maternidade, muito embora amasse a criança. Sentia-se culpada porque, afinal, a sociedade lhe impunha a crença de que toda mãe deve ser feliz neste papel e deixar de lado seus interesses pessoais.

            E Samantha, por fim, o estereótipo da mulher que não pode existir na sociedade, isto é, a depravada que goza muito, a puta vadia louca por sexo, cujos desejos e fantasias corriam soltos com homens diversos, mas que no fundo também gozava com buquês de flores, olhos no olhos e palavras doces no ouvido.

            A verdade é que Sex and the City me parece uma caricatura bem humorada que fala dos avatares que cada mulher carrega dentro de si. Assim, as quatro personagens da série representarim algumas das inúmeras nuances que serpenteiam no espírito de cada uma. Então, longe de concordar com aquela crítica infame que eu li, a série de TV é uma forma inteligente de mostrar a diversidade em uma só mulher, que, ninguém discorda, passa longe das confabulações masculinas. Talvez até a série tenha pretendido representar o percurso cronológico pelo qual passa uma mulher ao longo de sua vida, caso em que se poderia pensar em Carrie como a primeira fase da menina sonhadora dos contos de fada, passando para a fase Charlotte da mulher que casa e com o tempo se desilude, seguindo-se com Miranda que vira mãe, mas ainda conserva em si algo de um feminino não preenchido que ainda não sabe bem o que é e, finalmente, a fase Samantha como aquela cuja maturidade a faz deixar de lado as caraminholas inúteis de uma vida inteira para focar em seus desejos e em uma vida com mais prazer. 

            Assim, pensei cá comigo que quem escreveu aquele comentário não fez uma tentativa mais inteligente de captar o espírito da coisa ou de buscar uma mensagem mais consentânea com o mundo em que vive. Por certo, nunca percebeu que cada mulher é o palco de inúmeras ideias, tanto as que são impostas de fora sem consciência disso, quanto as que parecem um pecado mortal mesmo no espaço restrito de sua própria cabeça.

            A cultura patriarcal e machista que nos rodeia nunca deixou de exercer o seu poder sobre as mentes femininas. Que atire a primeira pedra quem que nunca viu na vida real ou em filme, numa festa de casamento, a mulherada solteira se acotovelando para agarrar o buquê arremessado pela noiva, ou que nunca tenha se visto uma mulher responder a alguém a pergunta sobre sua vontade de ter filhos e quando, pois é fato que o mundo inteiro cobra isso há séculos. A maternidade parece uma tatuagem na pele da mulher, o que não se vê no homem em relação à paternidade. Que outra pedra seja atirada pela mulher que não guarde em suas entranhas a loba cujos uivos sejam a expressão do seu desejo tão impedido de descarga, até mesmo em quatro paredes. E não bastasse terem de equilibrar tantos pratos na vida, as coitadas também não podem nem fazer piada ou brincar com as suas próprias aflições e nem dizer ao mundo em formato de entretenimento um pouco do que é ser mulher...

            Isso até me faz lembrar do conto infantil da pequena sereia em que Ariel apaixona-se por um homem, mas, para poder conquistá-lo, vem à superfície pedir à bruxa que transforme seu corpo em um corpo de mulher. A bruxa concorda, mas desde que Ariel pague o feitiço abrindo mão de sua própria voz, ficando muda. Questionando sobre como seria possível conquistar o homem sem voz, a bruxa então lhe responde: - Pra que voz se lhe dei quadris? Moral: calem a boca, mulheres, e sirvam de objeto aos homens!

            Não é de hoje que as mulheres não tem voz. Já foram chamadas de feiticeiras e até queimadas vivas quando revelaram um saber sobre ervas curativas e outros conhecimentos que ameaçavam o pedestal masculino. Já precisaram impedir seus desejos e vontades para encaixarem-se nos papéis sociais que lhe foram determinados pelos homens, ao preço de somatizações em seu próprio corpo, e as histéricas oitocentistas foram a prova disso. Tiveram de formar grupos com outras mulheres para ficarem mais fortes no estilo 'o todo é maior do que suas partes' para conseguirem lutar por uma posição de igualdade no mundo, isto é, as feministas com seus braços erguidos e seus gritos agudos de revolta. Já tiveram que ouvir como verdade absoluta que atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher, como se estar ao lado dele lhe fizesse sombra. A lista não para por aí.

            É por isso que rendo minhas homenagens aos inventores e inventoras da série americana que deram voz e visibilidade ao que se passa num coração e num corpo femininos, seja lá onde queiram estar e com quem. Porque talvez a ideia de mostrar um pouco de como a mulher é moldada a pensar e agir, por imposição velada e subliminar, possa trazer alguma luz sobre todos.

            Para aquela pessoa que fez o comentário infeliz dirigido à série de TV desejo nada mais do que um despertar ainda nesta vida, para que possa contribuir com um pouco mais de igualdade entre homens e mulheres, bem como com empatia para um mundo menos opressor para a metade da humanidade mais atingida com isso.


segunda-feira, 1 de julho de 2024

 ESQUECENDO A MÃE

            Há muitos anos, minha família era proprietária de um apartamento na praia no qual costumávamos passar as férias escolares. Nas janelas dos cômodos havia um espaço destinado à colocação de floreiras, que era usado por minha mãe para as suas margaridas e azaleias e cuja jardinagem era afetiva, pois envolvia conversar com elas, além de regá-las e limpá-las. Mas numa das ocasiões em que lá chegamos para passar dois meses inteiros, deparamo-nos com um cenário diferente, sem flores, porém, não vazio. O zelador havia tirado o que acabou ficando murcho e seco. No lugar, um ninho e uma pomba chocando dois ovos.

           Naquele período do nosso descanso anual, tivemos o prazer e o privilégio de ver o nascimento de duas pombinhas, assim como de ir acompanhando o envolvimento daquela ave mãe com sua prole, o aparecimento das primeiras penugens, o desenvolvimento de seus corpinhos. Pudemos testemunhar todos os dias a mãe pomba trazendo minhoquinhas em seu bico para alimentar seus bebês. Foi comovente ver este espetáculo ali tão perto de nós!

            Deu tempo ainda de presenciarmos as duas pombinhas, já mais crescidinhas como adolescentes desengonçadas, desfilarem dentro da floreira enquanto não se sentiam seguras para arriscarem seu primeiro voo. Batiam suas asinhas e davam pulinhos sem sair de perto do ninho, e daqueles pulinhos dentro da floreira onde tinham nascido, as pombinhas passaram a dar saltos em direção à floreira ao lado, já mais exibidas e confiantes. Foi a partir deste estágio do crescimento daquelas criaturinhas que não vimos mais a mãe pomba. Ela havia ido embora, esgotado o seu papel. A natureza lhe havia dado o conhecimento de que a hora de seus rebentos ganharem os céus estava próxima.

            Logo logo mesmo pudemos confirmar que os dois filhotes já podiam por em prática a sua independência e se lançar para o infinito com a suas próprias asas. Foi lindo, mas só mais tarde construí em minha cabeça um entendimento com camadas de poesia e filosofia a respeito da função materna.

            Pude ver na prática que é apenas até certo ponto que as mães darão de si em prol da sobrevivência dos seus filhotes, a quem caberá mais tarde correrem pelo mundo que os convida ao desafio de viver. Pelo seu próprio lado, as mães até que aguardam a despedida dos seus filhos desejando que a certa altura sejam esquecidas por eles, coisa que se vê como absolutamente necessária para o voo solo, num sentido simbólico, é claro...ou nem tanto.

            O episódio das pombas no apartamento da praia deu-me a dimensão de que isto  é, justamente, o significado de honrar a mãe, receber o seu legado, incorporar a sua herança que é composta por um saber especial para a continuidade da vida e que somente se completa a partir de um processo de separação imprescindível para o crescimento emocional, ainda que doloroso.

             Esquecer a mãe, no sentido de não depender mais dela, é o caminho para o crescimento psíquico, o amadurecimento, é o que permitirá aos filhos lançarem-se para a vida e para o desconhecido. É abraçar as incertezas e retirar-se de uma posição de conforto que não contribui para o encontro com o novo, para o aprendizado diverso e para outras formas de felicidade. 

quarta-feira, 19 de junho de 2024

TODA A VERDADE

           Imagine a seguinte situação, aliás, bastante comum nos foros da justiça de qualquer lugar do nosso planeta: a de uma testemunha que é convocada num dado processo judicial, para que preste o seu depoimento acerca do que sabe, viu ou ouviu a respeito de certos fatos envolvendo as pessoas em litígio. Suas declarações serão necessárias para que o juiz da causa possa dar o seu veredito e, com isso, alcançar a paz social almejada.

            Pois bem, chegado o momento processual, a testemunha é chamada a se sentar em frente ao juiz e, antes de tudo, ouvir deste uma pergunta obrigatória prevista na lei, disparada da seguinte forma: - Sob as penas da lei, compromete-se a dizer toda a verdade do que lhe for perguntado? A resposta é, invariavelmente, sempre a mesma: - Sim!  Lógico, ninguém é louco de, olhando nos olhos da autoridade judiciária, dizer que não dirá toda a verdade do que sabe. E assim feito, todos acreditarão que a testemunha dirá mesmo toda a verdade, que os fatos serão esclarecidos e que a costumeira justiça será feita. Será?

            É neste ponto que começo a brincar um pouco, migrando do meu conhecido território da prática jurídica para entrar no meu também conhecido território da psicanálise, fazendo uma espécie de debate entre estas duas áreas. Começo dizendo que aquela testemunha que prometeu dizer toda a verdade do que lhe for perguntado, já teria começado sua participação mentindo, ainda que não o saiba disso, porque, no máximo, será capaz de contar uma parte, apenas.

            Não se trata de deslealdade ou crime de falso testemunho, e sim porque é próprio da verdade nunca poder ser dita em sua inteireza, por ninguém. Ela escapa e não se deixa apreender completamente. Uma parte dela escorre e jamais se deixa revelar. É como se sobrasse sempre um resto de verdade que foge da conversa e que não se deixa comunicar.

            Mesmo quem se propõe a dizer toda a verdade não o conseguirá, simplesmente, porque isto é impossível. A verdade será sempre parcial, semi-dita e a razão disso é que a linguagem humana não dá conta de expressar tudo. Por isso é que o psicanalista francês Jacques Lacan foi brilhante ao mencionar sobre a 'impotência do saber', ao afirmar que a verdade é apenas um ideal humano. Ele explicou que a verdade se serve das palavras para ser dita, contudo, as próprias palavras são limitadas, logo, há algo da verdade que as palavras não conseguem transmitir.

            Além do mais, o que é a verdade, senão aquela em que uma pessoa acredita? Verdade é, assim dizendo, sempre pessoal, restrita, não-toda, ficcional. Isto mesmo, a verdade é sempre a ficção de cada um. Achar-se detentor de uma verdade é enganar-se.

            Desta forma, aquela nossa testemunha, apesar de ter prometido, jamais dirá toda a verdade para o juiz, o que não quer dizer que mereça um processo nas costas, pois não lhe era mesmo possível dizer tudo. Pelo lado do juiz, a ele não caberá outra posição senão a de se contentar com o foi apresentado e tomar como verdade a parte dos acontecimentos veiculada pela testemunha por meio de suas palavras e, quem sabe, admitir que ele próprio, no seu ideal de fazer justiça, também o conseguirá apenas parcialmente.   

            

sábado, 1 de junho de 2024

   

LOCALIZAR-SE 

            Uma expressão que sempre aparece nas minhas sessões de terapia é o 'localizar', mais especificamente, em sua modalidade reflexiva, isto é, 'localizar-se'. O dicionário revela-a como um verbo transitivo direto cujo significado é o ato de encontrar o lugar onde está algo ou alguém. A partícula 'se', em sua função gramatical, serve para restringir o sentido à pessoa a quem ela está referida.

            Como se vê, é simples a apreensão do sentido usual do termo, ainda que se possa esticá-lo para que outros sentidos surjam, como quando sua aplicação é usada no território da subjetividade humana, pois ninguém duvida que, com alguma frequência, nos perdemos sem sair do lugar. O localizar-se, então, vem como solução contra esta sensação de descaminho interior.

           O fato é que a palavra em questão, no contexto da busca de si, indica a necessidade de conhecer nosso lugar subjetivo em relação às pessoas em geral, bem como em relação aos fatos e às histórias que vivemos. E é o discurso de cada qual que denuncia sua posição, por exemplo, como a de vítima injustiçada, alvo de ataques por parte de tudo e de todos, assim como a de infeliz descontente da vida, a de infantil que teme responsabilidade, a de amedrontada, a de otimista, a de soberba, a de inferior, a de superior etc. A cada uma das infinitas posições subjetivas que as pessoas ocupam no mundo corresponde um efeito em suas vidas, assim como também mostra como é a luta pessoal em prol da sua sobrevivência emocional.

            Querer saber disso é rumar para fora da penumbra da inconsciência para reconhecer o posicionamento subjetivo ocupado e, consequentemente, avançar no autoconhecimento, abrindo-se para a possibilidade de um remanejamento interior. Quem não sabe da sua posição no mundo está perdido e acaba como vítima da própria escuridão, que é também o ambiente master para o aparecimento de fantasmas interiores, assim como é o caldo perfeito para a proliferação de medos.

            Guardadas as devidas proporções e contextos, o cinema adora lançar filmes de terror em que a personagem principal, perdida num lugar desconhecido, geralmente de noite, busca refúgio numa cabana no meio da floresta. Anda a passos lentos e cheios de medo para conhecer aos poucos o espaço que a cerca, para, justamente, localizar-se. Tateia paredes para se familiarizar com os cômodos e, devagar, vai abrindo portas, tropeça em degraus não visíveis por causa da ausência da luz e todo este cenário é montado para a fantasia correr solta e eis que o monstro aparece, aproveitando-se das circunstâncias.

            Tudo isso é para dizer também que encontrar nossa posição subjetiva perante a vida é como tatear paredes para saber onde estamos, abrir as cortinas da janela e deparar-se com uma nova luz, ver um enquadramento novo para as coisas, ampliar a visão e descobrir, enfim, que o que nos assombrava antes não passa de um fruto da imaginação, ainda que real até certo momento. Mas esta tarefa não pode ser considerada simples nem imediata como um estalar de dedos, precisando de tempo de elaboração, às vezes anos até. Localizar-se é encontrar um lugar melhor dentro de si próprio, onde se possa reconhecer as coisas e as pessoas por outro ângulo, e constatar que aquilo que antes fazia doer já não existe mais, já se foi.

            Localizar-se é enxergar-se, é conhecer o lugar onde habita a nossa subjetividade, é conseguir promover retificações internas, é o mesmo que se encontrar dentro da bagunça que nossas mentes produzem e ganhar a dissolução de muitos dos nossos fantasmas. Localizar-se é saber que o 'onde eu estou' é tão importante quanto o 'que eu sou'.

             

            

domingo, 26 de maio de 2024

 O SAPO DO BANHADO


            Se há algo que subsiste como dogma no grande caldeirão de verdades da humanidade é que cada um tem seu tempo e maneira para curar suas dores. Isso indica que é necessário respeitar os ritmos e estilos próprios de cada um até que consigam dar conta do que a vida lhes traz como desafio individual. E longe de ser uma benevolência, trata-se de um direito que lhe cabe, talvez, dos mais sagrados.

           É como se cada pessoa tivesse dentro de si um fundo de recursos emocionais acumulado aos poucos e variável de acordo com sua idade, suas relações familiares, suas vivências e acontecimentos em geral. Isto é o mesmo que afirmar sobre a necessidade de se colocar no lugar dos outros, cujo tempo de elaboração em face das lutas que enfrenta é muito particular e que cada calo é proporcional à ferida sofrida.

            Quando se está protegido com um coturno de solado grosso, não há como exigir que o ser humano ao lado, descalço num chão de pedregulho, não sinta dor. Ignorar que cada um tem seu tempo é pura ausência de compaixão e de empatia, além de um egoísmo, do brabo, assim como falta da noção de que as pessoas vão até onde conseguem num dado momento de suas vidas, só conseguindo ultrapassar seus limites quando os velhos ferimentos não latejarem mais e possam ser úteis como referencial de superação para outras dores ou medos que vierem, sejam reais ou imaginários.

            Sim, dores ou medos imaginários também contam, pois eles só são bestas ou bobos aos olhos de quem está de fora, sendo muito reais para quem os experimenta. É por isso que não há como obrigar alguém a desprender-se dos seus fantasmas como quem abaixa um simples véu do rosto. Dores e medos ilusórios são tão verdadeiros e concretos para uns quanto não o são para quem não acessa a singularidade alheia. É porque a realidade será sempre individual, e particularmente relacionada às histórias pessoais, que, bem ou mal, influirão na visão de mundo de cada um perante o chamado da vida para algum enfrentamento. É o mesmo que dizer que cada um enxerga o mundo conforme sua própria lente.

           Assim, não adianta se fiar na crença de que todas as criaturas têm ferramentas emocionais equivalentes contra as adversidades. É como oferecer o oceano para o sapo do banhado e criticá-lo por sua recusa. Se o bichinho só domina o seu habitat, é certo que um mundo novo lhe será assustador, ainda que não o seja para o tubarão que o propagandeia. Para este tubarão que tenta seduzir o sapinho com as maravilhas que conhece, dizendo-lhe sobre um lugar bem melhor do que o banhado pequeno e raso, estará faltando a lição número um da convivência, que é o respeito ao outro, aos seus processos, às suas escolhas.

            É até possível imaginar que o sapinho se sentirá encantado com os mares, mas será necessário respeitar o seu tempo e a capacidade das suas perninhas até que chegue lá, caso queira, inclusive, pois o seu banhado pode ser também muito bom e estar no âmbito de suas escolhas. Pode ser que o sapo diga ao tubarão que seu conforto está na água calma e doce do seu banhado e que as correntes marítimas salgadas, ainda que tentadoras, estão fora de suas cogitações, não são a sua morada. Forçar alguém a algo é desumano e violento.

            Como disse Simone de Beauvoir "é meu passado que define a minha abertura para o futuro... o meu passado é a minha referência que me projeta e que eu devo ultrapassar... ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância". 

terça-feira, 21 de maio de 2024

 LIGADOS DE ALGUMA FORMA

            Era um homem alto, magro, com a calvície dominando os poucos cabelos finos e prateados. Seus olhos, de um azul claro e profundo, eram expressivos e guardavam muitas histórias. Suas orelhas eram levemente pontudas e delas saíam tufos de pelos. Sua nuca era enrugada pela velhice e pelo sol tomado durante toda uma vida com a proteção de apenas um chapéu de palha. Os dedos de sua mão direita eram bastante amarelados de tanto segurar o cigarro, vício do qual nunca se afastou. Andava e falava vagarosamente.

            Este era o meu avô materno. Seu nome era Waldemar. Era também meu padrinho de batismo. Morreu aos 74 anos de idade, pouco depois de eu completar os meus vinte e um. Que saudades de você, vô! Jamais esqueceu de comprar na vendinha da esquina a barra de chocolate de que eu tanto gostava. Era ele também quem me dava mesada na adolescência. São dele muitos dos livros que eu guardo até hoje em casa.

            Gostava muito de ler comendo doces ao mesmo tempo. Livros, revistas, qualquer coisa que lhe caísse à frente. Usava seus óculos de lentes grossas e armação preta. Tinha hábitos simples.

            Foi de tudo na vida. Começou a trabalhar como aeronauta, mais especificamente, como rádio-operador de voo, tendo atravessado os céus do Brasil inteiro por meio de aviões de empresas aéreas que já nem existem mais. Também trabalhou numa companhia de transporte ferroviário, já extinta.

            Depois de se aposentar, comprou uma chácara e lá ia todos os dias de tarde para capinar, colher frutas, cuidar das plantas, das galinhas, assim como conversar com o Seu Bressan, vizinho do terreno ao lado, dono do Tito e do Caco, os cavalos a quem dávamos capim através da cerca que dividia as propriedades. Chegou a construir uma casinha branca nesta chácara, da qual eu tenho uma forte lembrança, capaz de preencher um espaço tão real quanto simbólico em minha memória.

            Vendida a chácara após alguns bons anos, o velho alemão foi ser escritor. Escreveu mais de três mil crônicas, todas com a ajuda da sua máquina de escrever obsoleta, mas que nunca lhe deixou na mão. Está comigo uma grande parte daqueles papéis, hoje escurecidos pelo tempo. Gostava de conversar sobre tudo, desde política, história, geografia, causos... Era metido a saber de tudo, interessava-se por tudo.            

            Hoje passei o dia inteiro pensando nele. Em meus ouvidos veio a memória de sua voz grossa, assim como a sua boca fumacenta por causa do cigarro. Meus olhos também pareceram captar o seu semblante, como se ele estivesse bem à minha frente. 

            Mas a maior mesmo foi na hora do meu banho, em que cheguei a cantar umas quatro vezes a musiquinha que ele cantava para mim quando criança. A letra , bem singela, falava de acordar uma tal de Dona Maria, porque já eram oito horas e o sol já raiava e os passarinhos faziam seus ninhos e lá, lá lá e a tal da Dona Maria precisava levantar-se para a lida do dia. Ao final da cançãozinha, meu avô fazia cócegas na cintura magrela da menina de 5 anos que eu era. Eu sempre sabia do final desta brincadeira, mas pedia para ele repetir mesmo assim.

            Já faz 33 anos que ele partiu e muita saudade brotou no coração da neta que tanto amava aquele velho homem. Achei muito engraçado ter ficado o dia inteiro lembrando do meu avô Waldemar: sua voz, seu rosto, seus dedos amarelos, suas histórias. No fim da tarde, percebi o motivo dessa lembrança intensa, quase como uma revelação surpresa vinda à minha mente: hoje é 21 de maio, o aniversário do meu querido avô.            

            Para mim, coincidências não existem, mas se existem, não quero acreditar nelas. Prefiro pensar que meu avô esteve ao meu lado todo o tempo no dia de hoje, para dizer que temos um fio de luz que nos une para sempre, porque amor é coisa que transcende o tempo e a própria vida.

sábado, 18 de maio de 2024

                                        

AMOR E DEVER
(tem spoiler)

            Ontem assisti a um filme muito gostoso, daqueles que conseguem preencher o vazio de uma madrugada sem sono. Uma história de amor às avessas, contrária ao roteiro clichê da mulher casada que se apaixona por outro homem. Um pano de fundo sensível ambientava uma história de amor marcada pelo amargor sentido no contexto de um triângulo amoroso, em meio ao qual foi possível ver nascer o amor verdadeiro no lugar de um vínculo antes enfraquecido.

            "O Despertar de uma Paixão" é o título do drama romântico passado nos anos 1920, onde um jovem casal britânico se muda para a China rural para tentar combater um surto de cólera. Walter é um dos médicos sanitaristas destacados para a missão e sua esposa Kitty, que o acompanhara, encontra um serviço voluntário junto ao orfanato religioso local.

            A viagem para a China ocorrera poucos meses após o casamento afetado por uma crise nascida da desilusão de Walter ante à descoberta do envolvimento de sua esposa com outra pessoa, bem como pelo desprezo a ela desde então. Kitty, que havia se casado apenas por imposição paterna, nunca negou seu sentimento por Charles, de quem acaba se afastando devido à necessidade de acompanhar seu marido àquele país.

            O desenrolar de toda a história é muito bonito, ainda que permeado por inúmeras dificuldades, mas, no que verdadeiramente interessa aqui, a narrativa destaca o médico desiludido se encantando aos poucos com a dedicação de sua esposa junto aos necessitados, bem como junto a ele próprio, cuja saúde estava a todo momento ameaçada pela proximidade com tantos doentes. É assim que Walter experimenta o renascimento do seu desejo. Kitty, por seu lado, também começa a enxergar o marido com outros olhos, por ver nele o envolvimento com a causa nobre que lhe fora conferida, assim como por estar sempre atento ao bem estar dela. A antiga frieza da convivência vai dando lugar ao nascimento de algo autêntico, pois ambos redescobrem a si mesmos e o relacionamento, transformando a crise inicial em uma profunda conexão emocional.

            O filme capturou minha atenção de maneira especial em uma cena que revi ao menos três vezes. Foi no diálogo entre Kitty e a Madre Superior do orfanato, quando esta, sem nada saber da história do casal, expressa o que, para mim, representou uma verdade descortinada. Falou dos enlaces em que há amor, mas não há dever e daqueles em que há dever, mas não há amor, e concluiu dizendo que a graça é alcançada no coração quando o amor e o dever estiverem juntos. Achei lindo.

            Kitty, inicialmente, havia encontrado o amor junto ao seu amante, mas não possuía qualquer dever perante este, ao mesmo tempo em que se mantinha junto de seu marido apenas pelo dever do casamento, mas sem amor. O nascimento paulatino do sentimento por Walter fundiu-se com o dever já existente, o que fez Kitty experimentar a autenticidade do que a freira lhe dissera, podendo sentir a graça adentrar seu coração.

            Para mim, quando amor e dever estão juntos, talvez nem haja divisão possível, e sim uma unidade, na medida em que tudo é sentido como uma coisa só. O dever é cumprido com alegria e assumido como escolha consciente. Pelo lado do amor, este promove o surgimento natural da vontade do cumprimento do dever, perpetuando o vínculo estabelecido.

            A harmonização destas duas forças, muitas vezes vistas como opostas, pode representar a união entre o desejo e a responsabilidade moral, permitindo que se sinta alegria tanto no que fazemos por amor, quanto no que fazemos por dever.

            O dever, imbuído de amor, deixa de ser um fardo. O amor, quando mesclado ao dever, ganha profundidade e propósito, transforma-se em desejo genuíno de honrar o compromisso entre os seres. Neste estado de harmonia, amor e dever se sustentam mutuamente.

terça-feira, 14 de maio de 2024

 JÁ TUDO CONSERTADO

            Vi recentemente na TV que Susana Vieira acabou de lançar uma autobiografia. A atriz global tem vindo a público anunciar a imortalização de sua história, desde a infância até os dias atuais. Aos 81 anos de idade resolveu dividir com o público os bastidores de sua própria vida, contando a respeito da sua carreira nas emissoras brasileiras, seus casamentos, seus filhos, seus netos.

            Numa das suas aparições para divulgar a obra, chamou-me a atenção a seguinte frase dita com bastante entusiasmo para o telespectador: - O livro é alegre, divertido, fala da minha história e de algumas coisas que deram errado, mas já tudo consertado! Foi aí, nesta parte final em que ela fala de coisas já consertadas, que algo me capturou de um jeito sutil e ao mesmo tempo profundo, porque foi como uma garantia de que tudo um dia volta a ficar bem. O que ontem deu errado amanhã encontrará novos lugares e configurações.

           Foi uma frase que valeu como depoimento de alguém que, com conhecimento de causa, pode dizer que na vida tudo o que se submete à passagem do tempo acaba se acomodando de alguma maneira, se rearranja, se recupera, para de latejar.

            Aquela fala rápida da Susana em prol de sua obra soou como uma dica para não ligar para o que dói hoje, para agarrar as várias possibilidades que aparecem na vida, para não deixar que a força do medo domine, porque lá na frente, aos 81 anos de idade ou mais, tudo estará consertado.

           Tomei esta palavra como um sossego antecipado capaz de neutralizar minha fantasia que às vezes dita um futuro turbulento tão dependente do que eu fizer hoje. Foi como se eu tivesse ouvido diretamente dela 'Vai, boba, aproveita o que a vida está te trazendo, porque lá adiante tudo estará consertado!' Foi como me dizer que sair da linha, desobedecer a protocolos sociais, fazer-se de surda para alguns discursos morais vigentes, não é o fim do mundo, afinal, quando se estiver na casa dos oitenta, tudo estará consertado.

            Achei que a Susana Vieira foi bastante feliz no que disse, ao menos para mim, que identifiquei nas suas palavras uma forma leve e verdadeira de recomendar que o importante é viver, fazer história, tomar os erros como marcas de uma vida bem vivida. 

            Passei a vê-la não mais apenas como a grande atriz nacionalmente conhecida, mas também como uma senhora octogenária que consegue brincar com sua trajetória, quem sabe recomendando dar risada de medos, porque estão fadados a minguar e assumir o status de passado curado, ressignificado, ou melhor, consertado.


Fonte da imagem: https://tribunadonorte.com.br/viver/susana-vieira-80-anos-decada-de-1970-marcou-a-carreira-da-atriz/

terça-feira, 7 de maio de 2024

 AMOR E DISPONIBILIDADE

                Recentemente, assisti a uma live na internet cujo tema era o amor. De duas uma: ou eu estava sem nada para fazer a ponto de poder ficar absorta por uma hora e meia com os olhos e, principalmente, os ouvidos grudados na tela, ou o assunto é de tal importância que mereceu uma pausa no cumprimento das minhas obrigações. Fico com a segunda alternativa, pois penso que nada em nossa existência é mais importante, desafiador e vital do que o amor. Ninguém vive sem amor, ninguém sobrevive sem amor, melhor dizendo.

              Para começar, falou-se do amor romântico explicado por meio de um retorno ao Banquete de Platão, mostrando que desde tempos remotos de nossa história, este sentimento sempre esteve em pauta na vida dos seres humanos, que até hoje buscam sua outra metade, após terem sido cortados ao meio pelo poderoso Zeus mitológico, com a ajuda de Apolo. 

              É daí que teria vindo a ideia do(a) parceiro(a) como a cara metade ou a metade da laranja que todo mundo fala e canta por acreditar que, ao encontrá-lo(a), experimentará a completude. Então o amor seria a tentativa de reunificação, de resgate do paraíso perdido, o que é um tanto impossível e utópico, diga-se de passagem, de sorte que alguém que diga tê-lo encontrado está mergulhado na ilusão.

              Como eu já havia ouvido esta explicação mítica, prestei mais atenção noutro ponto da conversa, mais prático e menos filosófico e que falava sobre o amor próprio que cada um precisa conservar como luz permanentemente acesa dentro de si. A questão do amor próprio estava sendo abordada a partir de um viés diferenciado e sobre o qual eu jamais havia pensado, por envolver a ideia de disponibilidade.

              Disponibilidade, segundo a live, é um indicador para avaliar o quanto de mim, do meu tempo, das minhas energias e até das minhas vontades estão aí para o uso amoroso. É uma medida para avaliar o quanto alguém está aberto para dar de si e, ao mesmo tempo, dar a si próprio, conservando-se, cuidando-se. Disponibilidade é, portanto, estar em stand by para o atendimento das necessidades do outro, como também envolve uma gestão cuidadosa dos próprios recursos emocionais.

              Logo, trata-se de uma palavra que possui dois lados, a face e a contraface, como dupla potência, porque porta o sentido de que o amor é ficar em posição de espera em benefício de alguma demanda do outro, mas também é adotar uma dinâmica de economia em favor de si mesmo, dando-se amor próprio, que também é expressão de amor.

              Se escolho estar disponível a alguém, concordo em doar-me e é por isso que posso dizer que amo. Se escolho não estar disponível para certas empreitadas com o outro, também amo, a mim, em tal caso, e toda esta reflexão sobre a dualidade do amor e da disponibilidade está a dizer sobre a necessidade do equilíbrio entre a dedicação aos outros e o autocuidado.

              Colocar-se à disposição de alguém é uma declaração de amor que transcende o superficial de uma relação. Nesse sentido, amar envolve uma escolha ativa e não uma submissão às necessidades alheias. De outro lado, não estar disponível às necessidades alheias é também uma forma de amor, dirigido a si próprio, pré-requisito da saúde mental e bem-estar. E tudo isso, funcionando ao mesmo tempo, é o melhor da experiência humana relacionada ao amor.