sábado, 17 de dezembro de 2022

 CRIATURA

        


        Chamar alguém de criatura pode, prematuramente, causar algum desconforto. Parece ser uma forma de provocá-lo sem dizer o seu nome, denunciando-lhe um possível deslize de sua parte. Mas para mim, não. Chamar uma pessoa de criatura revela, no meu vocabulário, o credenciamento recebido para estar no seleto grupo dos que eu amo e admiro.

        Gosto da palavra criatura, a qual convoca a reconhecer que somos isso mesmo perante o mundo, a natureza, o cosmo, o universo, o infinito, Deus. Etimologicamente, criatura quer dizer alguma coisa fruto de uma criação e, portanto, nenhuma ofensa nisso. Somos todos criaturas, dado que fomos criados. 

        Num dado momento aterrissamos nesse planeta, somos a interface entre duas épocas, a em que não existíamos e a em que passamos a existir. De um momento para outro passamos a fazer alguma diferença, mesmo que considerada apenas numericamente para fins estatísticos.

        O senso comum, contudo, de mãos dadas com a linguagem, tratou logo de colocar um viés depreciativo nessa palavra que para mim soa tão sublime, porque remete a um poder primordial e aglutina as qualidades de qualquer coisa animada de vida.

        Machado de Assis dedicou-se a escrever um poema, justamente, intitulado "Uma criatura", dizendo Pois esta criatura está em toda obra / Cresta o seio da flor corrompe-lhe o fruto / e é nesse destruir que as forças dobra (...) Tu dirás que é a morte; eu direi que é a vidaQuis o gênio literário brincar com as palavras para reconhecer em tudo, uma força, que é a vida.

        Criatura é expressão de existência e movimento, prova de uma potência oculta que em tudo habita e impulsiona. Se eu te chamar de criatura, saiba, simplesmente, que te reconheço como morador em meu coração, digno de aplauso e dos meus mais verdadeiros sentimentos.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

 COVID DE NOVO

       

        Fim de ano, o tempo firmou aqui na cidade depois de tantos dias nublados e chuvosos, e eu aqui, isolada, trancada de novo no quarto, porque peguei Covid pela segunda vez, ou melhor, ele que me pegou. Dessa vez veio mais fraco, amém Jesus, e isso graças à vacina e as posteriores doses de reforço a que me submeti. De todo modo, tive de obedecer ao protocolo de isolamento por dez dias na minha masmorra, determinado pelas leis sanitárias vigentes. Minha liberdade se restringiu a fazer um bom uso do tempo e foi aí que pude botar coisas em ordem.

        Meu trabalho on line, por exemplo, sempre tão volumoso, ficou em dia. Havia tempos que eu não conseguia cumprir minhas tarefas em tempo récorde e fiquei me sentindo a lebre da rapidez e do foco por ter me livrado de tudo. Contudo, eu teria trocado esse troféu para ter estado próxima de meus familiares, compartilhando as horas e os dias do período de retiro obrigatório.   

        Minhas leituras, num perpétuo acúmulo de cinco metros de altura, caso eu empilhasse livros na vertical, até que foram indo num ritmo mais rápido que o habitual, mesmo contando o tempo a mais que preciso para dar vazão à obsessão que tenho com minha canetinha I love NY para asteriscos, sublinhados, flechinhas e balõezinhos com comentários, e que acende uma luzinha quando aperto os pingos nos is. Contudo, eu também teria preferido manter meu Everest de livros uns sobre os outros em troca de poder fortalecer os vínculos afetivos, sentar à mesa com todos nas refeições ou somente tropeçar com eles pelos cômodos da casa.

        Minha playlist de músicas foi outra vertente de passatempos que engordou nos dias em que fiquei trancafiada. Bastante coisa nova e boa eu ouvi, assim como também prestei mais atenção em letras de velhas melodias para as quais nunca havia dado o devido valor quanto ao seu conteúdo poético. Contudo, ouvir vozes e risadas felizes numa roda de conversa com pessoas amáveis me parece mais enriquecedor.

        Tem os filmes. Passaram a incorporar minha rotina diária como se todos os dias fossem sábados ou domingos esparramada na cama. Recebi dos stremings ótimas sugestões de longas, curtas, documentários etc. Pegaram meu jeito ou, para usar a linguagem da internet, criaram um algoritmo, buscando me agradar com recomendações personalizadas. Contudo, há mais aconchego no sofá da sala com todos debaixo das cobertas, espremendo-se e espalhando farelos por todos os lados, demorando para a chegada a um consenso sobre o que assistir.

        Não poderia deixar de mencionar as minhas contas. Meu vermelho deu uma boa recuperada. Só mesmo um cárcere passageiro para me impedir de afundar o shopping no mês natalino. Contudo, teria sido bem melhor se eu pudesse ter gasto meus cifrões em presentes e em mesas lotadas de comida e bebida junto de boa gente.

        Há ainda o tempo em silêncio, é claro, do qual não poderia mesmo ter prescindido para fins de meditação e equilíbrio, assim como para me manter mentalmente forte caso me visse entrando pelos túneis que uma estrutura neurótica oferece. Contudo, teria sido muito melhor desfrutar o silêncio ao lado dos que amo, trocando com eles apenas linguagens corporais, olhares e sentimentos.

        Chego então à conclusão de que o isolamento forçado até que me permitiu fazer coisas produtivas, mas meras alternativas para preencher minhas 24h entre quatro paredes, um drible diante da inevitabilidade da doença, especialmente do Covid, que já havia provado ser insistente, mascarado e perigoso.

        Bom mesmo é não se descuidar jamais, para que possamos nos lançar ao mundo tão cheio de opções e riquezas que só o convívio humano oferece. A vida livre e saudável ao lado das pessoas é bem mais interessante do que qualquer upgrade.


Fonte da imagem: https://www.cruzeiros-douro.pt/pt/blog/regiao-do-douro/douro-lugar-para-convivio-entre-amigos

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

 A DIFERENÇA ENTRE FATOS E HISTÓRIAS


         Há quem diga que fatos e histórias são a mesma coisa, afinal, os fatos são os elementos das histórias, logo, quando se contam fatos, contam-se histórias. Nada disso. Fatos são fatos, nus e crus. Histórias são as narrativas construídas em torno dos fatos e, portanto, há infinitas delas, porque infinitas são as maneiras de contá-las. Fatos são estáticos, histórias são vivas. Já ouviu falar que a história é sempre parcial? Claro, pois reflete unicamente o olhar de quem a conta, o que não quer dizer que seja falsa. É tudo questão de viés, de ponto de vista, de lado, de perspectiva. 

        Pena que só nos damos conta disso já adultos, quando somos capazes de construir uma explicação do mundo sem intermediários. Em tempos primevos, na infância e adolescência, é inevitável "comprar" histórias alheias ou "embarcar" em discursos de outros.

        Isso até me faz lembrar de um brocardo jurídico em latim que aprendi logo no início da faculdade: da mihi factum dabo tibi ius. Significa dê-me o fato e eu te darei o direito, que é a orientação dada ao juiz chamado a decidir uma causa qualquer. Para ele são suficientes os fatos, independentemente da interpretação que lhes dê cada um dos litigantes por intermédio de seus advogados. Porque o juiz só precisa mesmo dos fatos, nus e crus, para entregar a sua própria versão sobre os mesmos, e que será mais uma das possíveis histórias a serem contadas, neste caso, a partir da sua análise sobre a lei aplicável à questão. Isso, inclusive, explica o dito popular de que em cada cabeça, uma sentença, pois até para diversos juízes, os mesmos fatos despertarão outras visões.

        A partir disso, é possível uma ida ao passado para tomar os acontecimentos que rechearam uma vida e dar-lhes outro olhar, ou seja, ser o seu juiz para contar uma outra história, ressignificando velhas opiniões prontas dadas pelos que, muito embora a sua boa intenção, eram os donos únicos de suas próprias verdades. Podemos então fazer para nós outros relatos sobre os velhos fatos, os relatos que quisermos, os que nos parecerem os mais verdadeiros, os que fizerem mais sentido.

        É certo que histórias importadas dos que nos antecederam são como chãos para andar, referências, pontos de partida. Mas é certo também que haverá sempre o momento a partir do qual podemos dar o nosso próprio testemunho ao mundo e ao coração, adotando versões que mais se encaixem em nossos valores, anseios, desejos e vontades.

        Imagina, com uma nova narrativa, poder inocentar os vilões que acreditávamos terem sempre existido. Dar o benefício da dúvida para a destruição de certezas tão dilacerantes. Imagina dar outro nome aos erros, e encontrar boas justificativas para terem sido cometidos. Imagina poder jogar fora o peso inútil de uma culpa não merecida. Imagina libertar monstros invisíveis na cabeça. Isso tudo, apenas contando para si uma outra história, a partir de outro ângulo ... sobre os mesmos fatos. Quanta liberdade e paz envolvidas nesse processo!

       Somos capazes disso, de reescrever histórias, reeditar o passado para expressão da nossa verdade, a partir do lugar em que ocupamos hoje, sabendo que são somente nossas essas histórias.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

 PERDER DÓI


        Estamos em dezembro de 2022, época em que se desenrola a Copa do Mundo do Catar. Há alguns dias a seleção brasileira foi eliminada nas oitavas de final pela Croácia, nos pênaltis. Doeu muito em mim, assim como em diversas pessoas com quem conversei depois, e a primeira coisa que me veio à cabeça foi sobre o porquê de eu estar sentido aquilo, já que não sou diretamente ligada ao futebol ou a campeonatos e esportes em geral. A resposta mais óbvia é a de que perder, simplesmente, dói.

        Ninguém vem para esse mundo programado para não sentir a dor das perdas, sejam elas reais ou até mesmo imaginárias, de várias ordens e magnitudes. São inevitáveis as perdas da vida, não havendo como escapar de senti-las, e doem porque nos obrigam à elaboração do desconforto que nos causam e sobre o qual dificilmente temos o controle. São lutos que experimentamos, em algum grau no espectro que cada ser humano guarda dentro de si. 

        Quaisquer perdas doem. Dói perder alguém que se ama. Dói perder um amor. Dói perder a saúde, uma amizade. Dói perder uma ilusão, uma disputa e até um objeto qualquer. Dói perder as estribeiras, o emprego, a razão, a viagem, o vigor. Dói perder tempo e também dinheiro. Dói perder uma oportunidade, a inocência, a juventude, um animal de estimação. Dói perder um ideal, um sonho. A lista é infinita. Perder dói porque tudo é impregnado de algum grau de expectativa e investimento emocional, do contrário, não doeria.

        É até possível dizer que o sofrimento humano não é pela simples perda, mas pela frustração por causa da energia despendida àquilo que se perde e do rearranjo obrigatório que isso exige, ou seja, a transformação que vem de carona nesse processo. Perder exige adaptação ao novo status quo desagradável que se impõe à frente, e adaptação exige gasto energético. Perda, frustração, transformação, assimilação...tudo junto e misturado na fila das demandas pessoais para uma ressignificação menos dolorida. 

        E tem ainda aquela categoria de perda que também dói muito, que é o abrir mão consciente daquilo que é bom, como aposta para algo melhor, tal como voos livres frente ao desconhecido, como apostas em caminhos diferentes. Esses são os casos das perdas necessárias, o que também pode significar um doloroso sentimento. A vida é assim mesmo, perdas variadas e esperança de ganhos melhores.

          

sábado, 3 de dezembro de 2022

DESEJO E QUERER


        Perante o senso comum, desejar e querer significam a mesma coisa e por isso são usados como sinônimos. No dicionário, inclusive, consta que desejar expressa o ato de querer e, por sua vez, querer expressa o ato de desejar. Não há problema algum em usar quaisquer desses vocábulos no dia a dia, pois todo mundo se entende e sabe que um ou outro indica o ato de ambicionar algo, ter uma intenção, uma vontade. Só que, indo mais a fundo, no plano psíquico, um desejo pode ser diametralmente oposto a um querer. Freud explica.

        A diferença entre ambos, muitas vezes, é desconhecida da maioria das pessoas e por isso acontece muito de alguém dizer que quer algo quando, na realidade, deseja outra coisa bem contrária, o que pode causar alguns conflitos internos. Complicado? Mais ou menos...

        É que o desejo costuma ser inconsciente, habita o território do social e moralmente proibido e por isso é que está escondido, impedido de manifestação explícita por força da cultura, da religião, dos valores sociais etc., localizando-se atrás da censura interior que todos construímos para poder viver em sociedade. Fica lá na masmorra da nossa mente, sem permissão para ser assumido, do contrário, seremos julgados, apontados, expulsos, excluídos, cancelados. Somente um processo de conscientização sobre sua existência permitirá tornar conhecido um desejo oculto e essa descoberta costuma surpreender.  

        Diversamente, o querer vem da consciência e, portanto, costuma representar algo permitido, autorizado pela moral e os bons costumes. Queremos aquilo que não choca a ninguém e que até pode ser compartilhado, mas que nem sempre guarda relação com o que de fato existe no nosso íntimo em termos de vontade genuína. É como adotar um disfarce para cabermos nas balizas da moralidade e porque não reconheceríamos alguns de nossos desejos mais profundos, maiores do que os estreitos limites das regras impostas, explícitas ou implícitas.

        O desejo é devastador, não conhece regras, força os muros interiores reivindicando satisfação plena e por isso mesmo deve ser contido, para não se chocar contra a maneira civilizada de vivermos. Já o querer é mais racional e superficial, construído com base na conveniência social, inserindo-se no campo das coisas permitidas a todos. Vamos a um único exemplo bastante simples: alguém pode desejar permanecer doente, ainda que manifeste expressamente o querer de curar o seu mal. Ou seja, no plano da consciência é evidente que qualquer criatura diz querer gozar de boa saúde para viver a vida, todavia, inconscientemente, pode desejar a doença, por causa dos benefícios ocultos que essa lhe traz, como atenção, preocupação dos demais à sua volta, isenção de certas tarefas.

        Para resumir, o querer vem do pensamento, da consciência, é fruto do processo de escolha do indivíduo. O desejo, ao contrário, nasce no inconsciente e tem relação direta com experiências passadas que continuam produzindo efeitos internos sem que o saibamos, é cego e não conhece as limitações da sociedade, querendo apenas ser satisfeito.

        Quem está de posse de algum grau de autoconhecimento, de bem com suas questões internas, até consegue admitir seus desejos, não os colocando, necessariamente, em prática, mas reconhecendo sua existência para melhor compreensão de si próprio e da natureza ambivalente do ser humano, sem culpas, medos ou punições.

       Quem dera pudéssemos identificar todos os nossos desejos para sermos psiquicamente mais saudáveis, administrando-os na mente, acolhendo-os e sabendo que são naturais em nós, ainda que não possam, muitas vezes, ganhar expressão no mundo em que vivemos.

domingo, 20 de novembro de 2022

 EM BUSCA DE UMA DECEPÇÃO 


        Vivemos em busca da felicidade, aliás, um tema para lá de comum em poesias, em músicas, em filmes e nas artes, em geral. É difícil saber o que nos move em direção a essa tão sublime sensação, mas, seja por causa de um instinto, de um hormônio qualquer produzido pela hipófise ou da força do astros, a verdade é que existe alguma força que impulsiona o ser humano para isso. Sigmund Freud explicou, há mais de um século, que o psiquismo humano é naturalmente regido pelo princípio do prazer e pela evitação do desprazer, o que parece um tanto óbvio. Só que não é tão simples assim. 

        Não, porque em muitos casos as pessoas, mesmo paralisadas em uma situação de sofrimento, estão mergulhadas numa espécie de prazer. E aí, como explicar essa coisa de gostar de sentir dor ? Outro nome para isso é 'gozo', dado pelo também gigante entendedor de cabeças, o francês Jacques Lacan. Significa que, muitas vezes, algumas pessoas só aparentam sofrer, pois, no fundo, estão usufruindo de um prazer sem que o saibam. Permanecer na zona de conforto é isso, desfrutar de um prazer inconsciente, ainda que mórbido. Neste caso, não desejam sair desse lugar que lhes proporciona algum ganho e é por isso que sempre invocam uma desculpa qualquer como condição para mexer uma peça no seu jogo da vida.

        Assim acontece porque bancar uma decisão é muito difícil mesmo, de modo que sofrer é mais fácil do que mudar. No mais das vezes, o medo do assustador desconhecido e do arrependimento ronda a cabeça e freia os movimentos. Decidir pelo que se quer, assumir uma mudança com coragem é algo que muitas pessoas não conseguem. Digo "muitas pessoas" para deixar bem claro que nada disso acontece conosco, que somos ultra esclarecidos e enxergamos tudo com muita clareza (imagine aqui um emoji tipo sábio estúpido).

        Pois bem. No final das contas dá até para dizer que os seres humanos almejam decepções para poder jogar nas costas de alguém, que não as suas, a responsabilidade pela mudança, porque sair da infelicidade por conta própria é mais ameaçador do que arriscar o novo. Em outros termos, é muito mais fácil dizer que o outro é que nos "forçou" a algo.

        Precisamos ser autênticos em relação às nossas vontades e ter coragem para sustentar nossas escolhas, saindo do lugarzinho confortável que nos mantém "vítimas" do parceiro, do chefe, do Estado, do destino.

        Agora, mano, se a tal decepção vier mesmo, o que até pode acontecer, aí tu não tem desculpa. Mude de vez a direção desse seu barco a velas e assuma com coragem que foi você quem tomou a decisão, sem empurrar a culpa no outro e sem também dar crédito ao destino, aos anjos, à mão de Deus ou à força da Lua, porque você pode.

terça-feira, 15 de novembro de 2022

 DECIDI PARAR DE TER MEDO


        Seria cômico dizer que não sentir medo está no campo das decisões racionais que tomamos, pois é fato que ninguém o entrouxa, voluntariamente, no fundinho da mente, assim como não deixa de senti-lo num estalar de dedos. Desde pequenos e até na vida adulta sentimos medos, para o que, muitas vezes, não temos explicação. Portanto, é mesmo engraçado afirmar que decidi parar de ter medo, como quem aperta um botãozinho e controla o painel das emoções. 

        Todavia, pensando bem, até acredito que caiba alguma medida de consciência nessa questão, o que começa pelo reconhecimento de que eles existem e isso já me parece uma atitude madura a tomar o lugar da cegueira.

        Só que é pouco, pois quero mais do que só saber que tenho medos. Quero parar de senti-los. Seria isso um luxo? Uma pretensão ambiciosa? Num primeiro momento, apesar de parecer que sim, afirmo que não. Claro que não estou falando daqueles medos úteis para afastar perigos e auxiliar na preservação da vida. Falo daqueles medos que atrapalham e por isso que não vejo como tão absurdo controlá-los.

        Certa vez alguém me deu uma dica de ouro nessa questão: convidar para um jantar todos os fantasmas que infernizam a cabeça, para um bate-papo sincero e com intenção de conciliação e apaziguamento. No meu caso imagino uma mesa cheia e com cadeiras faltando. Brincadeira à parte, o fato é que gostei da ideia, até porque já ouvi ou li em algum lugar que a melhor maneira de enfrentar medos é, justamente, enfrentando-os, não num sentido bélico, evidentemente, mas ao estilo de uma conversa franca. A partir deste enfrentamento imagino a bonanza surgindo no peito, uma espécie de trégua.

        Fácil não será, mas a tentativa é necessária e talvez a coisa toda precise se desenrolar em vários encontros. Identificar a origem dos medos é fundamental e parar de alimentá-los é outra medida importante. E conseguir isso vai ser como um clarão na mente.

        Contudo, é preciso que me restem ainda alguns medos, como os de não me alegrar todos os dias, de não amar, de não lacrimejar os olhos diante das emoções e belezas da vida, de não exercer o senso crítico e, especialmente, de apenas sobreviver quando seja possível a mim viver intensamente. Com isso quero me apavorar!


Fonte da imagem: https://www.entrepreneur.com/starting-a-business/how-to-start-a-side-hustle-manage-your-fear/366115

 O VIÉS DE CADA UM


    
    Interessante observar que cada um enxerga o mundo de acordo com uma lente específica construída a partir de suas experiências pessoais, assim como do momento pelo qual vem passando, o que se revela de várias formas, entre as quais, o comportamento, as escolhas, as palavras que profere. 
Presenciei dias atrás algo que explica um pouco o que quero manifestar. 

        Tratou-se de uma conversa descontraída entre quatro amigos ao redor de uma mesa com aperitivos, bebidas e risadas. Eram todas pessoas que eu conhecia em graus diferentes de proximidade. Num dado instante, uma delas, sem intenção de iniciar um debate profundo, recosta-se na cadeira enquanto faz giros com seu copo de whisky e gelo e, simplesmente, lança a afirmação de que pretende viver até os 107 anos de idade. De imediato, tomando de empréstimo aquele número, o outro da mesa diz, enquanto se delicia com um potinho de amendoim, que, em sua opinião, melhor mesmo é ter 107 amigos. 

        A terceira pessoa, então instigada pela brincadeira iniciada, colocando-se em postura mais ereta, talvez demonstrando que o assunto, ainda que leve, chamava para uma espécie de reflexão, dita que o melhor de tudo é ter 107 milhões na conta do banco. Finalmente, o último do grupinho, que até então só ouvia os demais enquanto estralava os dedos, fecha o ciclo dizendo que, sem dúvida, o paraíso seria ter 107 amantes.

        Sejam anos de vida, amigos, dinheiro ou amantes, é nítido que cada qual daquelas pessoas vem passando por um momento importante relacionado ao que acabavam de dizer. A primeira pessoa a falar, aquela que deseja viver até os 107 anos de idade, está de bem com a sua vida, com seu lado pessoal e profissional em pleno desenvolvimento e, certamente, quer prolongar a fase em que se encontra, pois, viver bastante com boas condições só poderia representar seu maior desejo no presente. A segunda pessoa, a que almeja ter 107 amigos, é, justamente, a que vem se sentindo um pouco só, devido ao recente divórcio e ao intercâmbio de seus filhos no exterior. Neste caso, ter muitos amigos representa a sua maior necessidade. 

        A essa altura, já é possível intuir que a terceira pessoa, a que deseja ter 107 milhões em conta, é aquela que vem há tempos matando um leão por dia para sanar suas dívidas e guardar uma soma de dinheiro para o futuro. Por certo não aguenta mais olhar os preços dos produtos no supermercado antes de colocá-lo no carrinho de compras. A quarta e última pessoa, e daí eu nem preciso esclarecer, é aquela que, por dedução óbvia, vem praguejando a instituição do casamento e desejando, ardentemente, a liberdade.

        Como se pode ver, não é por acaso que alguém deseja alguma coisa, pois, no mínimo, sua configuração atual de vida, assim como suas dificuldades recentes vêm servindo como referência para saber o que lhe move e qual vem a ser o seu desejo mais urgente.

        Em vista daquela conversa, muito similar à uma dinâmica de grupo, fiquei pensando o que eu elegeria como mais importante na minha hora de dizer 107 alguma coisa e, não tenho a menor dúvida, de que seriam lugares do mundo para visitar. Isso mesmo, meu desejo é visitar 107 lugares espetaculares neste planeta, dada minha fome constante de sair da mesmice, de me movimentar, de me desafiar.

        E você, pessoalmente falando, saberia identificar quais são as melhores 107 coisas para a sua vida?


         

terça-feira, 8 de novembro de 2022

 MODO ECONOMIA ATIVADO


        Sempre tive gosto pela argumentação e pelo debate sobre qualquer assunto. Entendo que o diálogo enriquece e promove o surgimento de novas ideias, posicionamentos e pontos de vista diferentes e enriquecedores. Acontece que cheguei num ponto em que precisei ativar meu dispositivo interno de economia de energia em uma situação muito específica, que é quando a absurdidade de uma declaração chega aos meus ouvidos, fazendo soar meu alarme.

        É certo que ninguém é dono da verdade e justamente por isso sempre entendi como saudável não me opor à dialética. Isso moldou por muito tempo o meu perfil de entrar em debates. Confesso até que muitas vezes fiz isso apenas para dar passagem a pérolas disparadas por aqueles que costumam se vestir de sapiência. No entanto, cansei. Frente à insensatez - eufemismo para substituir a palavra asneira - minha reação mudou, porque tenho simplesmente feito cara de paisagem, ao contrário de seguir pelo caminho da confrontação. A finalidade deste meu novo modo de operar socialmente é a de impedir que minha energia seja escoada inutilmente. 

        Descobri há pouco tempo que esta é a Lei de Brandolini, ou princípio de assimetria da estupidez, segundo a qual o esforço necessário para desfazer uma desinformação é maior do que a facilidade para criá-la. Ou seja, precisa-se recrutar mais força mental para refutar uma idiotice do que para produzi-la. Além do mais, é infrutífero argumentar com quem fala idiotices, pois estas continuarão a produzir efeitos mesmo após uma boa explicação em sentido contrário. É por isso que o silenciamento como economia de energia vem ditando meu modo de ser frente a ideias manifestamente falsas, levianas ou, simplesmente, imbecis. As fakenews estão aí para confirmar que a sua correção dá muito mais trabalho do que o seu disparo inconsequente. 

        Sem dúvida o direito de opinar é pleno e há de ser respeitado. Mas não é a isso que eu me refiro. Trata-se de eu me reservar o direito de não me cansar tentando mudar quem, sob o meu olhar, vive à sombra do mundo e, deixando a inteligência ou a boa-fé de lado, insiste em coisas sem a menor possibilidade de algum crédito ou validade.

        Lamento muito quando grandes besteiras são disseminadas nos mais diversos contextos e, em especial, nos meios de comunicação e nas redes sociais, caldeirões ricos para a sua proliferação. São ruins porque induzem todos ao erro, assim como ocultam intenções sensacionalistas, alarmistas e conspiratórias, enfraquecendo os esforços genuínos na busca da verdade e explorando a credulidade alheia sem um pingo de compaixão ou responsabilidade. Meu silêncio em tais casos não significa uma derrota no campo da argumentação, mas uma estratégia que visa a neutralizar muitas coisas que vejo dito e escrito por aí.


Fonte da imagem: https://twitter.com/josuenunes/status/1589628735925682179/photo/1

       

domingo, 30 de outubro de 2022

 

A POTÊNCIA DA FEMINILIDADE       

        Eu já maior, vacinada e mãe quando em dado momento da minha maturidade tive de me submeter a um procedimento cirúrgico para a retirada do útero e ovários. Ali tive de me despedir de uma parte visceral de mim. Biologicamente falando, tornei-me inapta para a tarefa de gerar filhos. Socialmente falando, tornei-me desprovida do selo e do destino da maternidade.

          Aproveitei a situação para repensar sobre todo o imaginário em torno da relação entre a gestação e o feminino.

        De início, nada abalou a certeza sobre a minha condição de mulher. Talvez porque já a algum tempo penso que o poder feminino é bem mais vasto do que estar na posse dos equipamentos fisiológicos para o desenvolvimento de uma gravidez. A passagem do tempo vem me mostrando que nós, mulheres, somos aptas à geração de outros tipos de "filhos", como projetos, sonhos, transformações. É próprio da alma feminina a potência criativa.

        Quero dizer que o nosso poder é muito maior do que apenas ser capaz de povoar o mundo, ainda que esta seja uma dádiva que nos aproxima do divino. Devemos saber que, além da fecundidade que nos é dada pela natureza, também podemos dar conta de outros papéis e funções, pois somos também profissionais, empreendedoras, talentosas, influenciadoras, empoderadas.

        Ser mulher é, antes de mais nada, uma coisa do campo da alma e não apenas do corpo biológico, porque diz respeito a uma energia, uma potência que nos torna maiores do que as expectativas sociais que recaem sobre os nossos ombros quanto ao aspecto da procriação. Ser mulher compreende um diálogo constante entre o corpo e alma, entre o ser e o mundo. É uma energia que nos eleva acima das expectativas sociais sobre procriação e nos permite dar luz a novas ideias, novos mundos, novas possibilidades.

        Ao meu aparelho reprodutor, que foi muito competente em me proporcionar duplamente a maravilhosa experiência da maternidade, expresso a minha mais profunda gratidão. É certo, no entanto, que chega um momento em que precisamos desenvolver maior clareza quanto ao que podemos criar sob várias outras formas mediante os nossos esforços e habilidades físicas, bem como usando a forte da conexão que existe entre o universo e nossa essência feminina.

       Naquele dia em que me submeti à cirurgia para a extração de meus órgãos reprodutores femininos internos, intensificou-se essa travessia em direção à ressignificação do meu ser mulher.

        Penso ser um dever darmos à luz ideias e revoluções às futuras gerações de homens e mulheres, promovendo o crescimento em todos do brilho de novas criações e irradiando sobre as demais pessoas o que temos de melhor.

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

 PRESUNÇÃO


       Existe uma coisa bastante enganadora para a mente que é presunção a respeito de coisas que não têm base em fatos concretos. De acordo com o dicionário, o verbo presumir indica a ação de tirar conclusões antecipadas e precipitadas a partir de suposições, conjecturas. A presunção é uma viagem traiçoeira, porque transforma em verdade algo que não tem lastro, numa operação mental capaz de gerar ideias tortas.

        Presumir é ir direito a um ponto sem avaliá-lo, sem usar a energia psíquica para elaborar conclusões melhores. É tomar como certo o que não passa de uma premissa falsa, a qual irá desencadear a necessidade futura de consertar ideias tortas dela decorrentes, podendo até contribuir para um cenário de mal entendidos e comunicações equivocadas. É como seguir por túneis que levam sempre a um único e mesmo lugar, sem questionamento da rota. É como enxergar tudo por uma lente fixa e desprezar as nuances dos acontecimentos.

        Presunções nascidas de cálculos apressados e puramente individuais não possuem serventia alguma. Levam-nos a restringir o foco de análise a respeito de algo, assim como a tomar decisões equivocadas, cometer injustiças. São, ainda, um terreno fértil para discriminações e incompreensões, porque dali nascerão os pré-conceitos. Presumir qualquer coisa é querer encurtar o caminho para o encontro com a verdade, sem sucesso, no entanto.

        Presumir é não se esforçar para ver as coisas sob outros ângulos, é reforçar a fixação das energias mentais em um único ponto. É como enfiar a cabeça num buraco sem considerar o que está em volta. Presumir é querer economizar energia de pensamento, mas que acaba levando a um desperdício.

        De toda a quantidade de calorias que queimamos em um único dia, nosso cérebro responde por vinte por cento do total, de acordo com os fisiologistas. Isso significa que presumir equivale a desperdiçar potências internas para o cultivo pontos de vista superados, uma espécie de neurose inutilmente alimentada. Por isso eu diria "vai carpir, irmão!", para evitar um déficit na qualidade da sua saúde mental. 

        Normalmente, nossos dias já são bastante variados em termos de demandas importantes, de modo a ser absolutamente desnecessário o acréscimo de elucubrações que não são outra coisa senão um prejuízo auto infligido.

       Camadas de interpretação pessoal sobre os fatos, acrescidas a caras feias que nos fazem por aí ou a olhares atravessados e frases fora de contexto, é o que basta às vezes para dar início a um sofrimento que lá na frente será visto como sem sentido. Tal é a razão pela qual é salutar o policiamento interno para evitar o escoamento desnecessário de preciosos recursos mentais, direcionando-os para algo mais vantajoso e construtivo. Eu diria até que a paz interior tem relação direta e proporcional com esta prática.

        Lidar de forma objetiva com o que nos chega pelas vias sensoriais já está de bom tamanho para enfrentar os percalços da vida, sem que seja preciso inventar narrativas infundadas para engordar nossas habituais neuroses.

        


domingo, 2 de outubro de 2022

 


MÃE TAMBÉM MENTE

        Desde que minhas duas filhas nasceram, há vinte e um e dezoito anos, tornei-me uma mentirosa, mestre das artimanhas para conseguir fazer o melhor por elas.

        Minhas primeiras mentiras aconteceram quando eu lhes dava comidas saudáveis, com caras e bocas de prazer para simular e convencê-las de que eu adorava o seu gosto. Ah, como eu encenei neste meu teatro particular! Por dentro, eu me sentia torcendo o nariz, fazendo a maior careta por não conseguir nem sentir o cheiro. A estratégia colava, e hoje elas comem de tudo. Muita novidade alimentar foi apresentada a elas por meio desta enganação. 

        Já maiorzinhas, sentando-se à mesa para o almoço, perguntavam-me porque o arroz era vermelho, alaranjado e até verde em algumas vezes. Eu, mais do que rápida, inventava nomes, dizendo-lhes que era o "arroz primavera" da cor das flores ou o "arroz carnaval" da cor das fantasias ou ainda o "arroz mágico", da cor das florestas. Mentira. Pura invenção minha para incorporar à mesa legumes e verduras nutritivas. Eram a beterraba, a cenoura e a couve disfarçadas junto à água do cozimento.

        Com as frutas eu me especializei na arte da falsidade. Oferecia-lhes sempre novas opções dizendo que era aquela que já haviam experimentado antes e que só não estavam lembrando. Ficava naquela argumentação de que já 'tinham comido na casa da vovó no mês passado'. Mentira de novo. Nunca haviam comido, mas eu tinha que dissimular, pois criança sempre reluta um pouco em conhecer novos sabores.

        E com o passar do tempo, minhas enganações foram ficando melhores. Frente a alguma teimosia que eu não dava conta, eu lhes dizia que teriam que se haver com o pai. Minha ideia era enaltecer sua autoridade, obviamente, sem esquecer da afetividade envolvida no processo. Outra mentira, pois o pai era mais banana que eu. Se duvidar, até dava risada da minha tentativa em torná-lo brabo. Eu só queria fortalecer a imagem dele e ensinar limites e comportamentos benéficos para elas.

        Nas consultas ao dentista era a mesma coisa. Eu sempre dizia que não sentiriam nenhum desconforto nos procedimentos, apostando sempre no esquecimento posterior delas. Era eu de novo querendo passar-lhes tranquilidade e convencê-las de que era bom e divertido sentar naquela cadeira infame, com filminhos e lembrancinhas ao final. E tantas outras mentiras eu contei, como nas épocas das vacinas ou nas vezes em que eu disse não estar com vontade de comer aquele único bombom achado no armário, só para cedê-lo a elas. Menti mesmo e não me arrependo um único segundo das minhas falácias destinadas, unicamente, ao bem-estar das minhas pequenas. O único artifício que eu tinha, muitas vezes, eram tais mentirinhas inocentes, sempre tomando muito cuidado no que eu dizia e tendo a certeza de que me entenderiam no futuro.

        Cheguei ao ponto de chorar longe delas, para que não ficassem infelizes e porque eu queria retardar ao máximo a chegada das angústias da vida. Porém, elas cresceram, tornaram-se sensíveis, espertas, perspicazes, conhecendo-me a fundo, sabendo detectar quando o meu olhar está cinza ou quando uso um meio sorriso para disfarçar a tristeza. Aprenderam a saber até o que estou pensando em certos momentos. Foi a partir daí que não pude mais sustentar minhas fraudes. Não seguiriam acreditando em mim e eu só perderia a confiança delas ou criaria uma distância difícil de encurtar mais tarde, caso eu ficasse neste esquema de mentiras sinceras e bem intencionadas. Ficaram para trás aquelas velhas historinhas inventadas. Agora são as conversas adultas que tomaram este lugar, daquelas em que a verdade não escapa mais e onde nada fica por dizer.

       A maior de todas as verdades foi surgindo a partir de minha própria humanidade e quando passei a mostrar-lhes o meu lugar de mulher comum, com defeitos, medos, inquietações, desejos, dores, fantasmas, inseguranças e um histórico de erros na vida. Ao revelá-las quem eu realmente sou, descobri um novo lugar em seus corações e fui deixando de querer ser a mãe superpoderosa que tudo consegue para me transformar numa mulher real, que também pode impressionar simplesmente por exercitar sua essência.

domingo, 25 de setembro de 2022

 DEMOCRACIA 

        Em tempos de eleição no país, julgo ser oportuno tocar num ponto relacionado à essência do conceito de democracia, o sistema em que os cidadãos elegem os seus representantes para o exercício de mandato político. Contrapõe-se ao antigo e odioso sistema absolutista, pelo qual o poder era exercido pelo monarca, em quem se concentrava a elaboração, a execução e a aplicação da lei. É lindo, ainda que triste, tudo que se fez, historicamente, para ver implantado o "governo do povo, pelo povo e para o povo".

        Porém, nem tudo é perfeito, como já dizia o filósofo Platão cinco séculos antes da era cristã, para quem, entre todos os sistemas de governo existentes, a democracia é o melhor entre os piores e o pior entre os melhores, querendo dizer, evidentemente, que não é nem tão bom e nem tão ruim. Tenho a impressão de que o pensamento ou a esperança reinante naquela época era de que ainda haveria de ser idealizado algo melhor em termos de assegurar a verdadeira expressão da vontade popular.

        Há algum tempo venho refletindo a esse respeito e, obviamente, sem o menor sucesso até o momento no sentido de pensar em algo diferente e melhor. É até pretensioso demais intuir sobre algo que garanta de modo mais verdadeiro a implementação da vontade de todos na escolha dos candidatos ao exercício de mandatos eletivos. Só vou até o ponto de reconhecer os aperfeiçoamentos em torno da democracia ao longo dos tempos, no sentido da criação de mecanismos legais e educacionais garantidores da sua manutenção na contemporaneidade.

        Na minha modesta opinião, porém, vejo que a democracia no Brasil vem se alterando ligeiramente em sua essência, no sentido de que os eleitores não vêm demonstrando sua verdadeira vontade nas urnas. Isto porque se tornou prática nacional não seguir o genuíno desejo de votar no Fulano. Vota-se no Beltrano para que o Ciclano não vença. Parece voto de tabela em jogo de sinuca, quando se mira numa bolinha para que ela empurre outra para dentro da caçapa. Fico pensando se isso é mesmo democracia, expressão da vontade dos eleitores, afinal, guiar-se por um espírito estratégico na escolha do voto não revela a real vontade daqueles. Por esse pensamento, o resultado é que quem acaba vencendo é o Beltrano, apesar de o desejo da maioria estar atrelado ao Fulano.

        Em tal caso, dá pra dizer que a eleição expressou a vontade do eleitor? Num certo sentido, sim, pois, apesar de não se ter eleito quem se gostaria, ao menos evitou-se que fosse eleito quem não se queria, mas o preço disso talvez seja um pouco caro e até um desperdício em termos de oportunidade de fazer valer a vontade geral.

        A questão não é simples mesmo, de todo modo, não basta o regime democrático estar garantido na lei do nosso país. Há que se suprir o espaço em aberto deixado pela falta de esclarecimento em torno de equívocos como a noção equivocada de 'voto perdido' para o caso de ser dado ao candidato menos cotado nas pesquisas. Isso não existe. O voto há de ser consciente, isso sim, sem vincular a escolha do candidato aos percentuais de pesquisas de opinião, até porque esta é representativa de uma mínima parcela da população consultada.

        Assim, sejamos autênticos na hora de expressar nossa verdadeira intenção, votando consciente e diretamente no(a) candidato(a) que melhor atende às expectativas e anseios de cada um, sem a utilização do voto como um jogo de estratégias em que se mira ali para atingir acolá.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

DOR E ALMA

            Como é que duas palavras tão diferentes podem rimar tanto? Apesar de dor e alma possuírem, cada qual, ortografia e fonética absurdamente diferentes e com significados também distintos, estão intimamente ligadas dentro do imaginário geral ou, sem sombra de dúvida, do meu próprio imaginário. A rim parece-me relacionar-se ao sentido destas palavras, ao 'não dito' que extrapola da significação de cada um desses termos.

            Particularmente, entendo ser inevitável experimentar uma dor sem, ao mesmo tempo, sentir-me viva e plena de uma alma movimentando-se internamente. Acredito mesmo que encarar certa dor no peito possa deflagrar a sensação de que eu existo, ainda que isso soe meio paradoxal ou estranho.

        Ouso afirmar que talvez nem a alegria ou o riso sejam tão competentes quanto uma amargura esporádica para proporcionar a sensação de viver e fazer testemunho de que a angústia é parte da vida, o contraponto daquela incômoda sensação de prazer ininterrupto que sempre buscamos. Ninguém conseguiria se reconhecer feliz sem as inevitáveis adversidades e os percalços que a realidade dura impõe a todos. O escritor alemão Goethe até disse certa vez que "nada é mais difícil de suportar do que uma sucessão de dias belos". Concordo.

        Vez ou outra, a cabeça e o coração mergulhados num caldo de desolação e infelicidade dão-me a certeza de estar viva, agindo como contraponto dos dias felizes. Não, não sou depressiva, melancólica ou desanimada. Sou apenas alguém que consegue extrair de estados de espírito mais sombrios o combustível para sentir a vida intensamente e até saber que gosto têm os prazeres.

         Adoro aquela música "Alma" da cantora Simone, porque a primeira estrofe já me captura nisso que estou dizendo: "há almas que têm as dores secretas, as portas abertas sempre pra dor". 

        Tenho a certeza de que uma dessas almas da canção é a minha, abrigo para dores secretas, capaz de acolher mais outras que apareçam de repente para ocupar espaços vazios e tudo o mais que, não cabendo em outras categorias, acabará ficando solto e perdido sem explicação, ecoando internamente e preparando-me para o reconhecimento de alegrias vindouras.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

 

ABSOLVIÇÃO

        Por toda a minha vida, graças à família na qual nasci, conduzi-me por linhas certas e construí um patrimônio moral do qual eu me orgulho, passando-o adiante para minhas adoráveis filhas. Meu crime mais grave na adolescência foi, num dia qualquer do último ano do colégio em que eu estudava, após o recreio, ter descascado as paredes recém pintadas em frente ao pátio central. Deu um gosto todo especial puxar inteirinhas aquelas lâminas de tinta quase seca. Como eu senti prazer em causar dano àquele lugar que tanto causou dano a mim! Foi como um grito de vingança em forma de ato. Não tenho boas recordações dos nove anos em que ali estive.

       Não fui punida por aquele vandalismo consciente, pois ninguém viu, nem mesmo a inspetora que costumava dar voltas por todos os espaços do colégio. Sequer lembro também de como tive tal oportunidade sem chamar a atenção de ninguém. Devo ter premeditado muito bem o meu ato, do contrário, não teria dado tudo tão certo. Fico hoje pensando também como é que, iniciada a segunda parte da aula, ninguém sentiu a minha falta na sala, com minha carteira vazia e ocupada apenas pelos meus materiais sobre ela. De todo modo, meu ato delinquente já foi perdoado devido à passagem do tempo, já prescreveu, como se diz juridicamente, por isso não tenho o menor medo desta confissão.

        Tirando a excelente base de língua portuguesa que lá obtive e umas poucas amigas do coração que mantenho contato até os dias atuais, o resto eu descarto no meu lixo de memórias. Meus pais nunca souberam disso tudo, mas aposto que eu os convenceria de que, naquele lugar, muito do que passei e aprendi só me prejudicou vida afora. 

        Meu maior ressentimento lá foi por não ter tido a melhor das lições para uma vida de felicidade: a de que somos livres para fazer o que quisermos com nossas vidas, com a correlata responsabilidade por nossas escolhas, evidentemente. Era sempre um não atrás do outro. Nada podia. Tudo era feio ou pecado, como se todas as freiras ali fossem exemplares em suas condutas privadas. O ensino era muito restrito em termos de possibilidades para o desenvolvimento pessoal e emocional.

        Tempos depois, quando saí daquele colégio, experimentei uma curiosa sensação: parecia que tornozeleiras eletrônicas saiam dos meus calcanhares e eram substituídas por asas. Fico hoje pensando no efeito daquele cárcere mental sobre minha personalidade desde os meus cinco anos de idade, bem como no estilo confessional e punitivo de lançar pessoas para o mundo. Sinto que, ao contrário de ter sido educada numa instituição escolar, fui adestrada para ter comportamentos adequados na sociedade, e tudo por meio de um poder canhestro que via na imposição da culpa a melhor forma de regular atitudes.

        Questionar práticas morais e rigores sem sentido era um ato que só vinha de colegas com extrema coragem, as quais eu muito admirava, mas mesmo assim, sem surtir qualquer efeito. Eram punidas, quando não ignoradas. De minha parte, nunca enfrentei aquelas autoridades ocas, resignando-me ao lugar de aluna comportada. Hoje entendo aquele meu crime de descascar as paredes do colégio como um ato simbólico para desmascarar hipocrisias e dizer o quanto eu estava me lixando para a beleza externa de um lugar tão feio por dentro.

        Creio que no fundo eu queria mesmo é ter sido descoberta pela inspetora, ter sido chamada de mau exemplo para as demais alunas, ter ficado de castigo, ter sido apontada por todos como a gângster que se atreveu a questionar o poder escolar e a dizer que a verdade ensinada era pequena demais, e daí eu talvez sentisse mais orgulho da minha ousadia frente àquelas falsas superioridades. Todavia, mesmo que sem testemunhas, valeu ter dito na forma de um ato reprovável o quanto falsos foram para mim todos aqueles anos de ritos obrigatórios e sem sentido, de promessas para a continuação de uma sociedade que eu viria a questionar na idade adulta. Pela minha depredação, a qual prefiro qualificar como um protesto, o veredito que dou hoje a mim é de absolvição plena.

        

quinta-feira, 7 de julho de 2022

 O TEMPO


        Recentemente, fiquei, por um breve período de férias, isolada com minha família, num hotel fazenda no interior do Paraná, em busca de silêncio, quietude e calmaria. A única algazarra do lugar era feita pela bicharada. Do estábulo, do galinheiro, dos brejos, dos campos distantes. Era uma verdadeira sinfonia de cavalos, galinhas, pássaros, sapos, carneiros e besouros voando, tirando finas perto da nossa orelha. Um barulho gostoso também vinha do vento movimentando as folhas no alto dos eucaliptos gigantes e das araucárias frondosas. Ali o tempo parecia transcorrer em câmera lentaPingos do orvalho da manhã caíam da copa das árvores sobre o telhado do chalé, como batidas ritmadas, dando um toque romântico ao nosso descanso. Era tudo uma grande orquestra da natureza que parecia não usar o tempo como recurso para acontecer.

        Outro presente foi a paisagem, um prêmio aos nossos olhos afoitos por belezas infinitas, que nos absorveu completamente. Cedinho pela manhã, em toda a extensão do imenso lago escuro podia se ver uma fumaça branca que parecia mover-se em câmera lenta, tal qual cenário para o filme de Harry Potter. E no fim da tarde tinha o pôr do sol, que era, simplesmente, de chorar, começando com tons amarelos, depois alaranjados e terminando com os avermelhados, antes do breu da noite.

        Naquele paraíso ecológico, consegui cumprir a promessa de me concentrar nas essências do mundo natural, valendo-me do panorama para planejar uma vida mais calma daqui para adiante, assim como um modo de ser com menos medos e hábitos paralisados ou, ainda, com um jeito de adquirir coragem para buscar novas formas de satisfação. Pensei também em tudo o que desejo para meus próximos capítulos ao lado dos meus amores familiares, como minha lucidez, meu olhar poético, minha obstinação para a erradicação dos meus fantasmas. Fui então divagando e entrando numa espécie de túnel de pensamento cada vez mais profundo e longínquo, sem qualquer preocupação.

        Foi tanta coisa que passou pela minha cabeça que senti como se horas a fio tivessem transcorrido, distraída que eu estava com a perfeição daquele lugar e daquele instante, a ponto de, conferindo o relógio em dado instante, constatar que somente quinze minutos haviam se passado desde o início da minha saga particular. Foi incrível aquela sensação de tempo condensado e bem aproveitado.

        Numa dessas é até possível que as horas passem mais devagar no meio do mato, mas, verdade ou não, a experiência me serviu como pano de fundo para a comparação com minha agitada vida na cidade grande, envolta nos costumes, ruídos e imagens urbanos. Senti que entrouxo tanta coisa na minha agenda que, literalmente, não sinto o tempo que tenho e que me acaba escorrendo pelas mãos. Computador, televisão, celular, trânsito, filas, obrigações etc. se acumulam e, quando percebo, já está anoitecendo e o dia parece não ter rendido e assim fica difícil surgir uma frequência de ligação com o mundo em meio a tantos afazeres. Lamento ter tornado minha rotina tão automática, tão frenética. O caos vem me impedindo de usufruir de um tempo de qualidade conectada com o mundo natural.

        Aquela experiência de quinze minutinhos completamente absorvida por uma inominável natureza em torno de mim foi incrível, pois tive a nítida impressão de que eu podia pegar o tempo com minhas próprias mãos, de modo real e palpável. Na balbúrdia da capital e da correria, a paz dos instantes costuma fugir de mim, escorrer por entre os meus dedos, não consigo capturá-la, parece até que nem sou dona dela.

        O preenchimento do tempo é mesmo uma verdadeira arte, mais do que um puro ato de inteligência ou organização de tarefas, uma vez que é fácil encher os dias e até as noites de compromissos, aliás, esta é a receita certa para não nos beneficiarmos com certas riquezas de que dispomos.

        Como foi bom ficar uns dias fora de tudo, usufruindo de um tesouro invisível e inexplorado: o tempo. É como diz a canção da Nana Caymmi: "E ele [o tempo] zomba do quanto eu chorei, porque sabe passar e eu não sei". Não sei mesmo, mas decidi começar a aprender a senti-lo, vivenciá-lo, usá-lo com mais qualidade.

        


quarta-feira, 29 de junho de 2022

 

                                                      QUANDO EU CRESCER


        Quando eu crescer quero conseguir parecer um pouco, ao menos, como minha filha mais velha. Ela mal sabe que há tempos eu a tenho como inspiração para inúmeras situações e dúvidas que me surgem. Ela sequer imagina que diante de alguns impasses eu fico pensando como será que ela agiria se estivesse em meu lugar. Eu a tenho como um modelo de conduta, de leveza perante os obstáculos. Que bom exemplo eu trouxe a este mundo!

        Queria muito ter, igual a ela, calma e tranquilidade para escutar o silêncio tão escondido entre os ruídos do mundo, e a capacidade de se desconectar do que lhe incomoda. Nunca precisa fazer alardes para ser notada, porque sua permanente luz preenche qualquer espaço. Pensa e age com uma sensatez que assusta a qualquer um. É delicada no seu jeito de ser, de falar, de lutar pelo que quer e acredita. É forte e suave ao mesmo tempo. Sabe se posicionar em defesa do seu ponto de vista, assim como não entra em conflitos que não lhe trarão qualquer benefício e apenas lhe roubarão energia e tempo. Com quem será que ela aprendeu isso?

        Quando eu crescer quero ser como ela, dona de um bom humor invejável, que sabe ser engraçada lançando pérolas inteligentes e arrancando gargalhadas com as comédias que espontaneamente constrói. Ao contrário de mim, não vai de zero a cem em segundos. Tem uma maturidade que encanta, ao lado de um grande talento para o gozo de sua juventude. Na idade dela eu era apenas alguém que havia recém deixado a infância. Ela não, já tem opinião sobre coisas que eu sequer havia pensado nessa fase da minha vida. Gostaria de ter a mesma perspicácia dela, que coexiste com um olhar bondoso para vida e as pessoas.

        Quando eu crescer quero ser como minha filha, que tem inúmeros amigos e faz listas intermináveis de convidados para suas festas de aniversário. Nunca vi tanta unanimidade em volta de uma só pessoa! Ela é alguém que agrada com seus atos e palavras, alguém que oferece prazer pela sua mera companhia. Quero muito entender esse seu poder de despertar tanta simpatia nas pessoas

        Quando eu crescer quero ser como Carolina, que, facilmente, abre mão de coisas sem importância e direciona seu vigor para o que realmente lhe interessa. Fiquei admirada com sua obstinação e estratégia para conseguir do pai a autorização para o intercâmbio fora do país com apenas 16 anos. Na ocasião, quando tentei alertá-la sobre algo que pudesse dar errado longe de casa, ela me responde com uma pergunta: e se der tudo certo, mãe? Calei-me. Aprendi ali com ela a olhar o lado bom das coisas. Ela estava certa, voltou do intercâmbio para casa recheada de experiências e histórias, abastecida de autoconfiança. E eu... há tempos venho ensaiando uma viagem solo, sendo que minha desculpa é sempre a mesma: falta de tempo. No fundo não tenho coragem.

        Quando eu crescer quero ser como minha filha, que sabe se equilibrar entre a seriedade e a fanfarrice, transitando por esses extremos sem se perder. Quero, do mesmo jeito que ela, saber que força e leveza convivem. Quero entender esse seu poder de se recuperar rápido frente aos incômodos, e tornar mais leve a vida de todos à sua volta. 

        Quando eu crescer, definitivamente, quero ser como ela e até que isso aconteça quero estar a seu lado sempre e em todos os momentos, para dizer-lhe o quanto a admiro e o quanto desejo que me ajude a ser mais parecida com ela.

     

quinta-feira, 9 de junho de 2022

 

LIVRO MÁGICO

    
        

            Fiquei muito impressionada na infância no dia em que alguém me contou sobre o poder mágico do livro O pequeno príncipe, escrito pelo francês Antoine de Saint-Exupéry. Disseram-se, com os olhos de quem revela um segredo, que esse era um livro de magias, mudando seus feitiços conforme crescíamos. Assim, a sua leitura feita quando criança produzia um determinado efeito, diferente de quando fosse lido na juventude e também depois, quando já na idade adulta. A mágica do livro, então, estava na sua capacidade de despertar interpretações diferentes em momentos distintos da vida do leitor.          

            Ora, seria mágico mesmo, não fosse pelo fato de que é o próprio leitor quem se modifica com o passar do tempo e vai percebendo tudo de maneiras diferentes. Evidentemente, quando crianças, temos um pequeno baú de experiências, um repertório limitado de conhecimentos, assim como um olhar límpido, puro e inocente ainda não preparado para os desencantos do mundo. Portanto, a mágica nunca esteve no livro, mas no leitor, de forma que me atrevo a dizer que até um gibi da Turma da Mônica produz tal efeito fantástico.

          Acredito que o livro 'O Pequeno Príncipe' tenha sido mesmo escrito com a intenção de abordar justamente a perda da inocência ao longo dos anos, pois é fato que as pessoas vão crescendo e a magia das coisas vai se desfazendo, o encanto natural vai cedendo lugar a um olhar menos iludido. Por exemplo, aquela máxima de que "o essencial é invisível aos olhos, e só se pode ver com o coração" será entendida com maior profundidade após alguns bons tropeços e quedas que a vida nos impõe sem cerimônias. É a partir daí que nos tornamos mais hábeis a perceber o real valor das coisas simples.

        O livro também parece querer antecipar ao pequeno leitor a lição de que nem sempre o que vemos à primeira vista é a realidade, como a figura da serpente que, tendo engolido um elefante, toma a forma de um chapéu. Para os pequenos, um verdadeiro espanto, mas nada de novo para alguém calejado, que já consegue desconfiar do que lhe aparece à primeira vista, capaz de sorrir compreensivamente com a mensagem.

        E o que dizer de "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas"? Um verdadeiro e complexo enigma para a infância, cujo sentido só se compreende depois de se ter adquirido um coração recheado de encontros e despedidas.

        Assim, talvez seja justo pensar que a mágica não está nos livros, mas no olhar mutante daqueles que o leem, que se refina, se altera, se enriquece e se lapida com o acúmulo das experiências vividas. De qualquer modo, os livros são meros veículos dessa magia, testemunhas vivas da nossa transformação, de como a importância das coisas e das pessoas flutua ao sabor do tempo. Podemos afirmar então que qualquer livro é capaz de cumprir a missão de gerar efeitos mágicos para todos os que estiverem abertos à sua mensagem.

domingo, 29 de maio de 2022

 

A GEOMETRIA DO VIVER

        Se a geometria é a linguagem da natureza, poderia então dizer que nossas vidas parecem guardar um paralelismo com algumas figuras geométricas. Pensando a respeito, pude constatar que, por certos ângulos de análise, algumas metáforas permitem comprovar minha afirmação. 

         Por exemplo, não é de hoje que a expressão 'andar em círculos' remete a situações monótonas, enfadonhas e sofridas, que acabam por manter as coisas sempre do mesmo jeito, como se dali algo novo pudesse aparecer contrariando a lógica que diz dos mesmos resultados para as mesmas ações. Repetimos pensamentos, comportamentos e crenças, ainda que doídos e doidos. Mesmo sofrendo, continuamos a dar voltas em torno do mesmo lugar esperando novidades que jamais virão. Dar voltas ao redor de um mesmo núcleo anestesia o poder de mudança que temos, prende-nos a uma força centrípeta que parece nos sugar para o mesmo lugar sempre. Deveríamos saber que a repetição não é renovadora de nada, não refresca, não inova. A repetição é apenas mais do mesmo. Órbitas constantes são chatas. Precisamos sair de circuitos tipo carrossel, pois nada ali existirá como novidade, será tudo sempre igual como um plano sem curvas.

        Aliás, o plano é outra figura da geometria que me serve muito bem de metáfora para dizer que superfície lisa não existe. Isto porque junto com o ponto e a reta, o plano sequer tem definição na geometria. Claro que pesquisei isso na internet, pois foi no século passado que tive essa aula no colégio. De qualquer forma, tudo a ver com as irregularidades que lembram nossas vidas. Nessa brincadeira de comparar a geometria com a vida, o plano só serve para indicar que não há vida estável, mas incerta, impermanente, movimentada, cheia de altos e baixos. Que bom, pois é isso, justamente, o que nos força a sair do conhecido quadrado.

       Por falar em quadrado, símbolo maior da rigidez, é sempre oportuno escapar deste espaço apertado. A vida exige malemolência e jogo de cintura com o mundo e as pessoas. Ser quadrado é antiquado, fora de moda, sem ideias novas, preso ao passado. Bom é fazer tentativas, abrir a caixa, sair do comum, arriscar-se, tal qual malabarista no trapézio.

        Ah, o trapézio! Este é o nome de um quase quadrado, isto é, uma forma nem tão certinha nem tão irregular, formada por dois lados paralelos e duas diagonais tortas. Para mim é a representação perfeita de que bom senso e risco podem coexistir, pois muitas vezes a vida obriga mesmo à exposição ao perigo, tal qual um trapezista que, com um tanto de ousadia e outro de segurança, mergulha no infinito, experimenta o desconhecido e joga-se.

       Agora, boa mesmo é a pirâmide, a forma para a ideia de evolução, talvez por causa da base sólida que propicia equilíbrio para que se possa chegar às alturas. A pirâmide parece guardar na sua extremidade o prêmio para quem foi obstinado e perseverante na subida, como metáfora para dizer que a chegada ao topo é possível, atingindo o ponto alto desejado para estar mais perto da luz.